segunda-feira, 31 de maio de 2010

Degradação ambiental na sociedade do risco. Até onde podemos ir? Entrevista especial com Carlos Machado

O MEIO AMBIENTE ME FASCINA: A LUTA POR MELHORES TRATAMENTOS AO MEIO É UMA DE MINHAS BANDEIRAS...
ENTÃO VEM ESTA ENTREVISTA, E FICO TORCENDO PARA QUE MUITOS MUDEM SUAS OPINIÕES...
"O consumo médio de um cidadão de um país rico pode ser até 40 vezes maior do que outro cidadão vivendo em um país pobre". Essa é a contastação do professor Carlos Machado de Freitas, que, em entrevista à IHU On-Line, realizada por e-mail, apontou que vivemos uma importante melhoria na qualidade de vida, mas que os indicadores ambientais têm piorado, cada vez mais, em função do aumento do consumo e da degradação e uso dos recursos naturais. Para ele, essa questão também “se acopla ao crescimento tanto da população como ao consumo per capita, que também cresceu ao longo do século XX, ao mesmo tempo acompanhado de grandes desigualdades”.
Carlos Machado de Freitas é historiador formado pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realizou o doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz e obteve o título de pós-doutor pela Universidade de São Paulo. Em suas pesquisas, o professor tem relacionado a ideia de sociedade do risco à questão da saúde. Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor tem analisado a questão dos riscos aplicados aos problemas ambientais. Que tipo de riscos estão presentes nesse cenário atual?
Carlos Machado – Temos pesquisado sobre os problemas ambientais porque consideramos que apontam para os processos de degradação que vêm atingindo os sistemas de suporte à vida, como os ciclos das águas, do clima e dos solos, o fornecimento de alimentos e de água, a disponibilidade de recursos naturais fundamentais a nossa vida. Assim, podemos falar que há melhoria da qualidade de vida (acoplada à ideia de que quanto mais consumo, melhor a qualidade de vida) tendo ao mesmo tempo a piora dos indicadores ambientais (quanto mais consumo, mais recursos naturais são utilizados ou degradados, de modo que não há uma fórmula mágica que permita aumentar o consumo sem aumentar os danos ambientais).E isto também se acopla ao crescimento, tanto da população como ao consumo per capita, que também cresceu ao longo do século XX, ao mesmo tempo acompanhado de grandes desigualdades, já que o consumo médio de um cidadão de um país rico pode ser até 40 vezes maior do que outro cidadão vivendo em um país pobre. Assim, consideramos que não podemos tratar de melhoria da qualidade de vida, sem tratar dos sistemas de suporte à vida, sendo que, na inter-relação entre um e outro, temos a questão do crescimento e das desigualdades.
IHU On-Line – E como o senhor avalia a agenda ambiental brasileira no que diz respeito aos projetos em desenvolvimento?
Carlos Machado – Tem avançado em muitos aspectos em termos de diagnósticos e até de proposições. Porém, creio que o mais importante é destacar que se encontra subordinada a um modelo de desenvolvimento econômico que considera que crescer explorando recursos naturais é o único caminho (uma visão do século passado ainda dominante nas mentes dos gestores) e é bastante setorial, não tendo avançado efetivamente na transversalidade fundamental para as ações. Um exemplo disto pode ser visto na poluição atmosférica resulta da emissão de gases poluente, principalmente dos carros questão da poluição atmosférica por veículos automotores. Enquanto o Ministério do Meio Ambiente procurava demonstrar os veículos automotores mais poluentes, colocando em discussão este tema até para as questões ligadas ao consumo, o governo incentivava que os consumidores comprassem mais carros novos, ao invés de investir na manutenção dos empregos do setor a partir de investimentos na produção de transportes coletivos. Não precisamos ir muito longe para ver os resultados disto, pois basta ficar refletindo sobre o tema em um engarrafamento nas grandes cidades, seja em um ônibus, seja em um carro.
IHU On-Line – O Brasil viveu, nos últimos verões, grandes problemas em função de causas naturais. Onde a ideia de sociedade do risco se apresenta em situações como essa?
Carlos Machado – Quando Ulrich Beck trata da questão da sociedade do risco, aponta para a capacidade das tecnologias perigosas tornarem-se difusas por cada parte, ao mesmo tempo em que temos a inadequação das formas tradicionais de processos políticos decisórios (que não incorporam os novos atores sociais) e do reducionismo científico (que não consegue tratar estes riscos e incertezas inerentes a este processo). Com isto, temos não só a reconfiguração de riscos tradicionais como o surgimento de novos. O debate sobre os eventos com causas "naturais" (que são determinadas socialmente em vários aspectos) também se reconfigura neste processo. Isso porque temos hoje eventos como enchentes e inundações que embora sejam em termos objetivos iguais as do passado, trazem como novidade o fato de muitas das suas causas estarem relacionadas desde o precário ou ausente planejamento urbano até as mudanças ambientais mais globais, como as climáticas, o que significa que as causas atuais e associadas ao homem podem ter consequências que transcendem as gerações presentes e que não encontram, nos mecanismos correntes, formas de controle (basta ver o fracasso do último acordo sobre o clima). É na reinterpretação destes riscos "antigos" ou mesmo no surgimento de novos riscos (nanotecnologia, por exemplo) que a sociedade do risco se aplica, pois, já não podemos separar o que é natural do que é social, ao mesmo tempo em que os mecanismos de decisão e compreensão se apresentam como insuficientes. Estes são sinais de uma crise que não é só ambiental, mas também social.
IHU On-Line – O progresso implica, necessariamente, em algum momento, efeitos catastróficos?Carlos Machado – A trajetória do homem sempre acompanhou história das mudanças ambientais em função da apropriação dos recursos naturais. Em um primeiro momento, relacionadas à sobrevivência, e num segundo momento, relacionadas às diversas formas de acumulação de poder, riquezas e distinção social. O que temos hoje é a potencialização do uso da natureza em uma escala muito maior, mediada pelas tecnologias que propiciam a acumulação de recursos.Até 1800, nunca havíamos ultrapassado um bilhão de habitantes. A partir daí, rapidamente passamos para seis bilhões em apenas 200 anos, sendo que demoramos cerca de 150 mil anos para chegar ao primeiro bilhão. Mas não só isto. Cada um de nós consome hoje, em média, uma quantidade muito maior de água, alimentos, energia etc. Nesta lógica, não temos como ter este crescimento (que é bastante desigual) sem gerar uma crise. A questão é até onde podemos ir.
IHU On-Line – O senhor estuda a caso de Manaus. Esta cidade está inserida dentro da ideia de sociedade do risco?
Carlos Machado – Não estudamos Manaus dentro da ideia da sociedade do risco, embora os argumentos anteriores possam também ser aplicados a este caso. Estudamos porque boa parte do debate sobre a Amazônia está centrada na questão ambiental, esquecendo ou ocultando que lá vivem milhões de pessoas, concentradas principalmente nas cidades, cercada por florestas. Trabalhamos em uma perspectiva de que não é possível pensar a questão ambiental sem pensar a questão dos humanos e sua saúde, assim como o inverso.
