Vaticano e Transgênicos: bons porque podem matar a fome do mundo
A Pontifícia Academia das Ciências do Vaticano está promovendo uma "semana de estudos" entre os dias 15 e 29 de maio, em Roma, sobre organismos geneticamente modificados [OGMs ou transgênicos], liderada pelo cientista alemão Ingo Potrykus, católico inventor do "golden rice" [ou arroz de ouro]. O encontro reúne aproximadamente 40 cientistas e ativistas, cuja grande maioria concorda com Potrykus que a oposição aos transgênicos está custando vidas e atrapalhando o caminho de uma segunda "Revolução Verde" no mundo em desenvolvimento.
Enquanto isso, uma pequena demonstração nesta segunda-feira, 16, de manhã, do outro lado de Roma, bem longe do Vaticano, apresentou a voz católica antitransgênicos, que não está representada no encontro da Academia das Ciências. Um painél dizia: "Pontifícia Academia, não se alie a esses que, promovendo os OGMs, contribuem com a fome no mundo".
John L. Allen Jr., do sítio National Catholic Reporter, 19-05-2009, conversou com dois representantes de ambas as posições, em entrevistas que refletem as duas visões do debate. Uma delas foi realizada com o professor Bruce Chassy, especialista em segurança alimentar da Universidade Urbana-Champaign, de Illinois, nos Estados Unidos, e um dos participantes da semana de estudos do Vaticano.
Chassy também atuou como conselheiro da Organização Mundial da Saúde e do U.S. Food and Drug Administration [órgão que faz o controle dos alimentos nos EUA]. Também foi presidente do Painel sobre Segurança Alimentar e Nutrição do Institute of Food Technologists.
Ele está entre os cerca de 40 participantes da "Semana de Estudos" sobre transgênicos da Pontifícia Academia das Ciências e defende que um "impressionante consenso científico" dá suporte à segurança e efetividade dos cultivos geneticamente modificado. Para Chassy, essa é uma questão moral, assim como científica e regulatória. Ele acredita que a demora na adoção do "golden rice" na última década pode ter custado as vidas de cerca de 10 milhões de crianças no mundo em desenvolvimento. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Qual é a sua opinião sobre o debate a respeito dos OGMs?
Realmente, ele não tem a ver com ciência. A rejeição aos transgênicos tem a ver com política, com ideologia, com comércio. É um monte de coisas, mas não é ciência. A ciência é muito clara.
Por "muito clara" o senhor se refere a que é muito claro que os transgênicos são seguros?
Correto. Eles são provavelmente mais seguros do que os alimentos convencionais e mais seguros, sem dúvida, do que os alimentos orgânicos. É o extremo oposto da hierarquia de risco sugerida por aqueles que se opõem aos transgênicos.
Por que o senhor diz que os transgênicos são mais seguros do que os produtos orgânicos?
Primeiro, nunca houve uma avaliação de segurança, de nenhum tipo, dos produtos orgânicos, assim como muitos dos alimentos convencionais que temos. Segundo, conceitualmente, produzir um alimento geneticamente modificado é, na verdade, menos invasivo do que a produção convencional. É menos provável que ele produza efeitos inesperados. Terceiro, a afirmação de que a agricultura orgânica é melhor para o meio ambiente está baseada em uma crença ideológica de que usar materiais naturais para corrigir o solo é melhor do que usar químicos. Na verdade, não há nenhuma evidência disso. Há um impressionante consenso científico com relação à segurança dos transgênicos.
No abstract do seu artigo, o senhor diz que a resistência aos transgênicos colabora para a "extrema desvantagem dos famintos e dos pobres". O que o senhor quer dizer?
A África, por exemplo, está muito na esfera de influência europeia. Seus líderes e intelectuais, incluindo pessoas da Igreja, são treinados na Europa. O comércio da África é com a Europa. Em muitos casos, há evidências diretas de que eles foram chantageados para não usar transgênicos, porque lhes disseram que as companhias europeias não iriam mais negociar com eles.
Eu posso lhe assegurar que se você for ao encontro de um agricultor pobre na Uganda ou no Quênia, ou em qualquer outro lugar, e lhe perguntar se ele testaria uma variedade de milho que produziria cinco vezes mais mesmo quando há uma seca, ele diria: "Eu aceito". Se você lhe disser que tem uma semente que produz um milho mais nutritivo, de modo que os seus filhos não ficariam cegos nem morreriam de doenças diarreicas por falta de vitamina A, o agricultor irá testá-la. Os agricultores não são pessoas estúpidas. Só porque alguém é pobre e da zona rural da África não significa que eles sejam tolos.
Há uma atitude muito paternalista e neocolonial que surge na Europa a respeito da África. Eles saberiam mais do que os próprios africanos o que é bom para a África. Eu viajei para um grande número de países africanos e vi a pobreza. O problema é que essas pessoas não têm a habilidade para chegar a ter tecnologias por si mesmas. A tecnologia tem que passar pela Europa e pelos Estados Unidos, por essas várias fundações, e, se há um impasse político, ela nunca chegará a elas. Essa é a tragédia.
