segunda-feira, 25 de maio de 2009

''Hoje, no Brasil, só uma pessoa faz política: Lula''. Entrevista especial com Luiz Werneck Vianna

Pensando nas eleições presidenciais de 2010, o professor Luiz Werneck Vianna defende que, em função da semelhança entre os principais candidatos até então, José Serra e Dilma Rousseff, “não se discutirá política nem quais rumos seriam melhores para o país, mas sim administração”. Para ele, a sucessão de Lula, “a continuar nesta toada, neste andamento, será muito pouco emocionante e dramática, alcançando mais a continuidade do existente do que a descoberta de novos caminhos”. E completa: “O horizonte de 2010 mostra que a disputa política, de projetos alternativos, para o país não terá uma presença muito forte”.
Na entrevista, concedida por telefone à IHU On-Line, Werneck Vianna ainda identifica um claro domínio da vida partidária, política e eleitoral brasileira por dois partidos: PT e PSDB. “Embora, nenhum deles possa se intitular como o maior partido brasileiro, tanto um como o outro, para vencerem, precisam de um terceiro partido: o PMDB. O que os aproxima mais ainda”, argumenta. E, reiterando uma opinião que defende há mais tempo, o professor repete: “hoje, no Brasil, só uma pessoa faz política: o Lula. É o único que tem os condões efetivos da política nas mãos. O resto da sociedade está destituído da capacidade de fazer política real. Temos a política de um só”. Luiz Werneck Vianna é professor pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Doutor em Sociologia, pela Universidade de São Paulo, é autor de, entre outros, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004), A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999), Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002) e Esquerda brasileira e tradição republicana: estudos de conjuntura sobre a era FHC-Lula (Rio de Janeiro: Revan, 2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor vê a possibilidade de um terceiro mandato de Lula? Werneck Vianna – Seria uma solução infeliz para os rumos da sociedade e da democracia brasileira. Não vejo o que justificaria isso do ponto de vista político, físico, econômico e social. Não vejo motivo, a não ser a manutenção do que já vem ocorrendo.
IHU On-Line – Considerando a opção entre Dilma Rousseff e um possível terceiro mandato de Lula, como fica o PT hoje? Werneck Vianna – Ele já abdicou há algum tempo de um papel mais autônomo. Tornou-se cativo do governo, do presidente, perdeu inteiramente a capacidade de agir autonomamente. Isso se é que, alguma vez, o PT, como partido, teve condições de agir a partir de deliberação própria. Ele sempre esteve muito dependente da ação seletiva e arbitral do Lula. Precisamos considerar, aqui, uma frente de vários segmentos e de pendências, como, por exemplo, a esquerda católica, o pessoal da outra esquerda que vinha da luta armada, o sindicalismo do ABC, uma intelectualidade mais antiga (tipo Sérgio Buarque, Florestan Fernandes, Raimundo Faoro), que tinha expectativas em relação a um partido de novo tipo. O PT sempre agasalhou essas pendências, e a única pessoa capaz de mantê-las unidas em torno de um projeto comum é Lula. O PT está em uma encruzilhada muito difícil. Ele precisa se afirmar autonomamente diante da máquina do Estado, diante da sua liderança maior, ou, então, perderá as credenciais que já teve, de ser o novo e representar os movimentos sociais, o que já vem acontecendo, visto que esses estão todos dentro do Estado.
IHU On-Line – Pensando ainda nas eleições presidenciais de 2010 e no cenário constituído pela disputa entre José Serra e Dilma Rousseff, o senhor identifica diferenças do ponto de vista da política econômica entre eles ou, independente de quem vencer, tudo continuará igual? Werneck Vianna – Dilma e Serra têm um perfil muito semelhante, de administradores públicos, de técnicos competentes. São pessoas operativas, eficientes. Os dois são testados em posições difíceis (Ministério da Saúde e da Casa Civil). Não vejo maior distância entre os candidatos, não. Ambos têm uma visão da questão nacional bem definida e são valorizadores do papel do Estado. No entanto, se os governos deles seriam parecidos em função dessas semelhanças, acho que não. Diferenças haveria. É claro que o peso de São Paulo, no caso de Serra ser o vencedor, terá muita significação. E, no caso da Dilma, ela não está encravada nos movimentos sociais. Com a Dilma, talvez se possa imaginar um papel mais desenvolto do Estado e das suas agências.
IHU On-Line – Quais são suas perspectivas de forma geral para as eleições de 2010? Werneck Vianna – O fato é que o horizonte de 2010 mostra que a disputa política, de projetos alternativos para o país, não terá uma presença muito forte. Inclusive em razão da similitude dos dois principais candidatos até então. Não se discutirá política nem quais rumos seriam melhores para o país, mas sim administração. Essa sucessão, a continuar nesta toada, neste andamento, será muito pouco emocionante e dramática, alcançando mais a continuidade do existente do que a descoberta de novos caminhos, como, por exemplo, a sucessão de Barack Obama significou nos Estados Unidos. Estamos muito longe de uma sucessão marcada pela possibilidade da inovação, da invenção, da descoberta. Agora mesmo o PSDB reafirma o seu apoio à Bolsa Família. Em que irá mudar? Pensando ainda num tempo mais largo, nós estamos nesta política desde 1994. Com flexibilizações para lá e para cá, mas no fundo e no cerne, essa política tem uma continuidade imensa e deve continuar, olhando da perspectiva de hoje, com Serra e Dilma, por mais quatro anos. Temos um domínio da vida partidária, política e eleitoral brasileira por dois partidos: PT e PSDB. Embora nenhum deles possa se intitular como o maior partido brasileiro, tanto um como o outro, para vencerem, precisam de um terceiro partido: o PMDB. O que os aproxima mais ainda. Nesse sentido, o programa de inovação que eventualmente eles venham a ter está muito referido, muito constrangido, pelo fato de o PMDB aprovar ou desaprovar o caminho que eles quiserem assumir. Esta política toda orbita dentro do centro político, ancorada na presença majoritária do PMDB na vida partidária e parlamentar brasileira, embora esse partido não tenha representação forte nos movimentos sindicais.
IHU On-Line – Então, do ponto de vista político, Lula não trouxe novidade? Werneck Vianna – Ele trouxe, sim. Mas as novidades não significaram uma nova estrada. Não significaram a abertura de caminhos, de sinais, de mudanças. Em primeiro lugar, na questão econômico-financeira, houve mudança? Não houve. Onde houve mudança? Na questão social, sem dúvida nenhuma. Esse governo demonstrou uma capacidade forte de atuar nessa direção. No entanto, alguns programas sociais do governo Lula foram criados no governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. Não foram descobertas, invenções novas. Houve mudança na política externa? A política externa para a América do Sul vem de antes, de José Sarney, de Itamar Franco. Fernando Henrique também deu um passo nisso. Podemos dizer que o Lula aprofundou esse caminho. Qual a grande mudança que se podia esperar de seu governo? Governar com uma crescente mobilização dos movimentos sociais na direção de realizar determinadas reformas indispensáveis para a mudança econômica, social e política do país. Entre essas reformas, estariam a Reforma Agrária e a Reforma Política, que não saíram e possivelmente não sairão, no sentido de chamar a cidadania para mais perto da esfera pública. O sujeito hoje vota e não comparece nunca mais. Era de se esperar que houvesse mudanças nessa direção. O que aconteceu foi um aumento da representação simbólica dos setores subalternos, dos movimentos sociais no governo.
IHU On-Line – O movimento social ainda tem peso no jogo de forças da política brasileira hoje? Werneck Vianna – Tem, embora, ele não esteja ativado. O movimento social foi cooptado e trazido para dentro do Estado que, a partir daí, exerce essa influência. O MST, os sindicatos, o movimento negro, estão todos dentro do aparelho do Estado. E lá eles se neutralizam. Recuperando uma entrevista que eu dei para a IHU On-Line há algum tempo, eles têm o parlamento dentro do governo, uns têm poder de veto sobre os outros. Além disso, eles evitam ir à sociedade nas suas disputas, porque isso poderia desandar esse compromisso que existe dentro do Estado. E quem arbitra e decide tudo é o presidente. Hoje, no Brasil, só uma pessoa faz política: o Lula. É o único que tem os condões efetivos da política nas mãos. O resto da sociedade está destituído da capacidade de fazer política real. Temos a política de um só.
IHU On-Line – Como o senhor analisa a popularidade do governo Lula mesmo com a crise do capitalismo e do emprego? Werneck Vianna – O governo tem sabido manobrar com muita lucidez e habilidade nesta crise. Tornou-se o interlocutor dos países fortes, conseguiu alguma representação dos países emergentes, tem uma posição muito boa na vocalização das grandes questões internacionais. Agora, essa é uma crise que deixará sequelas. De fato, as concepções neoliberais foram derrotadas. E sem retorno. A partir daí, deveremos ter um fortalecimento de mecanismos de regulamentação internacionais, além de uma presença da política, do direito e das instituições sociais no controle e na regulação da economia. O que não quer dizer uma volta a concepções já vividas historicamente, como o Estado-Providência, ou o mundo do estado do socialismo real. Isso tudo ficou para trás. Também não significa que, daqui para a frente, a única coisa que esteja em vista seja uma volta maquiada da ordem neoliberal. Essa ordem demonstrou sua incapacidade. A economia não tem como trazer harmonia e coordenação, por si só, aos complexos mecanismos da vida financeira mundial. Uma ordem internacional mais justa se torna uma possibilidade. Esses organismos internacionais, como a ONU, e tudo o que está perto dessa experiência, crescem em expressão. Por exemplo, essa gripe suína trouxe à cena um ator extremamente fundamental, que é a Organização Mundial da Saúde, com capacidade de induzir comportamentos em escala mundial, e, mais à frente, capacidade de induzir normas em relação à vigilância sanitária, o que já vem ocorrendo. Estamos em uma passagem de época, e, como isso ainda é embrionário, nesse nevoeiro ainda não é possível perceber inteiramente para onde se vai. Mas é claro que se vai para uma nova ordem mundial, com o exercício de uma coordenação mais efetiva sobre um mundo sistêmico. A economia não pode mais ter a pretensão de ser uma dimensão auto-regulada. Ainda estamos tateando, mas em boa direção. E o que se pode dizer do Brasil, nesse contexto, é que a nossa política externa tem dominado isso e operado num sentido bastante lúcido em relação a essas questões, com um fator de paz e de harmonia na ordem internacional. O Brasil está se comportando de maneira afim, homóloga a esses processos societais de fundo, que agem como fenômenos glaciais, como mudanças de “placas tectônicas” da nossa sociedade.
IHU On-Line – No governo Lula, a balança oscila mais para o lado do trabalho ou para o lado do capital? Werneck Vianna – Entre os dois lados, o coração de Lula balança. E ele arbitra, dependendo da natureza dos impasses e da gravidade do contexto. O governo é muito aplicado na defesa de si mesmo e procura abarcar todos os interesses. A meu ver, o que muda, de fato, com a sucessão do Lula, perante as candidaturas Serra e Dilma, é que, com eles, essa situação não poderá se reiterar. Sempre haverá perdedores. Nenhum deles têm a capacidade, que é própria do Lula, e que ele conquistou ao longo da vida, pelo seu carisma, pela sua força pessoal, de resolver arbitralmente essas questões. Com Dilma e com Serra, os perdedores e os vencedores serão mais claros. Essa será uma mudança significativa.
IHU On-Line – O senhor compartilha da opinião de que governo e sociedade seguem o mesmo modelo de desenvolvimento que privilegia o crescimento a todo custo, sem muita preocupação ambiental, mesmo diante da crise ecológica? Werneck Vianna – Precisamos reconhecer que os ambientalistas estão presentes no governo. O fato é que a ação deles está sendo mais ponderada agora em função das necessidades de expansão das forças produtivas que esse país experimenta. Tem havido uma inflexão ao longo do governo Lula e que ficou muito mais caracterizada no segundo mandato, no sentido de uma orientação nacional desenvolvimentista, que apresenta tensões com a questão ambiental. A meu juízo, essa questão vendo sendo bem administrada. O ministro do meio ambiente é um ambientalista convicto. Não creio que ele esteja capitulando.
IHU On-Line – O modelo de desenvolvimento de Lula lembra mais Getulio Vargas ou mais JK? Werneck Vianna – (Risos). Ele lembra ambos. Essa nova ênfase nas questões nacionais desenvolvimentistas o aproxima muito de Vargas. E, quando pensamos no PAC, ele lembra muito Juscelino. De qualquer forma, o que importa é que o PT, um partido que nasceu em clara oposição a esse passado, a Vargas, a JK, vem se aproximando cada vez mais desse inventário, o que nos remete ainda para o tema da continuidade neste outro registro. No governo Lula, o PT não se comportou como um agente da descontinuidade na política brasileira, mas sim da continuidade. O que não quer dizer que, nessa ação da continuidade, não tenha havido releituras nem transformações importantes. A principal delas tem sido o reforço e a consolidação da democracia política entre nós. E, voltando à sua primeira pergunta desta entrevista, o terceiro mandato pode ameaçar esse patrimônio do que tem sido esses dois mandatos do governo Lula, ou seja, de ter sido o reator que vem aprofundando a experiência democrática brasileira. O terceiro mandato pode significar um divisor de águas muito complicado.