IHU On-Line – Quais são os principais riscos que Manaus corre?
Carlos Machado – Os principais riscos ambientais à saúde em Manaus encontram-se associados ao processo de urbanização. Manaus possui os mesmos problemas que muitas das cidades do país, como poluição, doenças crônicas, acidentes de trânsito e violências. Estas questões estão associadas ao precário desenvolvimento, expresso na precária infra-estrutura de saneamento e ocupação do solo (dengue e doenças diarréicas, agravadas em casos de enchentes, por exemplo), assim como doenças associadas à pobreza (tuberculose e leishmaniose) e a expansão urbana nas bordas da floresta (malária, por exemplo). Ou seja, Manaus vivencia uma situação bastante complexa, com riscos associados ao processo de urbanização, à pobreza e à precária infra-estrutura urbana, com riscos que podem ser agravados por mudanças ambientais globais, como dengue e malária.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Belo Monte: “Precisamos de outro modelo de desenvolvimento”. Entrevista especial com Dion Monteiro

Na avaliação do economista Dion Monteiro, “o que está por trás da questão da Usina de Belo Monte é a concepção de vida de modelos de desenvolvimento e relações econômicas, sociais, políticas, culturais e ambientais que existem onde o econômico se destaca”. Em entrevista concedida, por telefone, à IHU On-Line, Monteiro analisa a situação da região após o leilão da Usina, realizado no dia 20 de abril.
Sobre a polêmica arrematação, Monteiro diz que a cassação da suspensão do leilão é muito “interessante” de ser avaliada, no sentido dos interesses políticos escondidos neste processo. “Sabemos que a decisão do presidente do TRF foi política, não levando em consideração os aspectos técnicos que tanto o MPF quanto o juiz federal de Altamira levantaram no decorrer do processo. Isso aponta, infelizmente, subordinação e conivência entre o executivo, no caso do governo federal, e o servidor público do judiciário, que cassou as liminares”, afirma.A respeito dos próximos capítulos da história de Belo Monte, Monteiro destaca que o processo de denúncias e as manifestações irão continuar. “Vamos continuar com nossas ações políticas. Acreditamos que o governo incorre um erro gravíssimo sobre modelos de desenvolvimento. O governo ainda insiste em um modelo atrasado, considerado no mundo todo como responsável pelos graves problemas ambientais e sociais, não consegue ver além do componente econômico, e, desta forma, só acentua os desastres climáticos, ambientais e o ataque ao planeta”, lamenta.Dion Márcio C. Monteiro é economista e membro do comitê metropolitano do Movimento Xingu Vivo para Sempre.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor afirma que a Usina Hidrelétrica de Belo Monte será construída para atender com energia barata as empresas do eixo centro-sul do país. Que empresas são essas? O que elas produzem?
Dion Monteiro – São indústrias, algumas trabalham na produção de bens duráveis, e outras, na produção de bens de consumo. Na região norte, são as empresas eletrointensivas, aquelas que precisam de muita energia para mover sua atividade produtiva, em especial as mineradoras que trabalham com exploração de recursos minerais, como a Vale, a Alcoa. Há algumas que extraem, mas se beneficiam desses recursos, como metalúrgicas e siderúrgicas. Em suma, são empresas que desenvolvem a atividade produtiva pautada na extração e industrialização dos recursos. Temos visto que o desenvolvimento de suas atividades tem trazido consequências muito graves em relação à questão ambiental. É o aprofundamento de um modelo de desenvolvimento pautado no fator econômico. É um modelo atrasado, antigo e que não dá conta das necessidades do mundo na atualidade.
IHU On-Line – Os 11 mil megawatts de potência dessa usina só serão gerados durante quatro meses no ano. O que significa deixar “parada” essa potência nos outros meses?
Dion Monteiro – Os estudos mostram que, devido ao fluxo do Rio Xingu, só durante três ou quatro meses, e em alguns momentos até dois, os 11 mil megawatts serão gerados. Em outros quatro meses, será gerada uma quantidade entre 30 e 40%, e nos outros meses, muito menos do que isso, no máximo mil megawatts. Isso implica diretamente na viabilidade econômica da obra, porque vão se gastar 20 bilhões de reais para construí-la, segundo o governo; 30 bilhões de reais, segundo as empresas; e 40 bilhões, segundo outros analistas. Isso para uma obra que só irá gerar grande quantidade de energia durante quatro meses. "Como a usina irá trabalhar com menos de 50% da sua capacidade máxima de viabilização, isso quer dizer que, economicamente, a obra não se sustenta"Como a usina irá trabalhar com menos de 50% da sua capacidade máxima de viabilização, isso quer dizer que, economicamente, a obra não se sustenta. Isso sem levar em consideração as questões ambientais que estão sendo tratadas por especialistas independentes, pelo Ministério Público Federal, por organizações de movimentos sociais e pelas comunidades indígenas, ribeirinhas, quilombolas e agrícolas da região. Essa situação ambiental e social é séria, mas, se olharmos somente pelo aspecto econômico, é uma situação que inviabiliza a obra.
IHU On-Line – No dia 20-4-2010, foi anunciado que o leilão de Belo Monte estava suspenso. Mas, no mesmo dia, a liminar que suspendia o leilão foi cassada. Em sua opinião, porque esse processo se deu dessa forma?
Dion Monteiro – O que aconteceu foi algo muito interessante de se avaliar no sentido dos interesses políticos que estão por trás de todo esse processo que aconteceu no dia 20. O Ministério Público Federal ficou mais ou menos um mês preparando as duas últimas ações que deu entrada. Uma que falava dos impactos sobre as terras indígenas, e outra que falava sobre os problemas nos estudos de impacto ambiental. O juiz federal de Altamira ficou uma semana analisando os argumentos do MPF, antes de conceder essas duas liminares. Menos de três horas após receber o recurso da advocacia geral da união, o presidente do Tribunal Regional Federal cassou as liminares. Um processo que o MPF demorou um mês preparando, que o juiz federal de Altamira ficou uma semana analisando, foi cassado em menos de três horas. A afirmação do presidente é que a localização do leilão traria graves prejuízos à economia pública, entre outros argumentos. Isso nos mostra que a decisão do presidente do TRF foi política, não levando em consideração os aspectos técnicos que tanto o MPF quanto o juiz federal de Altamira levantaram no decorrer do processo. Isso aponta, infelizmente, subordinação e conivência entre o executivo, no caso do governo federal, e o servidor público do judiciário, que cassou as liminares. IHU On-Line – E como o senhor analisa o leilão de Belo Monte?Dion Monteiro – O leilão, como ocorreu, mostra exatamente todo o processo que vem acontecendo há 35 anos, se considerarmos o período da ditadura militar. O desfecho do leilão é emblemático e bem adequado para essa situação toda, porque mostra as contradições que esse processo apresenta, traz uma insegurança jurídica e técnica muito grande e uma postura autoritária do governo federal no trato com a região amazônica, dando sequência a essa relação histórica com a região. Na Amazônia, em relação aos grandes projetos, principalmente, não mudou quase nada do período da "O leilão, para mim, é simbólico, no sentido de mostrar os grandes problemas que existem no processo de Belo Monte, a relação autoritária que o poder central tem com a região e também a insegurança desse projeto"ditadura militar, quando Belo Monte começou a ser discutido, até hoje. A relação continua autoritária e não considera os povos e a experiência amazônica. Isso foi expresso de forma muito clara. Quem fala isso não são só os movimentos sociais, também são pessoas de outros grupos políticos, partidos, o próprio MPF e representantes do Congresso Nacional. O leilão, para mim, é simbólico, no sentido de mostrar os grandes problemas que existem no processo de Belo Monte, a relação autoritária que o poder central tem com a região e também a insegurança desse projeto.
