domingo, 23 de agosto de 2009

Objetivo da ampliação das bases dos EUA na Colômbia é restringir a projeção do Brasil’, afirma Moniz Bandeira

O cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira (foto), um dos principais especialistas na história da diplomacia brasileira, analisa que "o objetivo da ampliação das bases (dos EUA) na Colômbia é restringir a projeção do poder político e militar do Brasil, frustrando iniciativas como a Unasul e o Conselho Sul-Americano de Defesa." A afirmação foi dada em entrevista a revista eletrônica Terra Magazine, 18-08-2009. Moniz Bandeira comenta ainda a liberação de documentos inéditos pelo Departamento de Estado dos EUA sobre as revelações, uma conversa entre os presidentes Emílio Garrastazú Médici e Richard Nixon, no Salão Oval da Casa Branca, em 9 de dezembro de 1971. O ditador Médici afirmou que o Brasil "estava trabalhando" pela derrubada do governo do chileno Salvador Allende. Para Moniz Bandeira, a íntegra da conversa "não surpreende". Eis a entrevista:
A conversa entre os presidentes Richard Nixon e Emílio Garrastazu Médici, em 1971, exposta em papéis liberados pelo Departamento de Estado dos EUA, modifica com intensidade os relatos já existentes sobre o papel do Brasil no golpe militar chileno?
A revelação do memorandum da conversa entre o general Emílio Garrastazú Médici e o presidente Richard Nixon não surpreende. Era perfeitamente imaginável que os dois chefes de governo conversaram sobre o assunto, quando Médici visitou os Estados Unidos. E conversaram não apenas sobre o Chile, como sobre o Uruguai, onde o Brasil, segundo o próprio Nixon revelou ao primeiro-ministro da Grã-Bretanha, ajudou a fraudar a eleição para evitar a vitória da Frente Ampla. Tudo isto está em meu livro Fórmula para o caos - A derrubada de Salvador Allende, lançado no ano passado, simultaneamente, no Brasil e no Chile (e este ano em Portugal).
Médici afirmou que o Brasil "estava trabalhando" pela sublevação das Forças Armadas do Chile. Como se deu esse entendimento com militares chilenos?
Os entendimentos foram efetuados através dos serviços de inteligência do Brasil, aos quais Médici encarregou a tarefa de ajudar a articulação do golpe, naturalmente em contacto com a CIA. O embaixador de Brasil no Chile, Antonio Cándido da Cámara Canto, era um homem de extrema direita e adversário do governo de Salvador Allende, mas o general Garrastazú Médici deixou a cargo dos militares a missão de articular com os militares chilenos e os dirigentes de Patria e Libertad, com a assistência da CIA, os planos para o golpe. Eduardo Díaz Herrera, dirigente de Patria y Libertad desenvolveu um plano que envolvia o Serviço Nacional de Informações (SNI) e os serviços de inteligência do Exército, Marinha e Aeronáutica do Brasil. Ele e Manuel Fuentes estiverem em Brasília e lá se reuniram com altos oficiais das Forças Armadas, entre os quais o general João Batista Figueiredo, chefe da Casa Militar da Presidência e o coronel Venceslau Malta. De acordo com o plano elaborado, se ocorresse uma cisão nas Forças Armadas, se o golpe não fosse institucional, as unidades militares insurgentes e as Brigadas Operativas y Fuerzas Especiales (BOFE) de Patria y Libertad, ocupariam as províncias do sul de Chile, apoiadas secretamente pelo Brasil e Argentina, cujas Forças Armadas lhes dariam assistência logística e o armamento necessário. Sobre isto escrevi em Fórmula para o caos com base na documentação brasileira.
Qual o nível de colaboração entre a ditadura brasileira e a CIA, na deposição de Salvador Allende?
Colaboração realmente houve, mas todo o processo de desestabilização do governo do presidente Salvador Allende foi financiado e conduzido pela CIA e pelos serviços de inteligência militar da Marinha e do Exército dos Estados Unidos. A participação do Brasil foi importante, mas secundária. Não foi fundamental.