domingo, 24 de maio de 2009

DE NOVO: OGM"S... OS TRANSGÊNICOS EM DEBATE...

Vaticano e Transgênicos: bons porque podem matar a fome do mundo
A Pontifícia Academia das Ciências do Vaticano está promovendo uma "semana de estudos" entre os dias 15 e 29 de maio, em Roma, sobre organismos geneticamente modificados [OGMs ou transgênicos], liderada pelo cientista alemão Ingo Potrykus, católico inventor do "golden rice" [ou arroz de ouro]. O encontro reúne aproximadamente 40 cientistas e ativistas, cuja grande maioria concorda com Potrykus que a oposição aos transgênicos está custando vidas e atrapalhando o caminho de uma segunda "Revolução Verde" no mundo em desenvolvimento. Enquanto isso, uma pequena demonstração nesta segunda-feira, 16, de manhã, do outro lado de Roma, bem longe do Vaticano, apresentou a voz católica antitransgênicos, que não está representada no encontro da Academia das Ciências. Um painél dizia: "Pontifícia Academia, não se alie a esses que, promovendo os OGMs, contribuem com a fome no mundo". John L. Allen Jr., do sítio National Catholic Reporter, 19-05-2009, conversou com dois representantes de ambas as posições, em entrevistas que refletem as duas visões do debate. Uma delas foi realizada com o professor Bruce Chassy, especialista em segurança alimentar da Universidade Urbana-Champaign, de Illinois, nos Estados Unidos, e um dos participantes da semana de estudos do Vaticano. Chassy também atuou como conselheiro da Organização Mundial da Saúde e do U.S. Food and Drug Administration [órgão que faz o controle dos alimentos nos EUA]. Também foi presidente do Painel sobre Segurança Alimentar e Nutrição do Institute of Food Technologists. Ele está entre os cerca de 40 participantes da "Semana de Estudos" sobre transgênicos da Pontifícia Academia das Ciências e defende que um "impressionante consenso científico" dá suporte à segurança e efetividade dos cultivos geneticamente modificado. Para Chassy, essa é uma questão moral, assim como científica e regulatória. Ele acredita que a demora na adoção do "golden rice" na última década pode ter custado as vidas de cerca de 10 milhões de crianças no mundo em desenvolvimento. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis a entrevista. Qual é a sua opinião sobre o debate a respeito dos OGMs? Realmente, ele não tem a ver com ciência. A rejeição aos transgênicos tem a ver com política, com ideologia, com comércio. É um monte de coisas, mas não é ciência. A ciência é muito clara. Por "muito clara" o senhor se refere a que é muito claro que os transgênicos são seguros? Correto. Eles são provavelmente mais seguros do que os alimentos convencionais e mais seguros, sem dúvida, do que os alimentos orgânicos. É o extremo oposto da hierarquia de risco sugerida por aqueles que se opõem aos transgênicos.
Por que o senhor diz que os transgênicos são mais seguros do que os produtos orgânicos? Primeiro, nunca houve uma avaliação de segurança, de nenhum tipo, dos produtos orgânicos, assim como muitos dos alimentos convencionais que temos. Segundo, conceitualmente, produzir um alimento geneticamente modificado é, na verdade, menos invasivo do que a produção convencional. É menos provável que ele produza efeitos inesperados. Terceiro, a afirmação de que a agricultura orgânica é melhor para o meio ambiente está baseada em uma crença ideológica de que usar materiais naturais para corrigir o solo é melhor do que usar químicos. Na verdade, não há nenhuma evidência disso. Há um impressionante consenso científico com relação à segurança dos transgênicos.
No abstract do seu artigo, o senhor diz que a resistência aos transgênicos colabora para a "extrema desvantagem dos famintos e dos pobres". O que o senhor quer dizer? A África, por exemplo, está muito na esfera de influência europeia. Seus líderes e intelectuais, incluindo pessoas da Igreja, são treinados na Europa. O comércio da África é com a Europa. Em muitos casos, há evidências diretas de que eles foram chantageados para não usar transgênicos, porque lhes disseram que as companhias europeias não iriam mais negociar com eles. Eu posso lhe assegurar que se você for ao encontro de um agricultor pobre na Uganda ou no Quênia, ou em qualquer outro lugar, e lhe perguntar se ele testaria uma variedade de milho que produziria cinco vezes mais mesmo quando há uma seca, ele diria: "Eu aceito". Se você lhe disser que tem uma semente que produz um milho mais nutritivo, de modo que os seus filhos não ficariam cegos nem morreriam de doenças diarreicas por falta de vitamina A, o agricultor irá testá-la. Os agricultores não são pessoas estúpidas. Só porque alguém é pobre e da zona rural da África não significa que eles sejam tolos. Há uma atitude muito paternalista e neocolonial que surge na Europa a respeito da África. Eles saberiam mais do que os próprios africanos o que é bom para a África. Eu viajei para um grande número de países africanos e vi a pobreza. O problema é que essas pessoas não têm a habilidade para chegar a ter tecnologias por si mesmas. A tecnologia tem que passar pela Europa e pelos Estados Unidos, por essas várias fundações, e, se há um impasse político, ela nunca chegará a elas. Essa é a tragédia.
De onde o senhor acha que vem a oposição aos transgênicos? Eu acho que esse é provavelmente um dos melhores exemplos de um nexo entre um conjunto de visões ideológicas e políticas, corporações, pessoas com interesses econômicos variados, se unindo. É uma espécie de estranha companhia.
Quem se beneficia com o bloqueio aos transgênicos? Existem companhias químicas na Alemanha e na França que produzem pesticidas. Elas não querem sementes livres de pesticidas, que os seus defensores afirmam que os transgênicos poderiam trazer. Isso é ruim para os negócios delas. Os produtores de alimentos e os supermercados europeus podem colocar um preço mais alto nos alimentos "livres de químicos", bem acima do custo que eles têm para produzi-los. Eles fazem com que a sua marca própria, que é uma marca de desconto, se torne uma marca premium ao chamá-la de "livre de transgênicos". Há um monte de motivos econômicos. É também uma ameaça ideológica. Eu acho que os defensores dos orgânicos estão preocupados com a perda de mercados, mas também rejeitam a tecnologia moderna. Há muitos pequenos agricultores orgânicos, que não visam o lucro, que são ideólogos; e muitas corporações multinacionais que produzem todos os alimentos "orgânicos" que nós comemos do mundo. Eis aqui um fato conhecido: 90% dos alimentos orgânicos dos EUA são produzidos por duas ou três multinacionais. Todas as grandes companhias de alimentos entraram nisso porque é rentável. São elas que estão empurrando isso para as prateleiras dos supermercados. Os pobres pequenos agricultores orgânicos aqui do lado nunca souberam como fazer isso, mas a grandes companhias sabem. Há interesses dos governos europeus, que sabem que a sua agricultura não pode competir com a Austrália, o Brasil, a Argentina, os EUA, o Canadá – certamente não na grande agricultura extensiva, mesmo que eles tenham muita monoagricultura na Europa. Se você buscar uma estratégia para ser competitivo, se você bloquear a importação dos produtos de outros países porque são transgênicos e se mantiver livre de transgênicos, isso lhe dá uma preferência de mercado dentro da União Europeia. A UE é realmente um grande mercado. Isso é um bom negócio e também tem o efeito de que os governos europeus têm que pagar menos subsídios agrícolas, ao ponto de que seus próprios agricultores são capazes de vender sua própria produção com preços altos.