IHU On-Line – Qual sua opinião sobre a não participação da Odebrecht e a Camargo Corrêa do leilão?
Dion Monteiro – Eles se retiraram, alegando uma grande dúvida pautada nas questões econômico-financeiras, principalmente na questão do preço do megawatt-hora. São empresas com larga experiência neste processo, com interesses apenas econômicos e que estudam o projeto de Belo Monte há muito tempo. Basta lembrarmos que quando o Consórcio Nacional de Engenheiros e Construtores (CNEC) começou a estudar o projeto, em 1975, ele era ligado à Camargo Corrêa. Para uma empresa como essa, que está presente desde o início do processo, retirar-se no momento final, é porque para as empresas existem problemas sérios. Outras empresas já alegaram, como representantes da Suez, que, além da insegurança econômico-financeira, há a questão da insegurança jurídica, por conta das ações do MPF e no processo como um todo. Logicamente que as empresas vão participar ou não do processo conforme a avaliação conjuntural, econômica e política que elas fazem. Para nós, este é mais um elemento que mostra os equívocos que estão sendo cometidos no projeto de Belo Monte, desde seu início até o momento.
IHU On-Line – Em função de Belo Monte, Altamira espera por dez mil empregos. Que impacto isso causará na cidade depois de finalizada as obras?
Dion Monteiro – Primeiro, é interessante ver a situação de Altamira e da região do entorno. A cidade de Altamira tem aproximadamente 100 mil habitantes. O relatório de impacto ambiental, feito pela empresa contratada pelo governo, fala que cerca de 100 mil pessoas migrarão para a região. Isso significa que a população da cidade irá dobrar. Como cidade-pólo, a maioria irá se concentrar na cidade entorno de Altamira. Mesmo no pico da obra, serão gerados 40 mil empregos, entre empregos diretos e indiretos, durante dois anos, segundo o governo. Isso quer dizer que 160 mil não terão emprego na região. Na região da Amazônia, a taxa de desemprego é muito elevada, atinge, muitas vezes, 30 ou 40% da população economicamente ativa. Se a população de Altamira tem 100 mil habitantes, muito mais de 10 mil pessoas em idade produtiva estão desempregadas. Isso quer dizer que esta estimativa de 11 mil empregos para a região, mesmo que seja verdadeira, não atenderia a taxa de desemprego que já existe. "Segundo o relatório de impacto ambiental, mais de 32 mil pessoas ficarão na região depois que a obra for concluída"Junte a isso a migração das 100 mil pessoas. Esse argumento, que é utilizado pelos interessados em construir a obra, é facilmente desconstruído quando avaliamos aprofundadamente os elementos. Outro dado interessante é que, no final da obra, só ficarão cerca de 700 empregos diretos e serão empregos de qualificação mais elevada. Segundo o relatório de impacto ambiental, mais de 32 mil pessoas ficarão na região depois que a obra for concluída. Esta relação entre quantidade de emprego gerados, migração e taxa de desemprego existente da região amazônica, mostra que os empregos prometidos de forma alguma atenderão a população da região conforme sua necessidade. Pelo contrário, aumentará os desempregos com o aumento de pessoas e não servirão para desenvolver socialmente e para garantir uma vida melhor ao pessoal da região.
IHU On-Line – Que análise o senhor faz da atuação do grupo Bertin, vencedor do leilão?
Dion Monteiro – Temos informações que são muito complicadas em relação à questão do grupo Bertin. Sabemos que o grupo responde a processos ambientais, trabalhistas e outros em quatro estados diferentes. Se não me engano, responde a processos no Pará, no Tocantins, em São Paulo e no Mato Grosso do Sul. Por si só essa já é uma informação muito preocupante. Fora a própria capacidade do grupo de dar conta de um projeto de tamanha envergadura. Primeiro a competência técnica, financeira e econômica do grupo já levanta uma questão preocupante, mas, principalmente, a grande quantidade de processos que esse grupo responde no Brasil, em dois Estados do norte, um do centro-oeste e outro do sudeste. A questão ambiental é algo mais complicado ainda. A empresa responde processos por questões ambientais e trabalhistas e estará em uma obra que vai afetar, evidentemente, o meio ambiente, que vai impactá-lo de forma intensa. Isso além da quantidade de trabalhadores que serão deslocados para as atividades. Para nós, essa empresa é muito preocupante, especialmente por seu conjunto.
IHU On-Line – Em sua opinião, quais serão os próximos capítulos de Belo Monte?
Dion Monteiro – Depois da realização do leilão, o governo vai tentar validar as empresas, vai emitir posteriormente a licença de instalação e de operação. Porém, para nós, seja dos movimentos sociais, dos pesquisadores que têm desenvolvido trabalhos importantíssimos, quanto para o MPF, que já se manifestou em relação a essa questão, esses processos mais burocráticos e administrativos não definem a resistência, a forma de atuação e os passos que vamos dar. Independente da realização do leilão, da emissão das licenças, nossa luta política de denúncia, de divulgação dos problemas no Brasil e fora dele e as nossas ações judiciais levando para os tribunais internacionais, seja para a ONU, para a OEA, OIT e para outros tribunais, vão continuar. Na minha avaliação, os próprios passos serão uma continuação do processo que já vem sendo desenvolvido, ou seja, de denúncias, manifestações, atos políticos e públicos, realizados pelos movimentos sociais, comunidades, povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas. No campo jurídico, acompanhando e apoiando as ações do MPF, que já recorreu da suspensão das liminares, outros processos estarão sendo julgados pela justiça de Altamira, implementadas tanto pelo MPF quanto por entidades a resistência indígena vai se acentuar.