Como o senhor avalia a política brasileira de liberação de documentos sobre a ditadura militar? Quais são os pontos que devem ser priorizados? Os documentos do SNI, que não foram incinerados nos anos 1980, estão disponíveis para a pesquisa no Arquivo Nacional, seção regional de Brasília. Também os do CIEX. Mas os arquivos do CIE, CENIMAR e CISA, as Forças Armadas relutam em entregar ao Arquivo Nacional, não obstante a determinação decretada pelo presidente Lula.
A ampliação das instalações militares americanas em território colombiano oferecem quais riscos para a segurança continental?
O objetivo da ampliação das bases na Colômbia é restringir a projeção do poder político e militar do Brasil, frustrando iniciativas como a Unasul e o Conselho Sul-Americano de Defesa. Essas instituições, que dão à América do Sul uma identidade própria, não convém aos Estados Unidos. Não se trata de risco para a segurança continental. A presença dos Estados Unidos sempre foi um fator de desestabilização em todas as regiões do mundo e seu objetivo com a ampliação das bases na Colômbia é fomentar um cisma e impedir a integração econômica e política da América do Sul. A ampliação das bases na Colômbia foi decerto planejada juntamente com a restauração da IV Frota no Atlântico Sul, visando a fortalecer a presença dos Estados Unidos na região e assegurar o controle de seus recursos naturais, como, por exemplo, a água e o petróleo.
Os EUA e a Colômbia caminham para um acordo bilateral. Isso será um erro diplomático do presidente Barack Obama na região? A ampliação das bases na Colômbia não constitui uma iniciativa do presidente Barack Obama. Ele enfrenta séria oposição interna e não controla todo o aparelho de governo. Não tem muitas condições de reverter a influência do complexo industrial-militar. Atualmente quem pauta a política exterior dos Estados Unidos não é propriamente o Departamento de Estado, mas o Departamento de Defesa, o Pentágono. A militarização da política exterior dos Estados Unidos, formalizada com a criação dos comandos militares, para as diversas regiões, inclusive a América Latina (USSouthern Command), tomou impulso com os atentados de 11 de setembro de 2001. Esses comandos atuam como consulados do Império Americano.
Caso se concretize a ampliação da presença militar americana, o Brasil deve reformular sua política para a Amazônia? Não há o que reformular na política para a Amazônia como conseqüência da ampliação das bases americanas na Colômbia. Há muitos anos militares dos Estados Unidos trabalham não só na Colômbia como nos demais países limítrofes da Amazônia. E as Forças Armadas estão conscientes da ameaça, ainda que pareça remota. Todos os anos elas realizam operações de treinamento, tendo como primeira hipótese de guerra o enfrentamento com uma potência tecnologicamente superior no teatro de guerra da Amazônia.

domingo, 16 de agosto de 2009

Trabalho escravo: um problema que persiste. Entrevista especial com Marcos Pedlowski

Marcos Pedlowski, nesta entrevista que concedeu à IHU On-Line, por telefone, tratou do trabalho escravo e do trabalho degradante. Ao tratar desses dois problemas, ele diferenciou-os e relacionou as formas como estão ocorrendo no país, revelando que não apenas na Amazônia há a ocorrência desses crimes, mas também em estados economicamente ricos, como São Paulo e Rio de Janeiro, ou culturalmente reconhecidos, como o Rio Grande do Sul e Paraná. Além disso, Marcos criticou duramente a MP 458, já conhecida como MP da grilagem. “Ela é um prêmio à grilagem”, definiu. O professor revelou também que há uma PEC parada há pelo menos cinco anos e que, se aprovada, certamente diminuiria ocorrências de trabalho escravo por aumentar a pressão e a repressão contra aqueles que cultivam esse problema. “Ela está sendo bloqueada pelo agronegócio com o beneplácito do governo Lula. Não há vontade política porque essa PEC trata de uma punição mais severa aos casos de trabalho escravo”, disse Marcos. Graduado e mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Marcos Pedlowski é doutor em Environmental Design And Planning, pela Virginia Tech, nos Estados Unidos, e pós-doutor pela Fairfield University, localizada no mesmo país. Atualmente, é professor na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Confira a entrevista.