Quais são os outros fatores? Há toda uma outra questão que está relacionada a um grupo que pessoas que foram deixadas para trás a partir da queda do socialismo. Se você tem essa perspectiva, que é muito rica na Europa e que está muito presente na Igreja, aonde você vai parar? Você vai ser antiglobalização, antimultinacionais, anticapitalismo. A parte inteligente do movimento antitransgênicos é que eles foram capazes de colocar a etiqueta "Monsanto e EUA" nos transgênicos. Isso não ocorreu como um grande plano mestre, mas, da forma como se desenvolveu, as ONGs do meio ambiente, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, alguns governos europeus e muitas fundações de assistência de todo o tipo se juntaram em oposição aos transgênicos. Uma enorme quantidade de dinheiro foi investida no planejamento de uma série de mensagens de propaganda que emolduraram o debate e definiram as questões, em torno da metade dos anos 90. Esse trabalho dominante de enquadrar o debate é o que está ocorrendo hoje e é influenciado pela Igreja. Eu acho que as pessoas não se dão conta de que a indústria dos transgênicos é, mundialmente, uma indústria de mais de um trilhão de dólares. Nós temos mais de 850 corporações nos EUA que funcionam nessa arena. Seu interesse último, na verdade, é político.
O objetivo dessa semana de estudos é dar voz ao consenso científico como o senhor o descreveu? Em parte, essa conferência é Ingo Potrykus se pronunciando sobre anos de frustração. Eu tenho escrito sobre o seu "golden rice" e, honestamente, acredito que ele poderia salvar um milhão de pessoas por ano. Você pode imaginar a frustração desse homem. Ele é um católico devoto e acredita sinceramente que essa é a missão da Igreja. Ele entrou nisso por uma razão. Muito poucos cientistas podem dizer que eu escolhi esse projeto porque eu vi uma enorme enfermidade social que eu poderia curar. Nós geralmente não fazemos isso. E mais, ele é quase um cabeça-dura... Ele ficou e ficou nisso, e foi frustração após frustração. Então, você pode imaginar que, quando ele assumiu essa agenda, ele não iria trazer pessoas que lhe dissessem não. Ele sabe que não há uma objeção científica legítima. Então, ele trouxe para a mesa pessoas que poderiam descrever quais são os impedimentos, como se pode remover esses obstáculos e o que está sendo feito. Essa é uma história que os críticos realmente não querem contar. Eles querem frear o "golden rice" por uma razão específica. O "golden rice" não pertence às companhias. Isso quebra a imagem de que esse é um produto norte-americano que foi empurrado ao mundo pelas multinacionais norte-americanas. Isso não funciona mais, porque ele não é norte-americano, é um trabalho do setor público. Ele está sendo usado na Índia, nas Filipinas e no Paquistão. E vai salvar vidas, vai funcionar, e eles vão ficar extremamente assustados.
E no fim das contas, que diferença faz aquilo que o Vaticano diz sobre os transgênicos? Eu acredito que a Igreja é uma posição única para enfrentar essa questão, em primeiro lugar porque ela é muito grande. Ela também tem um valor central de que ajudar os pobres, os desfavorecidos, é algo bom. Ao viajar pelo mundo, conheci muitos católicos que realmente acreditam nessa missão, e isso lhes dá credibilidade. Além disso, não há outras vozes centrais de autoridade moral no mundo. Muitas das Igrejas e das outras religiões não têm um papa. Eu assisti o processo da morte de um papa e da chegada de um novo, como um não católico, com todos os meus amigos. Ela é claramente a força moral mais organizada do mundo. Isso dá à Igreja uma autoridade moral única para se pronunciar sobre questões que impactam a condição humana.
Se o Vaticano estivesse por fazer uma declaração fortemente pró-transgênicos, o senhor acha que isso reconfiguraria o debate? Sim, eu realmente acredito nisso. Em primeiro lugar, há muitos católicos que se opõem aos transgênicos, e é difícil ignorar totalmente o papa. Eu também acho que, se um papa estivesse por fazer isso, especialmente este papa, ele daria um argumento muito razoável. Eu acho que podemos oferecer isso para ele. Eu não acho que esse vai ser o resultado deste encontro. Há muitas opiniões contrárias na Igreja. Eu tenho a impressão de que o papa quis que esse encontro ocorresse, porque é uma questão importante a ser discutida. Uma declaração do Vaticano realmente dividiria a oposição. Parte da campanha de propaganda é capturar o alto nível moral. Quando a Igreja concorda com eles, ou quando alguns membros da Igreja concordam com eles, esse é um bom e feliz alto nível moral. Mas quando o nível moral mais alto do mundo diz que nós pensamos que essa é uma tecnologia benéfica, desde que usada para aliviar o sofrimento humano em vez de apenas gerar lucro, isso muda toda a fórmula.
Qual o futuro dos transgênicos? Esse debate acabou. A ciência é muito clara. A Ásia está adotando a tecnologia. As Américas adotaram a tecnologia. A questão é quando o trem irá partir da estação na Europa, e também na África. São realmente esses dois continentes que entenderam tudo errado, e eles vão se dar conta no final, seja daqui a 10 ou 15 anos. Virá um tempo em que isso não será mais debatido, e todos nós estaremos cultivando transgênicos. Eu não sei o que os ativistas irão fazer para viver, mesmo que eu tenha certeza de que eles terão algum outro assunto.
A propósito, o senhor tem alguma relação financeira com a indústria de biotecnologia? Não.
Eles financiam alguma de suas pesquisas? Não. Eu não tenho nenhum subsídio. Uma vez, eu apresentei um seminário em que eu tive que pagar mil dólares na Dow Chemical Company. Eu não tenho ações. Eu não sei onde a minha aposentadoria está investida. Eu simplesmente não sou capitalista. De fato, eu sou um ignorante no que se refere ao capitalismo. Isso simplesmente não me interessa. Eu não tenho nada de conflito de interesses.
Qual o coração da argumentação moral em favor dos transgênicos? Usar transgênicos não é o elixir que irá resolver a fome e a desnutrição do mundo. A fome existe porque a pobreza existe. A fome existe porque as pessoas não têm terra ou acesso aos mercados, porque há falhas na educação. Ou poderia ser escassez de chuvas, ou guerras civis, ou líderes corruptos. Há um número enorme de fatores que levam as pessoas a passar fome. Os transgênicos se encaixam em um nicho muito estreito e muito técnico. Cerca de 60 a 70% dos famintos são pessoas do campo, em grande parte agricultores que produzem o seu próprio alimento. Se você puder lhes dar uma semente que irá produzir mais alimentos, eles podem alimentar a sua família e ter mais dinheiro para trazer o tipo de revolução que vimos na Índia e na China. A essência do que vimos na Índia e na China é que eles aprenderam a se alimentar por meio da Revolução Verde. Eles então geraram renda rural, que se tornou o motor de uma economia nacional a ser melhorada. Eles se viraram a partir da agricultura melhorada. Isso certamente ajudaria os pobres e os famintos a serem capazes de produzir mais alimento. Haverá inovações na agricultura que não têm nada a ver com os transgênicos. As pessoas irão usar cultivos tradicionais para produzir sementes melhores. Alguém vai ser dar conta de como conseguir maquinários baratos, ou irrigação, ou boas estufas e boa armazenagem ou um bom conservante. Há muitas coisas que se pode fazer para ajudar os pobres, e a questão dos transgênicos foi exagerada além da conta. Os agriculturalistas que eu conheço e que querem usar os transgênicos veem-nos simplesmente como uma ferramenta em uma caixa de ferramentas. O porquê de as pessoas terem aproveitado essa ferramenta e criado essa enorme questão global desafia a credulidade.