A resistência indígena também vai se acentuar. Os indígenas já deixaram claro que não aceitarão a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Os movimentos sociais estarão junto com as comunidades tradicionais, com os povos originários, com o MPF, os pesquisadores da academia que compreenderem que é importante desenvolver um outro modelo para a região amazônica. Acreditamos que o governo incorre um erro gravíssimo de compreensão sobre modelos de desenvolvimento. O governo ainda insiste em um modelo atrasado, considerado no mundo todo como responsável pelos graves problemas ambientais e sociais, não consegue ver além do componente econômico, e desta forma só acentua os desastres climáticos, ambientais e o ataque ao planeta. "O governo ainda insiste em um modelo atrasado, considerado no mundo todo como responsável pelos graves problemas ambientais e sociais"Vamos continuar com nossas ações políticas, também no campo jurídico, porque defendemos outros modelos de desenvolvimento, que levam em consideração as questões ambientais, sociais, culturais, econômicas, mas que não estejam acima dos outros componentes, e sim trabalhando com eles. Vamos nos contrapor a Belo Monte, às hidrelétricas do Tapajós, que serão as outras hidrelétricas que o governo quer implementar. Acreditamos que esse modelo é ultrapassado e não serve para o planeta. Acho que minha fala explicita nossa posição em relação a Belo Monte, que não é puramente ideológica e dogmatizada. É uma posição a partir de uma ampla reflexão, feita há dezenas de anos, não começa agora. São elementos que vêm das reflexões coletivas dos moradores da região, dos movimentos sociais, da academia, e que nos mostra que, se continuarmos seguindo neste rumo, chegaremos à insustentabilidade do planeta. O que está por trás de toda essa questão, na qual Belo Monte se mostra como o projeto que explicita essa situação, é a concepção de vida de modelos de desenvolvimento e relações econômicas, sociais, políticas, culturais e ambientais que existem onde o econômico se destaca. Acreditamos que o modelo que tenha a possibilidade de garantir a vida na Terra, em conjunto com o meio ambiente, precisa estar pautado em outra concepção de relações sociais, de produção e ambientais, onde o meio ambiente esteja no mesmo patamar das necessidades humanas. Isso é possível ser feito. Algumas experiências a partir das comunidades dos povos tradicionais e de pesquisas acadêmicas mostram que podemos superar esse modelo de desenvolvimento vigente e que podemos garantir a vida no planeta, para esta e todas as outras gerações.

Bioeconomia. Paradigma da economia contemporânea. Entrevista especial com Federico Chicchi

Na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, Federico Chicchi se debruça sobre o conceito de bioeconomia, que, para ele, refere-se “ao processo de captura da vida e à produção da própria vida no interior das regras do ‘discurso’ econômico. Em outras palavras: o econômico pretenderia, no capitalismo biopolítico, colocar-se como única textura possível do Sentido e, paradoxalmente, como uma espécie de fundo antropológico originário”.
O professor continua sua explicação, afirmando que “a bioeconomia (desta vez entendida como paradigma da economia contemporânea) introduz um verdadeiro e próprio efeito perturbador, porque nos mostra e desvela, sobretudo em suas mais recentes aplicações técnicas, a própria vida, o bios, o que é comum por definição, como uma mercadoria de todo contingente e agora, sob o impulso (ir)racional das paixões aquisitivas, exposta sem mais mediações ao risco das mais impensáveis coisificações / alterações / utilizações”. E, ao refletir sobre o mundo do trabalho neste novo cenário, Federico Chicchi percebe que “nas teorias da modernidade industrial não é suficientemente tematizado nem compreendido o papel crescente do lado imaterial do trabalho (o cognitivo, intelectual, afetivo, emotivo, simbólico, relacional etc.) que, ao invés, torna-se hegemônico e central nas fileiras contemporâneas de produção do valor”. Na sua visão, “tornam-se cada vez mais relevantes, também graças às revoluções digitais, as produções sociais “de baixo”, as redes cooperativas, as fileiras sem centro hierarquicamente definido, os territórios, os saberes locais, e as ecologias que estão em condições de se auto-organizar para a produção de riqueza e de semânticas sociais”. Federico Chicchi é professor de Sociologia do processo econômico e do trabalho na Faculdade de Ciência Política da Universidade de Bologna, Itália. É graduado em Ciência Política e doutor em Sociologia e Política Social pela Universidade de Bologna. Confira a entrevista.
IHU On-Line - O senhor afirma que uma análise eficaz do capitalismo contemporâneo deve ser colocada para além do paradigma da economia política sugerida pelos autores clássicos. Pode explicar por quê? Federico Chicchi - No que se refere ao papel que a disciplina econômica clássica pode desempenhar na compreensão dos processos contemporâneos de produção, minha opinião é clara: os seus paradigmas se tornaram heuristicamente (e politicamente) insuficientes, porque o cenário econômico e social contemporâneo se reproduz através de processos no interior dos quais os principais construtos teóricos clássicos (lucro/renda, trabalho produtivo/improdutivo, capital constante/capital variável, salário/rendimento etc.) são caracterizados por inéditas porosidades e coalescências recíprocas, que tornam sua utilização analítica pelo menos complicada. Os esquemas conceituais da economia clássica são, de fato, o resultado teórico da análise de uma modalidade de organizar a acumulação de capital que hoje não mais se apresenta como prevalente e hegemônica (nem em termos objetivos, nem em termos subjetivos). Além disso, de um ponto de vista metodológico, parece-me importante sublinhar – como nos convidava a fazer Claudio Napoleoni (1), um dos mais importantes economistas marxistas italianos do século passado – o modo como os paradigmas econômicos (clássicos e neoclássicos) tendem a representar os fenômenos escolhidos segundo sua competência direta, dentro de modelos demasiado rígidos, estáticos e simplificados, perdendo, deste modo, quase de todo, sua intrínseca (e hoje sempre mais intensa) dinamicidade, interna às relações entre processos de produção e relações sociais de produção. Creio, portanto, que, na análise do presente, é preciso absolutamente dotar-nos de paradigmas novos – que devem, em primeiro lugar, aceitar o ônus do desbalanceamento transdisciplinar – para tematizar de modo eficaz as modalidades através das quais o valor se produz hoje em relação aos novos dispositivos de poder/saber de cunho governamental (em sentido foucaultiano, naturalmente). Além disso, não é possível evitar que hoje se considere ser preciso sempre empenhar-se mais na fundação teórica de uma nova teoria do desfrute, para que ela seja adequada às profundas mudanças sociais, econômicas e culturais em curso. E, para andar nesta direção, a teoria marxiana do mais-valor continua como ponto de partida e ponto de articulação filosoficamente irrenunciável; insuficiente, portanto, mas não contornável.
IHU On-Line - Por que as categorias interpretativas da sociedade industrial são insuficientes para se compreender a mutação do capital em curso? Federico Chicchi - Creio ser necessário sublinhar o modo pelo qual hoje está em andamento uma passagem a uma nova época que, por comodidade, chamaremos de pós-moderna, na qual as categorias conceituais de análise da sociedade industrial encontram pouca e escassa legitimidade. Por exemplo, nas teorias da modernidade industrial não é suficientemente tematizado nem compreendido o papel crescente do lado imaterial do trabalho (o cognitivo, intelectual, afetivo, emotivo, simbólico, relacional etc.) que, ao invés, torna-se hegemônico e central nas fileiras contemporâneas de produção do valor. Além disso, os “objetos” sobre os quais a análise econômica sobre a sociedade industrial se afirmava eram os mais confinados e realizados no interior dos muros da fábrica (a grande empresa industrial). E agora se tornam cada vez mais relevantes, também graças às revoluções digitais, as produções sociais “de baixo”, as redes cooperativas, as fileiras sem centro hierarquicamente definido, os territórios, os saberes locais, e as ecologias que estão em condições de se auto-organizar para a produção de riqueza e de semânticas sociais.