IHU On-Line - De que forma a medida provisória 458 influenciará as ações no combate ao trabalho escravo? Marcos Pedlowski – Da forma como a MP 458 está sendo colocada, pode incentivar a disseminação do trabalho escravo. Eu sou totalmente contrário a essa MP, pois ela é um prêmio à grilagem. Temos um problema grave no Brasil, que são as chamadas terras devolutas, onde a grilagem é muito mais forte. Por exemplo, em São Paulo, a região do Pontal do Paranapanema, todo o conflito é em cima do fato de que as grandes fazendas foram feitas sobre terras devolutas. A MP 458, para mim, é uma concessão do governo Lula ao agronegócio e ela não vai, de maneira alguma, resolver a questão da terra na Amazônia. Passei 15 anos em Rondônia e não há disposição nem do governo federal, nem do governo estadual, e muito menos do municipal, de enfrentar o problema da ocupação de terras dentro de áreas de conservação, ou de áreas indígenas. Nesse sentido, a MP 458 não só é um prêmio à grilagem como vai agravar os conflitos dentro da Amazônia e, em relação ao trabalho escravo, só vai piorar. Ela não tem qualquer controle de quem é um posseiro legítimo. Isso é um completo descalabro.
IHU On-Line - E a PEC 438, pode sair?
Marcos Pedlowski – Existe todo um movimento que está concentrado na internet, neste momento, pelo desengavetamento da PEC 438, porque ela já tem um longo período de gestação e até hoje não saiu. Ela está sendo bloqueada pelo agronegócio com o beneplácito do governo Lula. Não há vontade política, porque essa PEC trata de uma punição mais severa aos casos de trabalho escravo. Ela já foi aprovada em primeiro turno; o problema é que nunca chegou ao segundo turno ou à consideração do presidente Lula. Essa PEC é de 2001, mas você sabe quando foi apresentada a primeira proposta de emenda constitucional em relação a isso? Foi em 1995. Era a PEC 232. A Comissão Especial do Trabalho Escravo aprovou em 2004 essa formulação da PEC 438, ou seja, estão há cinco anos com ela parada. Até o momento o que nós temos para aqueles empresários ou proprietários de terras que são pegos com escravos caracterizados pela lei, é a emissao de multas. Em muitos casos, eles recontratam os escravos, com o beneplácito do Ministério do Trabalho que ainda dá as carteiras de trabalho.
IHU On-Line – A PEC 438 trata também do trabalho degradante?
Marcos Pedlowski – Acredito que a PEC 438 seria mais abrangente se falasse no trabalho degradante, mas ela pune mais severamente a questão do trabalho escravo. Ela desapropria e o “patrão” não ganharia nada com a desapropriação. Com a lei atual, o “cara” é desapropriado e ainda sai ganhando dinheiro. Temos que mudar a legislação e deixar de tornar a questão do trabalho escravo como um prêmio para o escravocrata. A PEC não seria o ideal, a solução definitiva, pois esse problema é muito mais profundo, mas puniria mais claramente. Por isso mesmo ela está parada.
IHU On-Line - Como o senhor vê as posições do governo em meio a essa questão?
Marcos Pedlowski – Eu penso, friamente, que o governo Lula está prisioneiro das suas alianças políticas. Trata-se de um governo neoliberal, com discurso de esquerda, bastante conservador. Um governo assim depende do balanço de poder que tem dentro do Congresso. O governo federal, nesse momento, está prisioneiro dos seus acordos políticos e retrocedeu. Quando Lula assumiu, FHC tinha deixado um Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, uma base sobre a qual o governo Lula poderia ter avançado. Mas não, ele se mantém numa postura de retrocesso que se tinha no governo anterior. Outra coisa: o Ministério dos Direitos Humanos dissolveu questões fundamentais. O direito ao trabalho é fundamental; você tem que ter como trabalhar em condições dignas, mas temos uma agenda de direitos humanos que é meio performática. Mas a secretária nacional de direitos humanos não falou nada sobre trabalho escravo e isso, para mim, é uma omissão muito séria.