''Comparo o projeto da transposição a um computador cheio de vírus''. Entrevista com D. Cappio

No dia 9 de maio, dom Luiz Flávio Cappio recebeu o Prêmio Kant de Cidadão do Mundo, da Fundação Kant, na cidade de Freiburg, Alemanha. O prêmio, concedido a cada dois anos a pessoas que se destacaram na defesa dos direitos humanos, é o segundo reconhecimento internacional da luta do bispo contra o projeto de transposição do Rio São Francisco. A reportagem e a entrevista é de Marcelo Netto Rodrigues e publicada pelo jornal Brasil de Fato, 20-05-2009. Ano passado, Cappio – que realizou jejuns contra o projeto em 2005 e 2007 – já havia sido agraciado com o prêmio da Paz 2008, concedido pela Pax Christi Internacional. Junto a Rubem Siqueira, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), na Bahia, e coordenador da Articulação São Francisco Vivo, Cappio aproveita a viagem para participar de debates em outras cidades alemãs – Frankfurt, Berlim, Bonn, Bremen – e na cidade austríaca de Graz. Em Berlim, foi o convidado principal de um seminário organizado pela organização católica Misereor, sob o tema energia, poder e fomeh. Quando aproveitou a presença de parlamentares alemães no evento para pedir que enviassem emails ao Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro pressionando-o a julgar as questões jurídicas pendentes que existem contra o projeto.
Eis a entrevista.
O senhor veio para a Alemanha para receber um prêmio de cidadão do mundo. Ano passado, o senhor já havia recebido um prêmio de uma organização com sede na Bélgica. O senhor acredita que é possível internacionalizar a campanha pela não-transposição do rio São Francisco? Desde o momento dos dois jejuns que fizemos, esta campanha já se tornou conhecida no mundo inteiro. Haja vista, a imensa solidariedade que recebemos de muitos países. E estes prêmios são sinais evidentes disso. A Pax Christi, que congrega 54 países, e a Fundação Kant, aqui da Alemanha, assumiram para si essa luta, em defesa dos povos mais pobres do Nordeste brasileiro.
Um confrade seu aqui da Alemanha disse que os seus dois jejuns tiveram, pelo menos, dois efeitos práticos: primeiro, fizeram com que as máscaras de um governo dito popular caíssem no momento em que foi posto numa encruzilhada e acabou optando pelo outro lado; e segundo, fizeram com que a CNBB voltasse a se pautar sob a ótica da opção preferencial pelos pobres. O que mais? Sim, além desses dois aspectos, eu vejo uma tomada de consciência do povo ribeirinho, da nação brasileira e do mundo sobre esse problema que até então era pouco discutido. E uma outra grande conquista foi a unificação de todos aqueles que lutam por essa mesma causa. De repente, vimos juntos povos indígenas, quilombolas, acadêmicos de universidades, políticos que se alinharam a esse espírito de luta, igrejas e movimentos.
Tudo leva a crer que o presidente Lula não poderá declarar no final do seu segundo mandato que ele realizou a transposição. O senhor realmente acredita que ele chegará ao fim do seu mandato sem que a obra tenha deslanchado? Eu não acredito que esse projeto chegue ao fim. Não acredito de jeito nenhum. Eu sempre comparo o projeto da transposição a um computador cheio de vírus. Quando você tem um computador infectado, inevitavelmente chega um momento em que ele para. O projeto está tão viciado, tão cheio de irregularidades, que de repente ele vai empacar. Ele não tem como ir muito à frente. Não acredito que ele chegue ao fim. E não vai satisfazer a vaidade de Lula.
O senhor ainda espera alguma coisa do governo Lula? Olha, eu não digo que eu espero. Eu digo que eu esperei. Eu esperava. E para isso eu lutei, vesti a camisa, suei a camisa para que fosse um governo voltado aos grandes interesses do povo. E de repente, a gente percebeu que o governo Lula se tornou refém das elites, dos grandes projetos transnacionais. Fui decepcionado. Hoje, não espero mais nada do governo dele e não vejo a hora de uma mudança de governo, e espero que seja para melhor.
O Gandhi chegou a fazer nove jejuns. O senhor descarta por completo que venha a fazer mais um jejum ou essa possibilidade ainda existe? Eu não tenho pretensão nenhuma, nem de longe, de me comparar a Gandhi. Mas eu acho que o jejum já atingiu seu objetivo. Já deu um grito e aqueles que deviam ouvir já ouviram. Acho que o recado está dado.
O senhor seria a favor da transposição se ela só viesse após a revitalização do rio? Ou a transposição não deve ocorrer de jeito nenhum? Olha, desde que as comunidades sejam abastecidas, o que é a função prioritária da água. E desde que o rio São Francisco tenha condições, então, pode-se pensar em projetos econômicos de utilização da água. Mas não sei se o projeto de transposição é o melhor. Eu diria projetos de uso econômico da água, mas desde que os povos sedentos fossem dessedentados, e desde que o rio São Francisco suportasse essa ingerência.
O fato de o senhor ter nascido no dia de São Francisco influenciou em alguma medida na sua opção pela Ordem Franciscana? Não, foi apenas uma feliz coincidência. Eu optei pela ordem devido ao grande amor que eu tenho à maneira de São Francisco viver o Evangelho e pelo seu grande amor aos pobres e à natureza.

A nova sociedade. Entrevista com Gilles Lipovetsky

QUAL É O PODER QUE A MÍDIA TEM SOBRE NÓS ?
O QUE PODEMOS DIZER DA OPINIÃO PÚBLICA SOBRE AS COISAS ?
QUAL É O TAMANHO DA MÍDIA EM NOSSO COTIDIANO ?
"A despolitização da sociedade, a força da mídia e um individualismo sempre mais acentuado favorecem a transformação da vida política em matéria de revista". Essa é a opinião do filósofo francês Gilles Lipovetsky, que, comentando os casos de Sarkozy e Berlusconi, lembra que essa evolução está em curso há muito tempo. A reportagem é de Fabio Gambaro, publicada no jornal La Repubblica, 19-05-2009.
A tradução é de Moisés Sbardelotto. "Na origem de tudo", explica o autor de "A Era do vazio" (Editora Manole, 2005), "A felicidade paradoxal" (Companhia das Letras, 2007) e "O luxo eterno" (Companhia das Letras, 2005), "está sobretudo o fim das grandes utopias da modernidade, que, no passado, garantiram a centralidade da política percebida como portadora de grandes esperanças. Hoje não é mais assim. Não há mais utopias, e os projetos políticos não fazem sonhar mais. A mundialização também contribui para esse desencanto, porque, diante das suas consequências, a política parece impotente. Os cidadãos têm a impressão de que o verdadeiro poder está em outro lugar, sentem-se expropriados da possibilidade de escolher. Além disso, não se deve esquecer a atenuação das diferenças entre direita e esquerda que levam muitos cidadãos a se desinteressar pela política. Tudo isso contribui para a despolitização da sociedade e enfraquece o estatuto dos homens políticos, com relação aos quais prevalece a desconfiança e a suspeita". Eis a entrevista.
Como os interessados diretos reagem? Experimentam desfrutar aquela que Baudelaire chamava de a curiosidade do homem moderno. Dado que os programas não conseguem mais envolver os eleitores, aponta-se tudo na personalidade do homem político. Aqui surge a necessidade de colocar em cena a sua vida privada. Os políticos aceitam e às vezes favorecem essa espetacularização da sua vida, esperando chamar a atenção de quem se desinteressa deles. Uma vez se fazia sonhar por meio dos programas; hoje, com a narração da própria vida. Naturalmente, isso se tornou possível pela força da mídia, que responde às expectativas de um público muito sensível a tais incursões no privado. Na prática, o voyeurismo de uns responde ao exibicionismo de outros.
Com quais consequências? As técnicas da política se assemelham sempre mais às do marketing e do "star system". Hoje, a publicidade não se contenta mais em dizer que um certo produto é melhor do que o outro. Ela quer criar uma ligação afetiva com esta ou aquela marca. O mesmo ocorre na política. Em vez de defender um programa, o político tenta alimentar uma corrente de simpatia, de afeto. A política, que era o lugar da racionalidade e da reflexão, se torna o âmbito da adesão sentimental. Eis porque a vida privada e a sua narração se tornam tão importantes. O político não faz outra coisa do que se adequar a uma sociedade dominada pelo individualismo e pela vida privada. Mas assim a política se torna objeto de conversação em vez de mobilização.
Colocando em cena a sua vida privada, os políticos tentam se colocar no mesmo plano dos eleitores? Certamente, querem parecer pessoas normais. A narração dos seus amores, dos seus divórcios, dos seus problemas é útil para construir uma imagem mais próxima daquela do cidadão comum. Mas essa banalização enfraquece ainda mais o seu estatuto. Enfim, é um círculo vicioso em que a política perde a dimensão carismática que tinha na origem. Sem se esquecer que a utilização do privado para afastar a atenção dos verdadeiros problemas da sociedade sempre é uma operação perigosa que pode fugir do controle a qualquer momento.