IHU On-Line – O que podemos entender por bioeconomia? Federico Chicchi - A bioeconomia é, a meu ver, um grande e irrenunciável desafio teórico. Na Itália, muitos autores (como o próprio Andrea Fumagalli, que organizou o volume sobre a Crise Global (2) )estão trabalhando sobre a possibilidade de ler o capitalismo cognitivo dentro do “registro” bioeconômico. Em primeiro lugar, é preciso especificar que a bioeconomia (entendida neste sentido como um paradigma interpretativo) de fato não circunscreve um campo de formações discursivas internas à esfera econômica. A bioeconomia constrói realmente o seu sujeito, e não pode deixar de fazê-lo, na jamais saturada tensão entre economia e política. Em outras palavras: raciocinar em termos bioeconômicos nos impele ao interior daquele lugar onde a síntese entre o econômico e o político se demonstra sem solução de uma vez por todas; isto é, que deve ser continuamente gerenciada e organizada, ou, numa palavra: governada. Neste sentido, e, a partir disso, a bioeconomia emerge da crescente vocação da economia contemporânea em recusar todo espaço de mediação de seu código operativo, ou seja, a inscrever-se sem exclusões significativas no próprio ponto no qual a vida mostra sua insurgência subjetiva e valorizadora, a tornar-se, portanto, consubstancial à potência intrínseca do vivente, imanente à própria vida. A bioeconomia refere-se, portanto, ao processo de captura da vida e à produção da própria vida no interior das regras do “discurso” econômico. Em outras palavras: o econômico pretenderia, no capitalismo biopolítico, colocar-se como única textura possível do Sentido e, paradoxalmente, como uma espécie de fundo antropológico originário. A bioeconomia (desta vez entendida como paradigma da economia contemporânea) introduz, portanto, um verdadeiro e próprio efeito perturbador, porque nos mostra e desvela, sobretudo em suas mais recentes aplicações técnicas, a própria vida, o bios, o que é comum por definição, como uma mercadoria de todo contingente e agora, sob o impulso (ir)racional das paixões aquisitivas, exposta sem mais mediações ao risco das mais impensáveis coisificações / alterações / utilizações.
Além disso, o modo pelo qual se realiza o circuito do valor bioeconômico (a vida expressa em valor), implica novas coordenadas e novas modalidades de configuração das relações sociais de produção e de sua programática de poder. Desta maneira, se põe radicalmente em discussão (até quase invertê-la) a função de ordem da política, assim como tinha sido argumentada pelos clássicos da filosofia moderna (Hobbes (2), mais do que todos). A bioeconomia de fato também é descritível através de inéditos dispositivos de apropriação proprietária do valor (de desfrutamento biopolítico, portanto) que se complementam e interseccionam, representando um peso sempre mais relevante, com as precedentes práticas disciplinares ou anátomo-políticas, sem, no entanto, jamais torná-las de todo residuais. O resultado de tal complexo, e, sob certos aspectos, acéfalo aparelho de captura, é declinável e melhor descritível, em primeiro lugar, fazendo referência, como já dizíamos, aos delineamentos da foucaultiana prática governamental. E, por último, mas não menos importante, é preciso sublinhar o modo como o bioeconômico gerenciamento das vidas que daí deriva se refere aos dispositivos de captura e tradução da “potência” do bios e de sua capacidade de se auto-organizar no interior dos atuais processos de acumulação. Para dizê-lo com as palavras de Andrea Fumagalli, “por bioeconomia, entendemos aquele processo que procura subsumir realmente (e não só formalmente) o inteiro agir humano para fins de acumulação” (FUMAGALLI, 2005, p. 41). Neste sentido, a bioeconomia necessita, a nosso ver, também uma nova sintaxe do desfrutamento, a ser entendida não mais unicamente como atividade de arbitrário entretenimento de um adicional ou excedente, mas também como persuasivo e, em geral, consensual atividade de produção e disposição da vida na cifra do útil, através de sua estruturação em mercadoria e através da regulação mercantilista e proprietária de seu “valor” intrínseco. Eis que mais-valor, mais-gozo (em sentido lacaniano) e mais-vida se interseccionam num abraço tão invasivo quanto circulatório, dando vida a uma espiral inédita de valorização.
IHU On-Line - Quais são as principais características que o trabalho assume na bioeconomia? Federico Chicchi - Em primeiro lugar, é necessário destacar que o trabalho, na bioeconomia, está perdendo muitas das características que assumiu no interior da assim dita sociedade salarial. A prática laboral de uma parte cada vez maior de pessoas de fato, hoje, já não tem mais a ver com a execução passiva e hétero-dirigida de operações, mas sim com o tratamento de informações e conhecimentos, com o investimento da própria subjetividade em relações de trabalho e/ou com o desenvolver inovações de produtos e de processo. Em outras palavras, a importância da atividade produtiva “rotineira” e do trabalho material, que consiste em transformar a matéria-prima através da ajuda de instrumentos e de máquinas, também materiais, diminui em favor de um novo paradigma do trabalho contemporâneo mais intelectual, imaterial e relacional. Para ser eficiente e apetecível, o trabalho deve hoje fazer-se de fato empreendedor, capaz de contribuir à solução (segundo as competências e em diferentes níveis de responsabilidade) dos problemas que uma atividade de empresa encontra em seu acidentado caminho competitivo. Naturalmente, esta transformação está ligada a uma causa “estrutural” que é tida em alta consideração, ou seja: ela tem a ver com a transformação do saber-poder capitalista, que tem como objetivo irrenunciável e transversal em cada fase de sua evolução histórica, sob pena de sua crise irreversível, a produção de um excedente, de um extra a incorporar no interior de sua “obsessiva” dinâmica econômica de valorização. De fato, somente a inovação e a criatividade, não dedutíveis do existente, podem salvar o sistema da estagnação e da superprodução. Para garantir tal efeito, é a própria estrutura do comando do capital sobre o trabalho que vem modificar-se radicalmente, mudando os seus princípios de funcionamento: o que hoje é requerido é uma espécie de cooperação da parte de quem trabalha e que não se promove somente através da repressão e da passividade, mas através da estimulação do eu desejoso e daqueles caracteres pessoais que, no esquema da relação salarial tradicional, não eram significativos. Hoje são a inteira produtividade do homem, sua fantasia, sua imaginação, sua sociabilidade, seu papel inovador e maleável às circunstâncias que são necessários. Ultrapassam, portanto, os contratos coletivos; e a relação com a empresa se personaliza através de incentivos especiais, férias-prêmio etc. A perda de centralidade do trabalho assalariado, o progressivo tornar-se autônomo (auto-organizado), descentralizado e reticular da cooperação social, e o instaurar-se na relação entre capital e trabalho de uma norma sempre mais individualizada, traz consigo outra transformação econômica e social fundamental do trabalho que é central e imprescindível para reconstruir o sentido do nosso presente percurso interpretativo: o trabalho se apresenta hoje, ao mesmo tempo, no interior da empresa, mas contemporaneamente se organiza cada vez mais fora dela. Isto, no entanto, também significa que os limites tradicionais do trabalho (aqueles da competência profissional) tendem a tornar-se sempre mais porosos para acabar invadindo – com as lógicas instrumentais que lhe são consubstanciais – aqueles espaços de vida (antes ditos reprodutivos) que eram, num certo sentido, impermeáveis, porque eram considerados improdutivos, e não diretamente desfrutáveis para fins econômicos. Em outras palavras: o modo pelo qual o capital conseguiu aumentar a produtividade, a partir de um trabalho necessário (em sentido marxiano) e reduzido ao mínimo de automação e de informatização, foi aquele de sair da relação salarial, apropriando-se de toda uma série de atividades reprodutivas cujo contributo à valorização do capital permite liberar-se dos limites que a relação salarial coloca aos aumentos de produtividade.