IHU On-Line - Aonde está o trabalho escravo? Marcos Pedlowski – Saiu uma lista suja do trabalho escravo em julho de 2009 que indica bem essa questão. Muitas vezes o trabalho escravo está caracterizado como trabalho degradante e isso faz com que tenhamos eventos como os que tivemos recentemente aqui no norte fluminense, em que 500 pessoas foram libertadas. Tivemos também eventos como esse na Bahia, que é um estado com muitos casos de libertação de escravos. Além disso, há registros de casos no Paraná, São Paulo – onde o problema é muito grave – e também no Rio Grande do Sul. Isso, para mim, não é surpreendente e demonstra que a questão do trabalho escravo não está resumida aos rincões da Amazônia. Na verdade, quando se fala, parece que é só na Amazônia onde há registros de trabalho escravo e não em outros estados brasileiros. Temos trabalho escravo na primeira economia do país, que é São Paulo. Temos também na segunda economia do país, que é o Rio de Janeiro. Além de estados considerados mais desenvolvidos culturalmente e politicamente, ainda que muitas vezes apareçam sob o rótulo de trabalho degradante. Como a fronteira do escravo e degradante é, para mim, falsa, o trabalho escravo pode estar efetivamente em qualquer lugar do Brasil, dadas as condições que temos de punição, repressão e identificação, pois estamos muito atrasados.
IHU On-Line – Por que os grandes agricultores – que concentram o maior número de trabalhadores escravizados – são também aqueles que mais recebem votos nas eleições?
Marcos Pedlowski – É porque nós temos, no Brasil, diversas heranças malditas. Nós nunca tratamos corretamente da questão da escravidão no país. A primeira menção ao uso social da terra aqui é de 1946 por força do Partido Comunista Brasileiro. Isso dá conta de que a modernização conservadora brasileira nunca resolveu problemas fundamentais da herança colonial. Aí você tem um padrão de modernização do Estado com bases podres, porque ela nunca se direciona a resolver dívidas históricas. Essa última fase das políticas de cotas e compensatórias não resolve isso, que tem a ver com o balanço político do país. Ou seja, se você fizer uma análise da economia política da formação do Estado brasileiro terá a explicação de porque o setor escravocrata é tão forte no Congresso. É porque, na verdade, houve uma modernização da economia, mas não houve uma modernização política e isso explica porque o latifúndio é tão forte no país. Não adianta nós termos esses “badulaques hightechs” se a base das relações políticas são ancoradas no atraso. Temos uma sociedade moderna atrasada. Isso repercute não apenas no trabalho escravo, mas em qualquer faceta, na distribuição de renda, no acesso à saúde, educação, habitação. Não é à toa que a sociedade brasileira é uma das mais desiguais do planeta, pois não fizemos essa negociação histórica com nosso passado colonial.
IHU On-Line – Por que o trabalho escravo na Amazônia é tão preocupante?
Marcos Pedlowski – Eu conheço bem a Amazônia. E vejo que há o desconhecimento de como o trabalho escravo está disseminado. O brasileiro é um grande desconhecedor do seu próprio país. Isso não acontece só conosco. Os estadunidenses são assim também. Então, o brasileiro que não mora no estado amazônico tem uma relação meio mitológica com a Amazônia, ela ocupa muito do imaginário da população. A falta de soberania na Amazônia faz isso. Acho que se superdimensiona o problema do trabalho escravo na Amazônia e obscurece o problema no restante do país. Agora, que a questão do trabalho escravo na Amazônia é muito séria, isso é! Porque, efetivamente, se o Estado nacional brasileiro é frágil em outras regiões, imagina na região que deixamos fora do processo efetivo até a década de 1970. A Amazônia representa 2/3 do país. Como fiscalizar uma região tão grande, com tão poucas pessoas, que sofrem ameaças dos grandes proprietários rurais, que muitas vezes são aliados dos políticos? Esse problema é muito grave na Amazônia, mas também em outras regiões do Brasil.