domingo, 17 de maio de 2009

''O Brasil é um grande crematório de cérebros e florestas'', diz Cristovam Buarque

Idealizador da Vigília pela Amazônia, realizada no Senado na última quarta-feira, o senador Cristovam Buarque (PDT/DF) concedeu uma entrevista exclusiva ao Amazonia.org.br, em que fala sobre a necessidade da implantação no Brasil de uma educação que conscientize as pessoas sobre a importância de se manter a floresta em pé. Também ex-ministro da Educação, durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Buarque falou sobre o problema do analfabetismo no país, de suas propostas para a valorização da cultura indígena e a melhoria do sistema educacional, com respeito à diversidade e inclusão de noções sobre meio ambiente. A entrevista é de Fabíola Munhoz e publicada por Amazonia.org.br, 15-05-2009. Eis a entrevista.
No seu modo de ver, a educação na Amazônia representa um contexto peculiar? A Amazônia é um caso especifico do ponto de vista do conteúdo, do estilo, do comportamento, da arquitetura, dos prédios. Nesse sentido, cada lugar tem uma situação específica. Agora, o que não é específico, e sim universal é: toda criança na escola e todo professor bem preparado. Você pode diferenciar em que área ele é preparado, mas não pode abrir mão de que ele seja preparado.Todo professor deve ser bem remunerado e dedicado, os equipamentos disponíveis devem ser iguais, seja na Amazônia, em São Paulo, nos Estados Unidos, na Europa, ou na Coréia. Os equipamentos pedagógicos têm que ser do mesmo tipo. Há alguns anos era lousa e papel, agora é computador e televisão. Temos que federalizar a educação de maneira que aquilo que deva ser igual para todos seja igual, respeitando-se a liberdade pedagógica.
Diante da diversidade de povos presentes na Amazônia, o senhor acredita serem necessários métodos de educação específicos para cada uma dessas populações? No que se refere à língua sim. A educação tem que ser na língua nativa do aluno. No que se refere à Geografia, por exemplo, todos têm que ter a Geografia do mundo igualmente. Mas, o estudante da Amazônia tem que aprender a Geografia local, que é diferente da Geografia do Centro-oeste. A Matemática ensinada deve ser a mesma, a Física também. Não é porque um aluno é do campo que não deve estudar História do mundo, Filosofia, Sociologia, Biologia. Agora, além disso, tem o seu contexto local que deve combinar, por exemplo, o aprendizado do campo. A escola do campo deve ensinar agricultura, enquanto não é preciso se ensinar isso ao aluno da cidade. Mas, não pode a qualidade de ensino ser menor e deixar de ensinar aquilo que for fundamental e universal.
Como ex-ministro da Educação, que ações o senhor julga serem necessárias à melhoria da educação indígena no Brasil? Primeiro, acho necessário o ensino da língua indígena. O aluno tem que aprender na sua língua. Também, além de estudar a Historia universal, o aluno deve estudar a Historia do seu povo. Deve-se ensinar na escola desse aluno, também, a arte do seu povo. E não só isso. É preciso dar a cultura universal e a local. Isso vale para o indígena e também ao morador de São Paulo.
Que projetos para a educação indígena são hoje discutidos pelo Senado? Eu tenho um projeto de lei que não é voltado especificamente para a educação indígena, mas para a cultura indígena. O projeto obriga o ensino da língua indígena no Brasil inteiro para todos que quiserem aprendê-la, sem, porém, que isso seja obrigatório. Quem quiser, deve poder aprender a língua indígena. É, inclusive, uma maneira de manter as línguas indígenas vivas. Se não elas irão morrer. Estou, além disso, constituindo para a criação de uma frente parlamentar de apoio aos povos indígenas para defender os interesses dos povos indígenas. Por exemplo, durante a disputa com os arrozeiros- o senador se refere ao conflito entre indígenas e plantadores de arroz pela posse da terra indígena de Raposa Serra do Sol (RR)-, não havia uma bancada indígena no Senado e na Câmara. Havia apenas as bancadas da educação, da saúde, dos evangélicos, dos católicos. Mas, não havia uma bancada dos povos indígenas.
O senhor tem algum projeto para a preservação da Amazônia, aliando educação e meio ambiente? Tenho a ideia da criação do Dia Nacional das Florestas Brasileiras, que será o dia em que todas as escolas refletiriam sobre a importância das florestas. Basta aprovar essa lei para que as escolas passem a fazer debates, exposições e passem filmes, que despertem a reflexão sobre esse assunto. Não há outra saída para a redução do desmatamento de forma definitiva que não seja a educação, a não ser que as pessoas comecem a sentir que as árvores são entes vivos. E isso é a educação que pode fazer, ou a religião. Não tem outro jeito. Não adianta só uma lei proibindo, tem que haver uma mudança de mentalidade. E quem muda a mentalidade é a escola.
Como o senhor vê a situação do analfabetismo na Amazônia hoje? O analfabetismo na região é equivalente ao do Nordeste, o que é uma tragédia. O número de analfabetos na Amazônia e no Nordeste está equivalente ao de muitos países da África, alguns dos piores do continente. E isso é uma vergonha nacional. Duas vergonhas são: as queimadas da Amazônia e as queimadas de cérebros. O Brasil é um grande crematório de cérebros e florestas. É um desperdício de inteligência, sendo que inteligência não é uma coisa espontânea. As crianças nascem com os cérebros iguais uns aos das outras. O cérebro biologicamente é espontâneo, mas do ponto de vista do seu potencial não é espontâneo, ele é fruto da educação. Nós jogamos fora os recursos brasileiros abandonando a escola. A cada minuto são seis campos de futebol queimados na Amazônia. E a cada minuto são 60 crianças jogadas fora da escola. A minha proposta é erradicar o analfabetismo pagando por alfabetizado. Então, quem tem mais analfabetos, vai receber mais dinheiro. Mas, vai receber mais dinheiro quando erradicar o analfabetismo. Eu sou contra dar dinheiro para programas de alfabetização. Sou a favor de dar dinheiro para erradicar o analfabetismo. E isso é pagar por resultado.
O que senhor pensa sobre o resultado da Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílios (PNAD), de 2007, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que aponta para a recente queda do ritmo de redução do analfabetismo no Brasil? Penso que, nesse ritmo, iremos levar uns 80 ou 90 anos para erradicar o analfabetismo no país. Porque nós não fechamos a torneirinha que produz analfabetos, que é a escola primária. Além disso, alfabetizamos numa velocidade muito lenta. O governo Lula não tem a preocupação de erradicar o analfabetismo, mas apenas de ir alfabetizando, sem urgência, nem prazos para resolver. Desse jeito, não vai conseguir erradicar o analfabetismo, a não ser em muitos anos. Só conseguiremos fazer isso depois do Paraguai, da Bolívia, da Colômbia e do Peru.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Gripe suína: ''A população sente-se enganada e cresce a fúria social''. Entrevista especial com Jenaro Villamil