IHU On-Line - O conceito de multidão proposto por Negri como resistência ao novo capitalismo lhe parece oportuno? Como o senhor interpreta esse conceito? Federico Chicchi - O conceito de multidão na organização das práticas de resistência e subtração do trabalho-vivo ao desfrutamento de parte do capitalismo bioeconômico é, a meu ver, um conceito tão necessário quanto insuficiente. Necessário, porque sublinha e capta atual impossibilidade de recompor as lutas revolucionárias dentro de uma lógica “sintética” que reduza sempre e, em geral, todas as suas expressões subjetivas ao Uno. A multiplicidade ou, se quisermos chamá-la diversamente a diferença que descreve a multidão como espaço de ação das diversas singularidades é, certamente, uma instância por si revolucionária, que permite exercitar uma incessante liberação/experimentação social da criatividade autônoma e do desejar do trabalho-vivo. A multidão interpreta e certamente descreve do melhor modo tal necessidade histórica; a forma multitudinária da luta é, de fato, hoje, a única que pode deslocar, em seu contínuo exercício de produção de excedentes éticos, o comando capitalista de tradução parasitária do fazer social no interior de uma forçosa medida proprietária da riqueza autonomamente produzida. No entanto, é, ao mesmo tempo, insuficiente porque nela mesma já não se encontram expressas e definidas aquelas formas necessárias de organização, capazes de “transferir” a um plano de “sustentabilidade” biopolítica e subjetiva as desmesuradas potencialidades produtivas que a multidão exprime numa dimensão antropológica de tipo pós-proprietário. Por isso, o conceito de multidão, como, aliás, o próprio Negri sublinha por diversas vezes, em seus últimos trabalhos, é entretecido para se tornar politicamente eficaz, com uma prática social que se proponha como seu primeiro objetivo o de produzir “a partir de baixo” de suas novas constelações institucionais e normativas, que podemos chamar de Instituições do comum, que tornem o território habitado pelas singularidades menos escorregadio, menos instável e menos exposto à captura do capital. Num certo sentido, e para concluir, a atividade de produção de novas instituições democráticas, a solicitar em torno da defesa dos bens comuns e da produção de espaços sociais do comum, representa o cenário no interior do qual as diferenças que animam a potência multitudinária poderia encontrar uma composição própria afirmativa e biopolítica.

domingo, 2 de maio de 2010

A financeirização como forma de biopoder. Entrevista especial com Stefano Lucarelli

“Considero a financeirização (o que, em primeira instância, aparece como o deslocamento da poupança das economias domésticas para os títulos de ações), como a forma de controle social necessária para que a população contribua à reprodução das formas institucionais do novo capitalismo. O biopoder não é simplesmente uma forma de controle social, mas é um conjunto de técnicas de governo que representa um investimento na vida da parte das relações de poder”.
A definição é do professor Stefano Lucarelli, em entrevista exclusiva concedida à IHU On-Line, por e-mail. E ele completa: “as técnicas, nas quais se concretiza o biopoder, mantêm certa ambiguidade: talvez se poderia dizer que os traços da sujeição e da subjetivação tendem a se sobrepor”.
Lucarelli explica o que são os “efeitos riqueza”, e considera que os mesmos “não representam uma característica inata de todo consumidor, mas dependem da liquidez crescente que os mercados financeiros trazem.
Os efeitos riqueza seriam então interpretados como uma transformação das relações sociais, uma característica da população que se torna objeto de biopoder. Num regime de acumulação puxado pelas finanças, o conjunto de técnicas de submissão-subjetivação se torna sempre mais incisivo, enquanto a poupança das economias domésticas é desviada para os títulos acionários. Aqui está o traço do biopoder”. Ao contextualizar o mundo do trabalho com a crise do capitalismo financeiro, Lucarelli entende que “a crise do fordismo é necessária, sobretudo ao capital, para restabelecer o seu controle sobre o trabalho e sobre a sociedade”. E continua: “Num regime de acumulação em que as finanças ditam a lei, as forças produtivas estão sujeitas a formas de controle que não se exaurem no comando direto. Para analisar estas modalidades de comando que se entrelaçam com as lógicas da produção e do consumo, a dicotomia foucaultiana sujeição/subjetivação é absolutamente decisiva”. Stefano Lucarelli é professor no Departamento de Economia "Hyman P. Minsky" da Università degli Studi di Bergamo, Itália. Doutor em Economia Política pela Università Politecnica delle Marche, sua tese intitula-se Cicli politici elettorali e finanziamento della sanità pubblica in Italia. Confira a entrevista. IHU On-Line - Qual é a atualidade da categoria biopoder proposta por Foucault para se compreender as mudanças em curso no capitalismo mundial? Stefano Lucarelli - Preciso fazer uma indispensável premissa. Não sou um especialista do pensamento de Foucault. Comecei a estudar com ele nos cursos oferecidos pelo grande pensador francês no Collège de France em 1977-78 e 1978-79, já que me despertou curiosidade e fui estimulado pelo trabalho conduzido pela rede Uninomade, que desde 2003 iniciou um percurso possível de recomposição das inteligências críticas para construir um dispositivo de autoformação e debate para pesquisadores, estudantes e ativistas de movimentos. A finalidade é acentuar a necessidade de uma ciência da transformação do presente estado de coisas. Neste projeto, as categorias propostas por Foucault parecem decisivas: não só porque se pode, de tal modo, continuar uma análise do poder capitalista que concebe o poder como campo de poderes, isto é, como um conjunto de correlações entre formas institucionais de saberes e de práticas, mas também porque o próprio Foucault coloca o problema da produção de subjetividade. Nesta nossa conversação sobre a financeirização como forma de biopoder, veremos que o principal problema a enfrentar consiste precisamente na produção de subjetividade. Nos cursos no Collège de France, Foucault se esforça por delinear as características do conceito de biopoder, uma categoria que ele havia introduzido no último capítulo de A vontade de saber, de 1976. Naquele contexto, Foucault define biopoder como uma “grande tecnologia de duas faces, anatômica e biológica, que age sobre o indivíduo e sobre a espécie”. Nos anos subsequentes, ele procura clarear o nexo existente entre esta categoria e o paradigma neoliberal. No curso de 1977-78, ele enfrenta a gênese de um saber político que coloca no centro de suas preocupações a noção de população e os mecanismos capazes de assegurar sua regulação. A população não é simplesmente concebida como o conjunto dos “súditos de direito”, nem como um conjunto de braços destinados ao trabalho, mas como um conjunto de elementos que se conectam ao regime geral dos seres vivos e que pode funcionar como suporte de intervenções combinadas; neste contexto, biopoder é “o conjunto dos mecanismos graças aos quais os traços biológicos que caracterizam a espécie humana se tornam objeto de uma estratégia geral de poder”. Trata-se das modalidades de racionalização das técnicas de governo