IHU On-Line - Como podemos entender as diferenças entre trabalho escravo e trabalho degradante?
Marcos Pedlowski – Essa é uma boa pergunta. Para mim, da forma como está tipificado, essa diferença é tênue. O trabalhador está dentro de uma propriedade com guarda armada, não pode sair dela, está endividado, abusado na extração da sua força de trabalho, está sendo fisicamente colocado em condições de extremo cansaço, mas está coagido a não sair. Isso é trabalho escravo. O trabalhador que está na mesma condição do primeiro exemplo e pode sair, só não sai porque está endividado até o último fio de cabelo, é vítima do trabalho degradante.
IHU On-Line - O que a lista suja do trabalho escravo fala sobre a política brasileira?
Marcos Pedlowski – Ela não pode ser totalmente negativa. Ela é um avanço porque permite que as empresas que compram a produção dessas fazendas possam ir rotineiramente verificar se a origem do seu produto não está associada ao trabalho escravo. Para mim, ela não é suficiente. Existem casos em que o produtor consegue se retirar da lista. A Petrobrás, por exemplo, pode identificar um produtor de etanol que faz uso do trabalho escravo e não compra mais esse produto dele. Agora, o Wall Mart e o Mc’Donalds decidiram não comprar mais da área de gado não certificada ou que tenha trabalho escravo. Essa lista ajuda, nesse sentido. Ainda assim, ela não contempla o conjunto dos eventos da escravidão. Ela é um avanço, mas não é suficiente.

domingo, 9 de agosto de 2009

''Os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo''. Entrevista especial com Andrea Fumagalli

Para o economista italiano Andrea Fumagalli, “a governança política e social baseada na dinâmica livre dos mercados financeiros não tem condições de garantir uma distribuição de renda adequada em relação à nova forma de acumulação e valorização do capitalismo cognitivo”. Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, “a estrutura da propriedade privada parece inadequada para desenvolver a cooperação social que é necessária para melhorar o processo de acumulação, baseado cada vez mais em conhecimento, relações e aprendizagem”. Fumagalli explica que “a compensação entre a propriedade intelectual e a necessidade de livre circulação e difusão do conhecimento é uma das causas da atual instabilidade estrutural. O conhecimento é um bem ‘comum’, e se ele é privatizado, sua valorização social diminui”. Ele explica por que considera que, atualmente, os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo. “Eles financiam a atividade da acumulação: a liquidez atraída para os mercados financeiros recompensa a reestruturação da produção que visa à exploração do conhecimento e ao controle de espaços externos aos negócios tradicionais”. Doutor em Economia Política, Andrea Fumagalli é atualmente professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Seus temas de interesse são teoria macroeconômica, teoria do circuito monetário; economia da inovação e da indústria, flexibilidade do mercado de trabalho e mutação do capitalismo contemporâneo: o paradigma do capitalismo cognitivo, entre outros. Dentre seus vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006), Bioeconomia e capitalismo cognitivo, Verso un nuovo paradigma di accumulazione (Roma: Carocci Editore, 2007), e La crisi economica globale (Verona: Ombre corte, 2009).
Confira a entrevista. IHU On-Line - O senhor pode falar brevemente sobre as dez teses que o grupo de pesquisadores da Universidade Nômade levantaram recentemente no sentido de tentar compreender a atual crise internacional? Andrea Fumagalli - As dez teses são fruto de uma discussão coletiva que começou com um seminário sobre a crise financeira, organizado pela Universidade Nômade, em Bolonha, nos dias 12 e 13 de setembro de 2008 e que continua até hoje. Marco Bascetta, Federico Chicchi, Andrea Fumagalli, Stefano Lucarelli, Christian Marazzi, Sandro Mezzadra, Cristina Morini, Antonio Negri, Gigi Roggero e Carlo Vercellone participaram dele, e eu redigi o texto. Podemos dizer que ele é o resultado do “intelecto geral” do movimento italiano, especialmente daquela parte que tem uma abordagem mais heterodoxa da análise marxista e provém da tradição do “operaísmo” (novo movimento operário).