A população mexicana sente-se enganada pelo governo e cresce a fúria social. A afirmação é do jornalista mexicano Jenaro Villamil. Acrescido à falta de transparência sobre a crise suína, o governo mexicano omitiu e procurou relativizar os efeitos da crise econômica sobre o país. O sentimento é de desorientação e desconfiança por parte da população, afirma o jornalista em entrevista especial concedida, por e-mail, à IHU On-Line. A entrevista foi feita por Cesar Sanson, pesquisador do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores - CEPAT, parceiro estratégico do IHU. Jenaro Villamil, jornalista, colaborador do jornal La Jornada, repórter da revista Proceso e professor de jornalismo político na Escola de Jornalismo Carlos Septién. O jornalista é autor, entre outros, dos livros A Televisão que nos governa e a Guerra suja de 2006.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como tem sido a reação da população mexicana à epidemia do vírus da gripe suína? Alterou-se o comportamento social? Instalou-se o pânico? É verdade que a sociedade mexicana paralisou?
Jenaro Villamil – A primeira reação foi de surpresa dada às circunstâncias em que foram anunciadas as primeiras medidas de emergência. Na quinta-feira, dia 23 de abril ,às 23h, o Secretário de Saúde, José Angel Córdova, anunciou na televisão que as aulas do Vale do México – Distrito Federal e Estado do México, o mais populoso do país, estavam suspensas porque se tinha confirmado a presença de um novo vírus de origem suína, que se transmite pelo ar. Na manhã do mesmo dia, Cordova havia negado a existência de uma nova epidemia. Nunca ficaram claramente esclarecidas quais eram as fontes de informação para a tomada de tais medidas. Na sexta-feira, houve uma desorientação total. No sábado e no domingo se generalizaram às medidas preventivas, mas, na segunda-feira as atividades profissionais sofreram mudanças no Distrito Federal e o pânico se generalizou. Entre segunda, terça, quarta e,até o momento (quinta-feira, dia 30-04-2009), assiste-se a uma corrida aos supermercados da capital. Foi uma reação natural de medo da população devido às incertezas. Desde sábado, a mídia eletrônica tem sido saturada com informações sobre a gripe, mas não tem ajudado a criar clareza. Há muitas especulações. Este é o resultado de dois fenômenos: a falta de credibilidade do governo mexicano e a saturação dos meios de comunicação que não processam bem as informações.
IHU On-Line – Há transparência por parte do governo mexicano sobre o tema?
Jenaro Villamil – Este é o ponto principal do problema. O governo federal e os governos estaduais têm tratado a informação com um elevado grau de opacidade. Os meios de comunicação informaram que, pelo menos desde 10 de abril, as autoridades sanitárias tinham confirmado a existência de um novo vírus da gripe, mas a informação foi ocultada. Algo que foi negado até o dia 22 de abril. Em meio à epidemia, não há certeza de quem já morreu, quantos anos tinham estas pessoas, onde elas trabalhavam, onde moravam, por que morreram e se já se tinha o antibiótico.
IHU On-Line – Quais são as interpretações no México para a origem do vírus?
Jenaro Villamil – A falta de informações científicas claras tem gerado uma extraordinária quantidade de especulações sobre a origem do vírus. Existe muito pouca consciência e informação sobre os efeitos de resíduos agroindustriais que poluem vales e grandes áreas do país. Estes são focos contínuos de vírus e epidemias. Os cientistas mexicanos ainda não sabem explicar como surgiu a mutação que levou ao vírus da gripe suína. A primeira reação foi a de pensar que comer carne suína causaria a infecção. Obviamente, vem se tentado esconder o escandaloso nível de poluição das suinoculturas no país, especialmente a Granjas Carroll, subsidiária da empresa norte-americana Smithfield Foods.
IHU On-Line – Como reagiu a empresa?
Jenaro Villamil – Com o escândalo gerado pela confirmação de um caso de gripe suína na comunidade vizinha de Las Glorias, desde o dia 02 de abril, a Granjas Carroll Farms organizou uma visita para a imprensa, terça-feira, dia 28 de Abril. Foi uma medida de relações públicas para insistir que eles não têm qualquer relação com a origem do vírus nem com a alta incidência de gripe e pneumonia na região de Perote, Veracruz (onde fica a fazenda de criação intensiva de porcos). As outras empresas ainda não disseram nada. Mantém-se no silêncio. A entidade oficial responsável por verificar estes lugares COFEPRIS (anexa ao Ministério da Saúde) não forneceu informações precisas.
IHU On-Line – A sociedade mexicana. além da crise mundial, convive com a violência do crime organizado. Sustenta-se a tese de que os aparelhos de segurança e os governos municipais, estatais e federais estão cooptados até a medula pelo narcotráfico. Quais as conseqüências sociais disso tudo somado agora ao problema da gripe suína? Como o movimento social reage a esses fatos?
Jenaro Villamil – Há uma saturação na mídia de informações negativas. Em primeiro lugar, a guerra contra as drogas lançada pelo governo de Felipe Calderón. Segundo, a epidemia de gripe. Em ambos os casos, a minha impressão é de absoluta falta de estratégia para combater de forma eficaz os cartéis da droga, inclusive para dar segurança às pessoas, e fazer com que as medidas sanitárias adotadas sejam vistas pela população como as mais adequadas. Em ambos os casos o que se vê são “golpes” midiáticos, ou seja, se governa pensando-se nas pesquisas, uma vez que a percepção pública é altamente suscetível aos meios de comunicação. No México, 90% das pessoas se informam apenas através da televisão comercial aberta, controlada por duas empresas aliadas ao governo: Televisa e TV Azteca. O grande problema é a crise econômica e o seu impacto na sociedade mexicana. Primeiro, se minimizou o impacto da crise nos Estados Unidos. O governo acusava de "catastrofistas" aqueles que afirmavam que o nosso país iria viver uma situação muito crítica. "No máximo teremos uma gripe e não uma pneumonia", disse numa infeliz metáfora o responsável pelas finanças públicas, Agustín Cartens, em janeiro deste ano. Agora resulta que temos uma verdadeira crise de pneumonia, não metafórica, e que a economia mexicana terá uma diminuição de 4,8 pontos (números divulgados nessa semana). O panorama é de pessimismo extremo. A população sente-se enganada e cresce a fúria social.

O vírus da gripe suína não é ''um ato anônimo da natureza''. Entrevista com Mike Davis

Sabe, percebemos que tem certas coisas, que nos remete a E ERA DA IGNORÂNCIA, pois não sabemos nada, ouvimos tudo, lemos tudo, e nada sabemos... então vem, a nós a entevista abaixo:

Para o professor de história na Universidade da Califórnia Mike Davis, autor de "O Monstro Bate à Nossa Porta - A Ameaça Global da Gripe Aviária" (ed. Record, trad. Ryta Vinagre, 256 págs., R$ 39), o vírus causador da gripe suína não é "um ato anônimo da natureza". De Tijuana, no México, Davis argumenta que o risco de pandemia aumenta com a deterioração dos serviços de saúde pública, o agrocapitalismo e os mecanismos de controle da indústria farmacêutica mundial. A entrevista é de Euclides Santos Mendes e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 03-05-2009.

"À maioria da humanidade falta o acesso aos fármacos antigripais", complementa. No que se refere ao combate à gripe suína no México, Davis critica os países ricos, que, segundo ele, "têm fracassado totalmente em transferir biotecnologia avançada às linhas de frente da doença". Para driblar os riscos causados pelo avanço de epidemias, ele defende, na entrevista abaixo, que o acesso aos remédios se torne um direito humano em escala global.

Eis a entrevista.

A gripe suína pode ser considerada uma tragédia sanitária e também ambiental? Como o epicentro do ataque [do vírus] se localiza em uma vila pobre perto de uma grande propriedade norte-americana de criação de porcos no Estado de Veracruz [no México], torna-se óbvio que isso [a gripe suína] é mais como Bhopal [cidade indiana onde, em 1984, vazamento de gases letais da fábrica de agrotóxicos Union Carbide matou milhares de pessoas] do que algum ato anônimo da natureza.

Os EUA, que são um dos países mais afetados pela gripe suína, estão preparados para situações desse tipo? Antes de mais nada, à maioria da humanidade falta o acesso aos fármacos antigripais. Muitas nações da OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico] estão construindo linhas "maginot" [de defesa] bacteriológicas -

fortalezas biológicas - , mais do que construindo capacidade de resposta ao redor do mundo. A maioria das linhas de produção de antivirais e de vacinas no mundo está concentrada na Europa Ocidental. Seis anos atrás, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recusou pedidos da Índia (e possivelmente do Brasil) para permitir a fabricação de genéricos do Tamiflu [medicamento usado contra a gripe suína]. O monopólio sobre patentes de drogas [farmacêuticas] -assim como o interesse lento em desenvolver antivirais, vírus e antibióticos novos- é uma enorme barreira na luta contra doenças emergentes. Os remédios de salvamento devem ser um direito humano global: a OMS precisa se comprometer com o desenvolvimento de vacinas no mundo. Simultaneamente, os países mais ricos têm fracassado totalmente em transferir biotecnologia avançada às linhas de frente da doença. A Cidade do México tem uma população de 22 milhões de pessoas e médicos famosos mundialmente. Contudo a análise do vírus dos suínos teve que ser executada em Winnipeg, no Canadá, que tem menos de 3% da população do DF [Distrito Federal, onde está localizada a capital mexicana]. Nos EUA, enquanto isso, há uma desigualdade tremenda numa situação de pandemia. As imensas reduções na capacidade de atendimento da saúde pública afetam os mais pobres, e as áreas do centro das cidades são mal equipadas para tratar qualquer tipo de demanda de cuidado intensivo. Nova York parece estar bem, mas os hospitais de Los Angeles foram inundados há dez anos por uma versão mais severa da gripe sazonal que ocorre normalmente.

O senhor concorda com as críticas do filósofo Peter Singer, que tem atacado a massificação de rebanhos para consumo por levarem os animais a desenvolver estresse e doenças? A revolução da indústria de rebanhos ocorrida nos últimos 20 anos tem sido um desastre planetário: desloca milhões de pequenos agricultores e rancheiros, enquanto acelera a evolução de novos e mais perigosos elementos causadores de doenças.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

TRANSIÇÃO PARA UMA SOCIEDADE PÓS-CARBONO !