destinadas à “segurança”, que caracterizam o início da idade moderna: a saúde, a higiene, a natalidade, a longevidade e a raça em relação a uma população. Com o curso de 1978-79, é dado um passo em frente: Foucault estuda o modo pelo qual, a partir do século XVII, a racionalização dos problemas levantados pela prática governamental dos fenômenos que caracterizam uma população é associada ao liberalismo. A pergunta que surge é: com que regras pode ser administrado o fenômeno “população” no contexto do “liberalismo”, aqui entendido como sistema atento ao respeito dos sujeitos de direito e da liberdade de iniciativa dos indivíduos? O biopoder não é, pois, um conceito cristalizado de uma vez por todas. O que procurei fazer na minha contribuição sobre a financeirização foi perguntar com que regras pode ser administrado o fenômeno “população” no contexto do neoliberalismo, isto é, no novo regime de acumulação rebocado pelas finanças. Neste contexto, considero a financeirização (o que, em primeira instância, aparece como o deslocamento da poupança das economias domésticas para os títulos de ações), como a forma de controle social necessária para que a população contribua à reprodução das formas institucionais do novo capitalismo. O biopoder não é simplesmente uma forma de controle social, mas é um conjunto de técnicas de governo que representa um investimento na vida da parte das relações de poder. As técnicas, nas quais se concretiza o biopoder, mantêm certa ambiguidade: talvez se poderia dizer que os traços da sujeição e da subjetivação tendem a se sobrepor. IHU On-Line - O senhor afirma que a financeirização da economia manifesta-se como biopoder. Como isso ocorre? Stefano Lucarelli - Para responder a esta pergunta, é preciso recordar os principais acontecimentos que caracterizaram o capitalismo contemporâneo. Deflagrado em 1971 pela decisão unilateral dos EUA de decretar o fim dos acordos de Bretton Woods, gerando a flexibilidade no mercado cambial, e acelerado pelas políticas monetárias de Volker (1), de 1979, em concomitância com o acesso ao poder de Reagan nos EUA e de Tatcher no Reino Unido (a assim chamada contrarrevolução monetária), o regime de acumulação, que foi se afirmando no decurso dos anos 1980, tem seu motor nos mercados financeiros: a modernização salarial favorece a rentabilidade da empresa e aumenta o valor dos títulos financeiros, dos quais também dependem os fundos de pensão, os fundos de investimento, os seguros e parte das retribuições dos trabalhadores. Estes últimos, sobretudo no decurso dos anos 1990 (os anos da new economy), foram sempre mais incentivados pelos Governos, pelos próprios sindicatos e pela opinião pública, no sentido de confiar os próprios rendimentos às bolsas. Como nos deixou claro Robert Boyer (já em 2001), no modelo de crescimento que emerge, a economia real e a economia financeira estão profundamente entrelaçadas: os perfis das empresas, mas também o consumo das famílias são redes do andamento das bolsas. Sustentar os rendimentos financeiros torna-se o imperativo do manager e o horizonte de realização de muitos pequenos poupadores (endividados). A própria “cartolarização” – a transformação dos créditos bancários em atividades negociáveis - é analisada como a última etapa da profunda transformação dos sistemas financeiros, iniciada no final dos anos 1970 e relacionada com a virada da política monetária estadunidense de outubro de 1979. O consumismo, que se desenvolveu nas fases de crescimento que precederam a contrarrevolução monetarista, era incentivado pelos aumentos salariais e voltado principalmente aos bens de massa estandardizados; aquilo a que depois se assistiu é um consumismo que se manifestou acima de tudo na aquisição de estilos de vida, através do desenvolvimento da indústria cultural e do divertimento. Esta tendência é muito bem descrita nas Cartas Luteranas de Píer Paolo Pasolini (1975), onde ele reconhece a morte dos valores proletários na homologação dos comportamentos juvenis “sob o signo e a vontade da civilização do consumo”. A taxa de substituição dos “status symbol” é aumentada com o tempo, e o consumismo se tornou um fenômeno invasivo que toca os mais jovens, mas também os adultos. Esta última fase ainda se desenvolveu num contexto de crescimento econômico, porém, no interior de um regime de acumulação finance-led, no qual o consumo não aumenta mais graças ao aumento dos salários (a quota dos salários sobre o produto total diminui), mas graças aos efeitos riqueza apoiados pelo boom das bolsas, num mundo em que parte das retribuições em contracheque (as stock options), os salários diferidos (os fundos de pensão) e as poupanças das famílias se deslocam massiçamente para as atividades financeiras. Quando o boom das bolsas perdeu a força dos anos 1990, a estrutura psicológica dos consumidores já estava comprometida. Em outros termos, os efeitos riqueza não representam uma característica inata de todo consumidor, mas dependem da liquidez crescente que os mercados financeiros trazem. Os efeitos riqueza seriam então interpretados como uma transformação das relações sociais, uma característica da população que se torna objeto de biopoder. Num regime de acumulação puxado pelas finanças, o conjunto de técnicas de submissão-subjetivação se torna sempre mais incisivo, enquanto a poupança das economias domésticas é desviada para os títulos acionários. Aqui está o traço do biopoder. Devo acrescentar que a financeirização não se exaure somente na mudança dos comportamentos dos consumidores-poupadores. Também as lógicas inerentes aos investimentos das empresas se modificaram. O dinamismo da economia americana, durante os anos 1990, nos setores das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e das biotecnologias e seus efeitos invasivos sobre os setores tradicionais da economia, procede paralelamente à difusão de novas tipologias de mercados financeiros especializados na mercantilização dos direitos de propriedade intelectual - IPR (International Property Rights): o NASD (National Associaton of Security Dealers) Regulation, de 1984, que introduz a possibilidade de valorizar os intangíveis (compostos prevalentemente de IPR) como vozes do ativo no balanço das empresas; a constituição do Nasdaq National Market: a modificação da lei sobre os fundos de pensão, de modo a permitir enormes fluxos de liquidez diante de empresas em déficit, mas de alta rentabilidade, levando em conta o potencial dos intangibile assets. A complementaridade entre mercados financeiros e o IPR foi o coração pulsante da new economy e representa a origem do superinvestimento, favorecido pela política das baixas taxas de interesse do Fundo Europeu de Desenvolvimento (FED). A dinâmica dos investimentos privados como cota do PIB mostra que, entre 1992 e 2001, os investimentos privados aumentaram progressivamente, para depois despencar entre 2002 e 2003 (Flow of funds of the United States, 6 de dezembro de 2007). As raízes da crise desencadeada em 2007 devem ser buscadas nos anos da new economy. A crise brota do excesso de investimento nas novas tecnologias da informação e da comunicação e da exaustão das oportunidades de lucro oferecidas pelas novas tecnologias. Transferida e contida principalmente pela política monetária, a bolha