IHU On-Line - O capitalismo está mesmo em crise? O que a caracteriza? Ela representa também a crise da teoria neoliberal? Andrea Fumagalli - Antes de mais nada, pensamos que a atual crise financeira é uma crise sistêmica. É a crise de todo o sistema capitalista que vem se desenvolvendo desde a década de 1990 até agora. Isso tem a ver com o fato de que, atualmente, os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo. Eles financiam a atividade da acumulação: a liquidez atraída para os mercados financeiros recompensa a reestruturação da produção que visa à exploração do conhecimento e ao controle de espaços externos aos negócios tradicionais. Isso quer dizer que as origens da crise e suas caracterizações têm a ver com os seguintes fatos: 1. A governança política e social baseada na dinâmica livre dos mercados financeiros não tem condições de garantir uma distribuição de renda adequada em relação à nova forma de acumulação e valorização do capitalismo cognitivo. A negociação individual, a incerteza de receitas estáveis por causa do aumento da precariedade, a redução de salários, principalmente nos países ocidentais, favorecem o aumento de uma dívida especulativa e instável, de um lado, e afetam negativamente a exploração das economias de ganho e de escala (portanto, os ganhos de produtividade), por outro. 2. A estrutura da propriedade privada parece inadequada para desenvolver a cooperação social que é necessária para melhorar o processo de acumulação, baseado cada vez mais em conhecimento, relações e aprendizagem (numa só palavra, no intelecto geral). A compensação entre a propriedade intelectual (o tipo de propriedade privada que substituiu parcialmente a propriedade privada de maquinário) e a necessidade de livre circulação e difusão do conhecimento é uma das causas da atual instabilidade estrutural. O conhecimento é um bem “comum”, e se ele é privatizado, sua valorização social diminui.
IHU On-Line - Quais as consequências do fato de esta crise ser sistêmica? Andrea Fumagalli – A principal é que ela necessita de intervenções sistêmicas e estruturais.
IHU On-Line - O que significa a crise da estrutura do biopoder capitalista atual? Andrea Fumagalli - Os mercados financeiros, redirecionando forçosamente parcelas crescentes das receitas do trabalho (como, por exemplo, pagamentos por demissão e seguridade social, diferentes das receitas que, através do Estado social, traduzem-se em programas estatais de saúde e instituições educacionais públicas), substituem o Estado como principal provedor de seguridade social e bem-estar. Desse ponto de vista, eles representam a privatização da esfera reprodutiva da vida. Por isso, exercem biopoder. A crise financeira é, consequentemente, uma crise da estrutura do atual biopoder capitalista. IHU On-Line - Que alternativas podemos imaginar neste momento, do ponto de vista econômico? Andrea Fumagalli - Pensamos que atualmente não há condições de implementar uma espécie de New Deal institucionalizado (como foi possível na década de 1930), isto é, um New Deal resultante de uma conciliação política entre o trabalho e o capital. Segue-se que podemos nos deparar com duas soluções possíveis: a primeira é um aumento na instabilidade geopolítica internacional (rumo a uma nova guerra global?), especialmente a fim de definir um novo equilíbrio hierárquico econômico global, em que os EUA perderão o controle unilateral das finanças e da tecnologia. A segunda é que um New Deal, que se baseie numa forma nova de distribuição de renda (por exemplo, renda básica) e ultrapasse a dicotomia entre propriedade privada e estatal rumo a uma propriedade “comum”, seja imposto pela força do movimento social, isto é, um New Deal a partir de baixo. Uma terceira oportunidade pode residir no desenvolvimento de uma nova trajetória econômica, técnica e social, que normalmente é chamada de “economia ecológica”, capaz de resolver qualquer problema com um salto forte no futuro. Mas sou cético quanto a ela, porque esta crise necessita de uma solução de curto prazo e respostas políticas imediatas e gerais.