Diário do Nordeste, 26-04-2009. " A Transição diz respeito à construção de resiliência - estabelecer os novos sistemas em seus lugares de modo a permitir que uma dada comunidade seja tão auto-sustentável quanto possível, oferecendo-lhe suporte aos tremores sociais que virão quando o combustível aumentar dramaticamente, quando a mudança climática intensificar-se, e, talvez, mais breve que imaginávamos, a sociedade industrial esfiapar-se ou colapsar-se inteiramente. Ao longo de uma geração, os movimentos ambientais ensinaram-nos a mudar nossos estilos de vida para evitarmos consequências catastróficas. A Transição nos fala dessas consequências que estão, agora, irreversivelmente acionadas; precisamos revolucionar nossas vidas se quisermos sobreviver", foi o que afirmou R. Hopkins, em entrevista no New York Times. No Brasil, os Ministérios da Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente assinaram portaria para criar o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, com a participação de 300 cientistas. Para conversar sobre essas questões que se tornaram tão nossas, especialmente nas celebrações de 22 de Abril, dia Mundial da Terra, o Diário do Nordeste, 26-04-2009, entrevistou o Prof. Dr. Blake Poland, docente na Dalla Lana Escola de Saúde Pública e Co-Diretor da Rede de Pesquisa em Justiça para Saúde Ambiental Urbana na Universidade de Toronto (Canadá). A entrevista é de Giovanna Sampaio. Eis a entrevista.
Porque é o momento para criamos novas estratégias de convívio social e resiliência comunitária?
Existe um conjunto de fatores que podemos identificar no que diz respeito às exigências de uma redução para o consumo de combustíveis fósseis, bem como razões que também ressoam às nossas aspirações pessoais (daquilo que buscamos está associado à minimização da nossa dependência do óleo). No grupo de fatores que demandam nossa atenção, figuram três eixos. Primeiro, o da degradação social e ambiental, onde o óleo barato tornou possíveis as trocas e operações da economia globalizada que exploram a natureza e as pessoas, desdobrando-se em conseqüências devastadoras para ambas. Em segundo lugar, a mudança climática, onde podemos aguardar novos acordos internacionais que designarão um preço ao carbono, visando reduzir o volume de combustíveis fósseis consumidos no mundo. Essas atividades irão impor um custo maior ao consumo de combustíveis fósseis, forçando-os tornarem-se menos desejáveis para o nosso cotidiano. Terceiro, a crise do declínio dos combustíveis fósseis (Peak Oil): de acordo com uma grande variedade de fontes, muitos (se não a maioria) dos grandes reservatórios de óleo já ultrapassaram o nível máximo em termos de capacidade de produção, ou taxas de extração, adentrando uma faixa de declínio ou saturação, em termos de 4-8% menor a cada ano. Novas descobertas e as tentativas de exploração de fontes não-convencionais de óleo não são capazes de atenuar essas quedas projetadas. A medida que a nossa demanda supera a oferta, vislumbra-se o aumento significativo nos preços de combustíveis fósseis, e, consequentemente, a escassez, o racionamento, a escalada de disputas e guerras por óleo, além de conflitos sociais interrelacionados.
Há um segundo grupo de fatores que está próximo do que o senhor acredita que desejamos como mudanças? Sim três outros eixos de fatores. Primeiro, no tocante aos benefícios econômicos e políticos: países que já se comprometeram a reduzir sua dependência a combustíveis fósseis (Suécia que se determinou a abolir sua dependência ao óleo até o final da próxima década) estão usufruindo dos benefícios econômicos promovidos através do investimento em novas tecnologias (a indústria de painéis solares na Alemanha já emprega um número maior de funcionários que sua indústria automobilística; a Dinamarca exporta tecnologia eólica por todo o mundo etc). Nos próximos anos, adotares sistemas de créditos de carbono, com limites estabelecidos entre usuários e o manejo de créditos remanescentes entre aqueles que não atingiram suas frações de consumo. Em cenários políticos como estes, o respeito público não será advindo de campanhas militares, mas, ao contrário, de uma capacidade para inovar e liderar as mudanças. Um segundo grupo de fatores - o crescimento humano centrado na vida: a medida que aprenderemos a substituir o paradigma dessa Era Industrial, expresso em termos de controle, dominação, exploração de pessoas e da natureza, manipulação e imposição de uma ordem, para um novo paradigma de relações que se torna parceiro da vida, podemos descobrir, ao reconhecermos a complexidade intrínseca da natureza e do convívio junto aos limites do que é sustentável, que o ´progresso´ também requer uma escuta e confiança à vida. Grandes empresas na área química e na produção de bens já estão desenvolvendo novas tecnologias a partir da mímica de processos naturais (aranhas que produzem, como menos gasto de energia, tecidos e estruturas extremamente resistentes). O terceiro fator importante é a resiliência comunitária. Muito embora seja requerida, no contexto da Transição para uma Sociedade Pós-Carbono, uma participação substancial de organismos internacionais (Nações Unidas), governos nacionais e autoridades públicas, é improvável que estes atores sejam suficientes para atender às necessidades e desafios das comunidades. Também não se espera dos indivíduos, por eles mesmos, solucionarem tais desafios (´esverdiando´ seus hábitos de consumo, qual seja, por exemplo, a estratégia mais recorrente nos EUA). É essencial desenvolver uma habilidade local para coletivamente superar e aprender com as dificuldades, construindo redes de suporte, aprendizado e conhecimento.
E sobre as novas relações advindas da Sociedade Pós-Carbono? Estamos falando das nossas relações sociais que estarão por ser reinventadas, muito embora saibamos que teremos que implementar algo como uma relocalização na produção de alimentação, vestimenta, moradia, energia, etc, uma vez que será dispendioso transportar nossas necessidades por navios e caminhões (de outros países, de outros estados; nos EUA, uma refeição habitual, da sua fonte de cultivo até a chegada ao consumir final, deslocou-se alguns milhares de quilômetros). Sabemos que o agronegócio em escala de produção industrial completamente dependente de óleo será substituído por sistemas de cultivo orgânico ou de permacultura, em vista de aumento do custo no consumo de óleo que tornará aquelas práticas inviáveis. Em um sentido, comunidades menores, aproximadas em seu convívio, recursos e fontes de produção, cujos deslocamentos sejam possíveis a pé, tendem a promover uma atmosfera socialmente mais vibrante e comunitariamente energizada. Lugares como este fazem parte das nossas aspirações humanas coletivas.
O que podemos fazer, como pessoas e cidadãos, para facilitar discussão e mudança social acerca de uma Sociedade Pós-Carbono e a construção de um Movimento de Transição? Já existem inúmeros grupos e projetos desenvolvendo atividades, em todo o mundo, ao redor de questões como essas, desde projetos focados na construção de habilidades específicas, até iniciativas mais amplas, em vários níveis. Um projeto interessante, que merece destaque, é o Transition Town Movement (Movimento de Transição da Cidade), iniciado na Inglaterra e que se espalhou em centenas de outras comunidades. É um movimento social que está descrito no livro ´The Transition Book´ (2008), de Rob Hopkins. Esse livro e o website do movimento descrevem iniciativas comunitárias que prospectam capacidades adaptativas, treinamento em capacidades técnicas, criação de jardins comunitários multifuncionais, projetos de demonstração para moradias auto-sustentáveis (que não estejam, necessariamente, conectadas aos serviços de energia, água, gás).
Como percebe que as dramáticas mudanças climáticas em curso não ´parecem´ ser um tema importante para a maioria das pessoas, considerando que estas nos impactam indistintamente? É verdade que se trata de um imenso desafio, sobretudo se considerarmos que existe um espaço de tempo entre o lançamento do carbono na atmosfera (consumo e combustão de material fóssil como o petróleo e o carvão) e a mudança climática decorrente. Alguns comentadores entendem que a questão do declínio do óleo é mais compreensível e os impactos mais tangíveis às realidades das pessoas. Contudo, será necessário trabalhar com ambas as questões: a mudança climática e o declínio do óleo/Transição para uma Sociedade Pós-Carbono. É importante considerar ambos os eixos pois algumas aparentes ´soluções´ ao declínio do óleo agridem e tornam a questão da mudança climática, e vice-versa.
Quais as oportunidades com as quais poderíamos nos valer para responder aos desafios dessa sociedade que está sendo construída nas próximas décadas? De fato, esse é um ponto relevante acerca da Transição. Estamos a falar de um enorme desafio porém, também se trata de uma oportunidade única para criar as fundações de uma sociedade equitativa e sustentável. Uma grande mudança, contudo, alguns países, regiões, grupos já estão no curso de mudanças incríveis. Não é preciso buscar alhures por respostas, se lembrarmos, como Leonardo Boff frequentemente ensina, que não chegaremos muito longe com uma solução utilizando-se do mesmo pensamento que nos criou o problema. São mudanças fundamentais que não se esgotam, apenas, em nossas práticas tecnológicas, mas, também, refletem-se na maneira de pensamentos e compreendermo-nos. Tratam-se de questões complexas para serem desenvolvidas por uma abordagem limitada do capitalismo atual, que simplesmente busca administrar problemas, acrescentando mais burocracia, mais regulação, mais ordenamento, mais controle, mais monitoramento, etc. Algumas dessas atividades serão necessárias. Todavia, serão insuficientes, e, para algumas questões específicas, serão absolutamente contra producentes. Uma ação essencial para essa Transição é uma atitude que abre mão da dominação, da imposição, da manipulação sobre a vida e sobre o outro. Haveremos de encontrar novas maneiras para facilitarmos quais sejam as contribuições únicas que cada um pode oferecer no curso dessa Transição real, em termos de permitir, através de elementos individuais, coletivos e estruturais, como possibilitar e dar suporte aos potenciais da criatividade humana. Esse é o projeto social mais significativo na história humana moderna.