De onde o senhor acha que vem a oposição aos transgênicos?
Eu acho que esse é provavelmente um dos melhores exemplos de um nexo entre um conjunto de visões ideológicas e políticas, corporações, pessoas com interesses econômicos variados, se unindo. É uma espécie de estranha companhia.
Quem se beneficia com o bloqueio aos transgênicos?
Existem companhias químicas na Alemanha e na França que produzem pesticidas. Elas não querem sementes livres de pesticidas, que os seus defensores afirmam que os transgênicos poderiam trazer. Isso é ruim para os negócios delas. Os produtores de alimentos e os supermercados europeus podem colocar um preço mais alto nos alimentos "livres de químicos", bem acima do custo que eles têm para produzi-los. Eles fazem com que a sua marca própria, que é uma marca de desconto, se torne uma marca premium ao chamá-la de "livre de transgênicos". Há um monte de motivos econômicos.
É também uma ameaça ideológica. Eu acho que os defensores dos orgânicos estão preocupados com a perda de mercados, mas também rejeitam a tecnologia moderna. Há muitos pequenos agricultores orgânicos, que não visam o lucro, que são ideólogos; e muitas corporações multinacionais que produzem todos os alimentos "orgânicos" que nós comemos do mundo. Eis aqui um fato conhecido: 90% dos alimentos orgânicos dos EUA são produzidos por duas ou três multinacionais. Todas as grandes companhias de alimentos entraram nisso porque é rentável. São elas que estão empurrando isso para as prateleiras dos supermercados. Os pobres pequenos agricultores orgânicos aqui do lado nunca souberam como fazer isso, mas a grandes companhias sabem.
Há interesses dos governos europeus, que sabem que a sua agricultura não pode competir com a Austrália, o Brasil, a Argentina, os EUA, o Canadá – certamente não na grande agricultura extensiva, mesmo que eles tenham muita monoagricultura na Europa. Se você buscar uma estratégia para ser competitivo, se você bloquear a importação dos produtos de outros países porque são transgênicos e se mantiver livre de transgênicos, isso lhe dá uma preferência de mercado dentro da União Europeia. A UE é realmente um grande mercado. Isso é um bom negócio e também tem o efeito de que os governos europeus têm que pagar menos subsídios agrícolas, ao ponto de que seus próprios agricultores são capazes de vender sua própria produção com preços altos.
Quais são os outros fatores?
Há toda uma outra questão que está relacionada a um grupo que pessoas que foram deixadas para trás a partir da queda do socialismo. Se você tem essa perspectiva, que é muito rica na Europa e que está muito presente na Igreja, aonde você vai parar? Você vai ser antiglobalização, antimultinacionais, anticapitalismo. A parte inteligente do movimento antitransgênicos é que eles foram capazes de colocar a etiqueta "Monsanto e EUA" nos transgênicos.
Isso não ocorreu como um grande plano mestre, mas, da forma como se desenvolveu, as ONGs do meio ambiente, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, alguns governos europeus e muitas fundações de assistência de todo o tipo se juntaram em oposição aos transgênicos. Uma enorme quantidade de dinheiro foi investida no planejamento de uma série de mensagens de propaganda que emolduraram o debate e definiram as questões, em torno da metade dos anos 90. Esse trabalho dominante de enquadrar o debate é o que está ocorrendo hoje e é influenciado pela Igreja.
Eu acho que as pessoas não se dão conta de que a indústria dos transgênicos é, mundialmente, uma indústria de mais de um trilhão de dólares. Nós temos mais de 850 corporações nos EUA que funcionam nessa arena. Seu interesse último, na verdade, é político.
O objetivo dessa semana de estudos é dar voz ao consenso científico como o senhor o descreveu?
Em parte, essa conferência é Ingo Potrykus se pronunciando sobre anos de frustração. Eu tenho escrito sobre o seu "golden rice" e, honestamente, acredito que ele poderia salvar um milhão de pessoas por ano. Você pode imaginar a frustração desse homem. Ele é um católico devoto e acredita sinceramente que essa é a missão da Igreja. Ele entrou nisso por uma razão. Muito poucos cientistas podem dizer que eu escolhi esse projeto porque eu vi uma enorme enfermidade social que eu poderia curar. Nós geralmente não fazemos isso. E mais, ele é quase um cabeça-dura... Ele ficou e ficou nisso, e foi frustração após frustração. Então, você pode imaginar que, quando ele assumiu essa agenda, ele não iria trazer pessoas que lhe dissessem não. Ele sabe que não há uma objeção científica legítima. Então, ele trouxe para a mesa pessoas que poderiam descrever quais são os impedimentos, como se pode remover esses obstáculos e o que está sendo feito.
Essa é uma história que os críticos realmente não querem contar. Eles querem frear o "golden rice" por uma razão específica. O "golden rice" não pertence às companhias. Isso quebra a imagem de que esse é um produto norte-americano que foi empurrado ao mundo pelas multinacionais norte-americanas. Isso não funciona mais, porque ele não é norte-americano, é um trabalho do setor público. Ele está sendo usado na Índia, nas Filipinas e no Paquistão. E vai salvar vidas, vai funcionar, e eles vão ficar extremamente assustados.