IHU On-Line - Com esta crise, que outros valores ganham mais espaço no cenário atual? Qual o peso, por exemplo, que adquire o capitalismo cognitivo? Andrea Fumagalli - Penso que esta é a crise da implementação do capitalismo cognitivo, como a crise de 1929 foi a crise do taylorismo em seu início. A atual crise financeira, que se segue a outras ocorridas nos últimos 15 anos, destaca, de forma sistemática e estrutural, a inconsistência do mecanismo regulatório de acumulação e distribuição que o capitalismo cognitivo tentou se dar até agora. Além disso, com o advento do capitalismo cognitivo, o processo de valorização perde todas as unidades de mensuração quantitativa ligadas à produção material. Essas medições eram, de certa forma, definidas pelo conteúdo do trabalho necessário para a produção de mercadorias, mensurável com base na tangibilidade da produção e no tempo necessário para a produção. Com o advento do capitalismo cognitivo, a valorização tende a ser desencadeada em diferentes formas de trabalho ou mão de obra que cortam as horas de trabalho efetivamente verificadas para coincidir cada vez mais com o tempo geral da vida. Atualmente, o valor do trabalho ou da mão de obra está na base da acumulação capitalista e é também o valor do conhecimento, dos afetos e das relações, do imaginário e do simbólico. O resultado dessas transformações biopolíticas é a crise da medição tradicional do valor do trabalho ou da mão de obra e, junto com ela, a crise da forma do lucro. Uma solução “capitalista” possível era a medição da exploração da cooperação social e do intelecto geral por meio da dinâmica dos valores de mercado. Dessa maneira, o lucro era transformado em renda, e os mercados financeiros se tornaram o lugar onde o valor do trabalho ou da mão de obra era determinado, transformado num valor financeiro que não é outra coisa do que a expressão subjetiva das expectativas de lucros futuros gerados por mercados financeiros que, dessa forma, reivindicam renda. A atual crise financeira assinala o fim da ilusão de que o financiamento pode constituir uma unidade de medição do trabalho ou da mão de obra, ao menos no atual fracasso do capitalismo contemporâneo em termos de governança cognitiva. Consequentemente, a crise financeira é também uma crise da valorização capitalista.
IHU On-Line - Como tem aparecido nos debates econômicos a proposta de uma maior intervenção do Estado na economia? Andrea Fumagalli - É muito divertido o fato de que alguns dos economistas neoliberais que ainda há dois anos se horrorizavam com a ideia de intervenção estatal agora são a favor dela, talvez citando Keynes e/ou Marx. É claro que esse tipo de intervenção estatal é apenas instrumental. Ela segue o princípio da socialização dos prejuízos, a fim de recuperar no futuro a privatização dos lucros. Mas o principal problema é que a intervenção estatal só desempenha o papel de tapar os atuais buracos resultantes da falta de liquidez monetária (escassez de crédito) sem perspectivas de intervir nas razões estruturais da crise.
IHU On-Line - Neste momento de crise, qual a importância da união entre países, como é o caso da União Europeia, Mercosul, etc.? Andrea Fumagalli - Ela é muito importante. Um dos resultados desta crise é a morte definitiva da soberania do Estado nacional. Só é possível imaginar uma nova governança política supranacional. Naturalmente, essa possibilidade depende das relações dinâmicas entre as mais relevantes áreas do mundo, especialmente do eixo EUA-Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). Quanto à Europa, a crise demonstra as dificuldades do processo de construção da União Europeia econômica.