Podemos afirmar que o ´Peak Oil´ ainda não alcançou o debate público? Gostaria de deixar claro no que diz respeito ao tema do ´Peak Oil´, sublinhando que essa é também uma nova questão no Canadá. Eu quase não tenho com quem discutir a respeito dessa temática em minha Universidade. Contudo, é também uma situação que se modifica rapidamente, por outros meios. Já temos disponível, em língua inglesa, uma variedade de artigos e comentários sobre Peak Oil em alguns dos nossos maiores jornais, e ainda na primeira semana de abril, o economista chefe de um dos nossos maiores bancos (CIBC World Markets) abriu mão de sua vaga para dedicar-se ao debate público dessa questão. Outros intelectuais proeminentes do Canadá ( Thomas Homer-Dixon, dentre eles, autor de ´The Upside Down´) também estão trabalhando nessas questões junto às grandes corporações. Já contamos com uma dezena de livros acerca do assunto, em sua maioria escritos por americanos, e, pelo menos, 6 filmes dedicados à relevância da temática. Também existem movimentos organizados pela sociedade civil, com informações na Internet. Ainda se trata de algo muito novo, por exemplo, ao nível do debate público e da articulação política formal (Canadá e EUA estão entre os piores na emissão per capita de carbono e consumo de energia).
Considera este o momento oportuno para discutir essa transição no Brasil? Por que? Sim. Até onde compreendo, já existem grandes áreas de conhecimento, discursos e práticas com as quais poderíamos construir algo novo. Vocês já construíram essa enorme infraestrutura na produção e distribuição de etanol a partir da cana-de-açúcar, um modelo que causa inveja ao restante do mundo (embora exista a preocupação no uso da agricultura para produzir combustível em vez de comida). Essa questão não se restringe aos aspectos econômicos, na medida em que também enseja aspectos políticos, como de ´segurança energética´. Em Fortaleza existe a iniciativa de parques eólicos, um número de projetos associados à energia solar e a produção de energia através de suportes cinéticos (movimento das ondas do mar), através de parcerias entre instituições públicas e privadas, mediadas pela UFC e outros centros de pesquisa. Assim, já existe uma compreensão básica acerca da necessidade na produção de fontes alternativas de energia por razões ambientais, econômicas, políticas, que nos apresentam um contexto para localizar a racionalidade do Peak Oil, e os esforços sociais na transição para uma sociedade pós-carbono. Se considerarmos a indústria do turismo e seu impacto, decorrente de preços impraticáveis para os usuários regulares, a partir do aumento os preços de combustíveis, então, estamos, sim, a considerar aspectos sociais relevantes.
O que significaria o impacto em nossas praias do aumento do nível global dos oceanos? Como seria a vida em Fortaleza sem a presença de ´praias´, o que isso significa em termos culturais?
Estamos, portanto, considerando aspectos psicossociais desse impacto. É necessário abordarmos as facetas de uma mesma questão, que estão diretamente relacionadas à vida cotidiana e experiências, seja no Brasil ou no Canadá, ainda que impactados de diferentes formas. Estamos desenvolvendo um projeto piloto (com o prof. Francisco Cavalcante Jr/UFC), cujo objetivo é acessar essas idéias de uma maneira culturalmente apropriada, significativa e transformadora. Temos um compromisso de escutar os cidadãos de Fortaleza e de Toronto sobre essas questões, esperando que eles possam nos ensinar, a partir das suas experiências, quais os modos de trabalhar o tema que mais ressonam com suas realidades.
Quando o Sr. apresenta a idéia da Crise do Declínio do Óleo e a Transição para uma Sociedade Pós-Carbono, trata-se de uma extensão dos Movimentos Sociais da metade do último século, detradição ecológica e libertária? Existem, de fato, muitas fontes, grupos e tradições que nos convocam a atenção para algum tipo de Transição, dentre as quais, apropostas do EcoSocialismo, dos movimentos de Justiça Ambiental, EcoFeminismo etc. Minha própria formação é oriunda de uma tradição Crítica em Saúde Pública (v.g., determinantes sociais da saúde etc), meus colegas brasileiros estão enraizados em uma vertente de Psicologia Humanista e Salutogênese. Eu, particularmente, considero este diálogo interdisciplinar muitíssimo estimulante. Não seremos capazes de realizar essa Transição para uma Sociedade Pós-Carbono e responder aos seus desafios, uma enorme mudança que é tanto necessária como desejável, caso nos fixemos em apenas uma tradição ou compreensão. É, ao contrário, pela diversidade de modos de trabalho, desde movimentos de ativismo social até iniciativas pragmáticas ao nível comunitário, que teremos a chance de construir algo satisfatório.
O Sr. defende que deveríamos incluir elementos de análise tanto das Ciências Sociais como das Humanidades, de modo a sermos capazes de honrar a complexidade do processo de Transição. Quais os critérios, em termos do indivíduo, do coletivo e do social, considera importante para essa discussão?
Sim, a Transição irá demander apoio e mudança substanciais aos níveis individuais, coletivos e sociais. A maior parte das questões técnicas associadas à Transição (energia alternativa, transporte público, cultivo orgânico, residências autosustentáveis, filtração natural de água etc) foram desenvolvidos e submetidos ao teste de campo, ou já estão em desenvolvimento. No entanto, o manejo social para alguns aspectos da Transição é o que me preocupa, porquanto existe um risco de medo (ou, até mesmo, pânico) que poderia favorecer conflitos sociais, enfraquecimento de instituições e exacerbar, ainda mais, a crise. Nesse sentido, as Ciências Sociais e as Humanidades tem muito a contribuir no que diz respeito à facilitação de mudança social. Eu considero, de forma especial, a relevância de concentrar parte da nossa atenção para a criação ou preservação desses elementos do capital ou tecido social onde estamos inseridos, que possa nos auxiliar uma capaci dade de escutar/acolher/encorajar essa necessária diversidade de olhares, habilidades e potenciais ao longo dos momentos difíceis, para que possamos fazer frente às tentações de subscrever so luções autocráticas de cima para baixo.
De maneira distinta de outros intelectuais que estão desenvolven do o tema, o Sr. enfatiza os elementos dos aspectos experienciais associados a mudança, na medida em que lhe parece necessário que a Transição não seja um processo moral coercitivo, ou imposto hierarquicamente, autoritariamente. Poderia nos falar sobre esse postulado que reconhece a Mudança Social e a Transição para uma Sociedade Pós-Carbono a partir de uma confiança na vida?
Temos construído, em parceria com o meu colega, Dr. Francisco Cavalcante Jr (docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará), cujo trabalho numa perspectiva humanista e da pedagogia crítica de Paulo Freire, e mais recente numa abordagem de florescimento humano e tendência formativa dos organismos, um modelo que reconhece que a capacidade de mudança será ativada na medida que as pessoas sejam tocadas de modo particular, em um processo de aprendizado que é autodirigido e centrado na construção significativa de suas experiências. Muito embora algum nível de mudança em políticas governamentais seja importante (v.g., subsídios para o desenvolvimento de energia alternativa, investimento em transporte público etc), muitos aspectos da Transição (e especialmente aqueles que demandam mudanças nos padrões de vida domésticos) irão requisitar o engajamento inteiro das pessoas, não como uma extensão do medo, porém, e sobretudo, por uma aspiração comum de que elas mesmas e as pessoas ao seu redor aspiram uma vida melhor e de anseios mais significativos. Esse tipo de relação empática com a vida é algo que as comunidades aborígenes consideravam reverenciável e sagrada. Podemos, de alguma maneira, resgatar essa sabedoria humana que abraça e acolhe um paradigma de sustentabilidade nos limites e capacidades da natureza, um paradigma que poderá nos restituir a confiança pela vida.
Compartilhe as idéias do projeto que está sendo desenvolvido com universidades locais no Brasil, como, por exemplo, a Universidade Federal do Ceará?
Recebemos um pequeno financiamento do Centre for Urban Health Initiatives da Universidade de Toronto para conduzirmos um projeto-piloto de 12 meses, em ambas as cidades, explorando o potencial de abordagens de aprendizado centradas nas experiências pessoais como mediadoras na catalização de questões que possam favorecer a Transição. Ainda estamos desenvolvendo alguns detalhes do projeto, cujo aceite final foi emitido no início de abril, todavia, o projeto envolverá ações presenciais e à distância, com o auxílio da Profa. Dra. Renate Pitrik-Motschnig, da Universidade de Viena (Áustria), cuja área de especialização é na aprendizagem significativa on-line.
Poderíamos compreender que seu convite para uma transformação social poderia ser compreendido como uma nova utopia para o viver humano?
Sim. Eu considero que algum tipo de visada é necessário, de modo que não sejamos apenas modificados pelo medo ou senso iminente de perda. Certamente, sou criticado por outros colegas que me enxergam como utópico, porém, entendo que é necessário convocar as aspirações humanas perenes e mais elevadas de paz, justiça, equidade, harmonia, bem como invocar as condições que permitam uma experiência de florescimento humano, parceria e harmonia com a vida. Isso não significa que nos façamos cegos para as injustiças presentes, ou enganarmos a nós mesmos supondo que será fácil. É exatamente o contrário. Contudo, como me ensinou um colega brasileiro, também envolvido nesse projeto, o psicólogo André Feitosa, nós fomos capazes de enfrentar a Transição do Pós-Guerra e criar um Estado Social do Bem-Estar. Tratou-se de uma enorme conquista humana que, literalmente, redefiniu nossa organização social. Se formos capazes de realizar essa travessia, então, ainda podemos ser capazes, novamente, de realizar uma mudança, talvez, para uma conquista maior. Comecemos, pois.