E no fim das contas, que diferença faz aquilo que o Vaticano diz sobre os transgênicos?
Eu acredito que a Igreja é uma posição única para enfrentar essa questão, em primeiro lugar porque ela é muito grande. Ela também tem um valor central de que ajudar os pobres, os desfavorecidos, é algo bom. Ao viajar pelo mundo, conheci muitos católicos que realmente acreditam nessa missão, e isso lhes dá credibilidade.
Além disso, não há outras vozes centrais de autoridade moral no mundo. Muitas das Igrejas e das outras religiões não têm um papa. Eu assisti o processo da morte de um papa e da chegada de um novo, como um não católico, com todos os meus amigos. Ela é claramente a força moral mais organizada do mundo. Isso dá à Igreja uma autoridade moral única para se pronunciar sobre questões que impactam a condição humana.
Se o Vaticano estivesse por fazer uma declaração fortemente pró-transgênicos, o senhor acha que isso reconfiguraria o debate?
Sim, eu realmente acredito nisso. Em primeiro lugar, há muitos católicos que se opõem aos transgênicos, e é difícil ignorar totalmente o papa. Eu também acho que, se um papa estivesse por fazer isso, especialmente este papa, ele daria um argumento muito razoável. Eu acho que podemos oferecer isso para ele.
Eu não acho que esse vai ser o resultado deste encontro. Há muitas opiniões contrárias na Igreja. Eu tenho a impressão de que o papa quis que esse encontro ocorresse, porque é uma questão importante a ser discutida.
Uma declaração do Vaticano realmente dividiria a oposição. Parte da campanha de propaganda é capturar o alto nível moral. Quando a Igreja concorda com eles, ou quando alguns membros da Igreja concordam com eles, esse é um bom e feliz alto nível moral. Mas quando o nível moral mais alto do mundo diz que nós pensamos que essa é uma tecnologia benéfica, desde que usada para aliviar o sofrimento humano em vez de apenas gerar lucro, isso muda toda a fórmula.
Qual o futuro dos transgênicos?
Esse debate acabou. A ciência é muito clara. A Ásia está adotando a tecnologia. As Américas adotaram a tecnologia. A questão é quando o trem irá partir da estação na Europa, e também na África. São realmente esses dois continentes que entenderam tudo errado, e eles vão se dar conta no final, seja daqui a 10 ou 15 anos. Virá um tempo em que isso não será mais debatido, e todos nós estaremos cultivando transgênicos. Eu não sei o que os ativistas irão fazer para viver, mesmo que eu tenha certeza de que eles terão algum outro assunto.
A propósito, o senhor tem alguma relação financeira com a indústria de biotecnologia?
Não.
Eles financiam alguma de suas pesquisas?
Não. Eu não tenho nenhum subsídio. Uma vez, eu apresentei um seminário em que eu tive que pagar mil dólares na Dow Chemical Company. Eu não tenho ações. Eu não sei onde a minha aposentadoria está investida. Eu simplesmente não sou capitalista. De fato, eu sou um ignorante no que se refere ao capitalismo. Isso simplesmente não me interessa. Eu não tenho nada de conflito de interesses.
Qual o coração da argumentação moral em favor dos transgênicos?
Usar transgênicos não é o elixir que irá resolver a fome e a desnutrição do mundo. A fome existe porque a pobreza existe. A fome existe porque as pessoas não têm terra ou acesso aos mercados, porque há falhas na educação. Ou poderia ser escassez de chuvas, ou guerras civis, ou líderes corruptos. Há um número enorme de fatores que levam as pessoas a passar fome.
Os transgênicos se encaixam em um nicho muito estreito e muito técnico. Cerca de 60 a 70% dos famintos são pessoas do campo, em grande parte agricultores que produzem o seu próprio alimento. Se você puder lhes dar uma semente que irá produzir mais alimentos, eles podem alimentar a sua família e ter mais dinheiro para trazer o tipo de revolução que vimos na Índia e na China. A essência do que vimos na Índia e na China é que eles aprenderam a se alimentar por meio da Revolução Verde. Eles então geraram renda rural, que se tornou o motor de uma economia nacional a ser melhorada. Eles se viraram a partir da agricultura melhorada.
Isso certamente ajudaria os pobres e os famintos a serem capazes de produzir mais alimento. Haverá inovações na agricultura que não têm nada a ver com os transgênicos. As pessoas irão usar cultivos tradicionais para produzir sementes melhores. Alguém vai ser dar conta de como conseguir maquinários baratos, ou irrigação, ou boas estufas e boa armazenagem ou um bom conservante. Há muitas coisas que se pode fazer para ajudar os pobres, e a questão dos transgênicos foi exagerada além da conta. Os agriculturalistas que eu conheço e que querem usar os transgênicos veem-nos simplesmente como uma ferramenta em uma caixa de ferramentas. O porquê de as pessoas terem aproveitado essa ferramenta e criado essa enorme questão global desafia a credulidade.
que coisa!!!! tinha que ser a áfrica o exemplo.
ResponderExcluirelaine