IHU On-Line - Que cenários de conflitos sociais são abertos pela crise financeira atual? Andrea Fumagalli - É bastante difícil responder a essa pergunta. Com certeza, essa crise pode ser uma grande oportunidade para os movimentos sociais globais. A razão disso reside no fato de que, no capitalismo cognitivo, não há espaço para uma reforma política institucional que seja capaz de reduzir a instabilidade que o caracteriza. Nenhum New Deal inovador é possível a não ser aquele impelido pelos movimentos sociais e pelas práticas da institucionalidade autônoma mediante a reapropriação de um sistema de bem-estar saqueado por interesses privados e congelado na política pública. Algumas das medidas que podem ser identificadas, desde a regulamentação dos salários baseada na proposta de uma renda básica até a produção com base na livre circulação do conhecimento, não são necessariamente incompatíveis com os sistemas de acumulação e subsunção do capital, como sugeriram vários teóricos neoliberais. De qualquer modo, novas campanhas de conflito social e reapropriação da riqueza comum podem ser iniciadas com a finalidade de solapar a própria base do sistema produtivo capitalista, isto é, a coerção do trabalho ou da mão de obra, a renda como ferramenta de chantagem e dominação de uma classe sobre outra e o princípio da propriedade privada dos meios de produção (ontem eram as máquinas, hoje também é o conhecimento). Em outras palavras, podemos afirmar que no capitalismo cognitivo uma possível conciliação social de origem keynesiana, mas adaptada às novas características do processo de acumulação, é apenas uma ilusão teórica, sendo inviável de um ponto de vista político. Uma política reformista plenamente desenvolvida (que tende a identificar uma forma de mediação entre o capital e o trabalho que seja satisfatória para ambos), capaz de garantir um paradigma estrutural estável do capitalismo cognitivo, não pode ser delineada atualmente. Assim, estamos num contexto histórico em que a dinâmica social não deixa espaço para o desenvolvimento de práticas reformistas e, acima de tudo, de “teorias” reformistas. O que se segue disso é que, percebendo que é a práxis que orienta a teoria, só o conflito e a capacidade de criar movimentos multitudinários podem permitir – como sempre – o progresso social da humanidade. Só o reavivamento de conflito social forte supranacional pode criar as condições para superar o estado atual de crise. Deparamo-nos com um aparente paradoxo: para tornar possíveis novas perspectivas reformistas e a estabilidade relativa do sistema capitalista, é necessária uma ação conjunta de natureza revolucionária, capaz de modificar os eixos sobre os quais se baseia a própria estrutura de comando capitalista. Precisamos, portanto, começar a imaginar uma sociedade pós-capitalista, ou, melhor ainda, a reelaborar a batalha pelo bem-estar [welfare] na crise como organização imediata das instituições do comum. Isso não elimina definitivamente as funções da mediação política, mas remove-as definitivamente das estruturas representativas e absorve-as no poder constituinte de práticas autônomas. Em outras palavras, estamos lidando com a transformação do “comunismo do capital” no “comunismo do intelecto geral” como força viva da sociedade contemporânea, capaz de desenvolver uma estrutura de “estar-comum” [commonfare] e de estabelecer-se como uma condição efetiva e real da opção humana pela liberdade e igualdade. Entre o “comunismo do capital” e as instituições do comum não há especulação ou relação linear de necessidade: trata-se, em outras palavras, de reapropriar-se coletivamente da riqueza social produzida, rompendo os dispositivos da subsunção e do comando capitalista na crise permanente. Em tal processo, o papel autônomo desempenhado pelos movimentos sociais é importante, não só como programa e ação de caráter político, mas também, e acima de tudo, como ponto de referência para as subjetividades, singularidades ou segmentos de classe mais duramente atingidos e fraudados pela crise. A capacidade de subsunção real da vida no processo de trabalho e produção, a difusão de imagens culturais e simbólicas onipresentes com base em elementos do individualismo (começando com o individualismo “proprietário”) e medidas de “segurança” constroem os principais pontos críticos do processo de controle social e cognitivo do comportamento dos trabalhadores e do proletariado. O alcance e a organização de uma subjetividade autônoma, que já vive nas práticas de resistência e produção de uma nova composição de classe, são condições necessárias para desencadear processos conflituosos, capazes de modificar as atuais hierarquias socioeconômicas. Deste ponto de vista, todos os excessos e insurgências que as subjetividades nomádicas conseguem alcançar e animar são bem-vindas. É só dessa maneira, como mil gotas que se encontram para formar um rio ou mil abelhas que formam um enxame, torna-se possível colocar em movimento formas de reapropriação da riqueza e do conhecimento, invertendo a dinâmica redistributiva, forçando os que causaram a crise a pagar por ela, repensando uma nova estrutura do bem-estar social e comum, imaginando novas formas de auto-organização e produção compatíveis com o respeito pelo meio ambiente e pela dignidade dos homens e mulheres que habitam este planeta.