enfim explodiu. IHU On-Line - Que características assumem o trabalho na atual fase de expansão do capitalismo financeiro? Stefano Lucarelli - Em primeira instância, pode-se dizer que o trabalho vai sempre se fragmentando mais ao longo da linha de produção, e isso põe em crise o próprio conceito de representação dos trabalhadores. A dinâmica dos mercados financeiros incide profundamente sobre as características que o trabalho assume: a partir da crise do paradigma industrial e fordista – que procede paralelamente ao abandono dos acordos de Bretton Woods – os mercados financeiros se tornam o lugar onde o processo de valorização, próprio de uma nova divisão internacional do trabalho, encontra uma (des)medida; uma medida sujeita às convenções financeiras. As convenções financeiras que se sucederam de 1993 até hoje e que puseram sob xeque-mate as políticas monetárias dos Bancos Centrais, afirmam-se no interior de um mesmo paradigma tecnológico, no qual o trabalho se atomiza. A recomposição de classe da multiplicidade dos vetores produtivos se complica. Como sustenta, por exemplo, Carlo Vercellone, a figura do trabalho cognitivo assume particular relevância. No entanto, não creio que a definição de trabalho seja simples. É dificilmente contestável o que escrevia Adam Smith em 1776: “não os recursos naturais, mas o trabalho desenvolvido num ano é a base da qual cada nação extrai todas as coisas necessárias e cômodas da vida que consome num ano”. Todavia, é difícil compreender realmente em que consistiria hoje a divisão do trabalho. Esta de fato mudou, tanto em escala nacional como em escala mundial, e a crise do fordismo é o sinal desta mudança. A crise do fordismo é necessária, sobretudo ao capital, para restabelecer o seu controle sobre o trabalho e sobre a sociedade. Num belo romance de 1989, que Paolo Volponi dedica a Adriano Olivetti, As moscas do capital, as plantas de fícus falam com um terminal de computador. Fícus e computador são expressões daquele poder industrial que decide sobre a divisão do trabalho. A diferença é que os primeiros pertencem ao mundo fordista em plena crise, enquanto o segundo representa o que há de vir. Dizem os fícus: “Somos a criativa cultura industrial. Não temos mais ligações com a natureza e os climas ancestrais; nada nos inibe e nos condiciona. Temos o espírito e o metabolismo da empresa. Os dirigentes olham para nós para pensar e decidir”. Mas, o terminal é cínico e impiedoso na consciência das novas regras que vão se afirmando: “Sois o sinal de uma estação da indústria: plantas nanicas de relações humanas. Mas, hoje não é mais a época das “human relations”. Vocês não servem às automações, às “joint ventures”, aos contratos; não influís sobre os custos, nem sobre os lucros. Ainda sois projetados sobre a tratativa, sobre as mediações segundo as infiltrações político-sociais e também sentimentais. Não sois sequer patrimoniais, conversíveis, fracionáveis e não podeis adaptar-vos à velocidade do capitalismo hodierno, nem favorecer sua abstração. Ainda sois verdadeiros e até vivos”. O desafio dos fícus que, num ímpeto de raiva gritam ao computador que ele é construído para a negação da indústria e de sua cultura e não tem nenhuma função gerencial, é sancionada pelas seguintes afirmações: “O que ainda conta um dirigente? Atualmente é só o seu substantivo que corre entre os meus fluxos, codificado com um relevo e um cargo não muito relevante. Ainda devo explicar-vos que não há mais partes? Que agora só existem os programas e o sistema que eu posso estabelecer e desenvolver? Só conta o que eu introduzo, codifico, coleto, calculo, transmito. Todo o resto está fora, também os implantes da energia às sociedades de todo tipo, as pessoas físicas e jurídicas, que são somente um material; figuras e volumes do passado que eu, a meu bel prazer, posso introduzir no presente e desenvolver no futuro”. As empresas, uma vez reorganizado o trabalho pelo desfrute das descobertas da informática, pretendem encurtar o tempo necessário à obtenção dos lucros, sendo que toda mediação é abolida. Vale a pena relembrar precisamente a história de Paolo Volponi, humanista, ex-dirigente da Olivetti, assumido pela Fiat e licenciado após menos de três meses, a poucas horas da aparição, na Unidade, de sua declaração de voto comunista para as eleições de 1975. Na Itália, após a reestruturação tecnológica dos anos 1980 e após o abandono de boa parte da cultura industrial italiana, os trabalhadores se apresentam fragmentados, apavorados e incapazes de promover um conflito nas formas clássicas. No entanto, ainda há os mortos no lugar de trabalho, há as nocividades (físicas e mentais) que caracterizam a produção e que atingem os trabalhadores e o contexto social no qual a produção ocorre. E se multiplicam profissões que comportam um prolongamento não certificado da jornada laboral. Emergem até novas modalidades de conflito, mas estas investem sempre mais nas relações externas à fábrica, aqui entendida como o lugar tradicional da produção. Num regime de acumulação em que as finanças ditam a lei, as forças produtivas estão sujeitas a formas de controle que não se exaurem no comando direto. Para analisar estas modalidades de comando que se entrelaçam com as lógicas da produção e do consumo, a dicotomia foucaultiana sujeição/subjetivação é absolutamente decisiva. IHU On-Line - O senhor afirma que “a construção de uma biopolítica é determinante para o próprio funcionamento da financeirização como forma de biopoder”. Como isso se manifesta na sociedade do trabalho? Stefano Lucarelli - O capitalismo contemporâneo funciona através de dispositivos de sujeição-subjetivação. A produção de subjetividades resistentes pode ser paradoxalmente funcional a este regime de acumulação. Para se reproduzir, o capitalismo deve renovar-se e o faz sugando a linfa vital à população, que ele deixa viver. Basta pensar no debate atual sobre a green economy: o pensamento ecológico e a pesquisa política e de engenharia, que são dele derivadas, representam exatamente a base sobre a qual os mercados financeiros podem voltar a crescer. Subjetivação e submissão procedem pari passo, e por isso a construção de uma biopolítica pode ser determinante para o conjunto de técnicas que definem o biopoder. IHU On-Line - A “biopolítica” apresenta-se como resistência ao “biopoder”. Como isso é perceptível nas novas resistências de exploração ao capital? Stefano Lucarelli - Seguindo uma sugestão presente nos escritos de Toni Negri (2) e de Judith Revel(3), se pode definir a biopolítica como um poder constituinte. A construção de instâncias constituintes, em condições de não serem logo reabsorvidas nas relações capitalistas, é questão complexa. Numa discussão sobre as formas de resistência ao biopoder, é importante questionar-se por que o fordismo tenha entrado em crise. Com ele, entra em crise também uma forma particular da sociedade do trabalho (para usar a terminologia que me propus). Isso pode ajudar a compreender o ponto de um romance nascido na Itália, Vogliamo tutto [Queremos tudo] de Nanni Balestrino (1971) (4) Neste romance, emerge o fato de que os direitos dos trabalhadores não se conquistam somente graças a uma carta constitucional: as lutas operárias de 1969, na Itália, são necessárias a fim de que se chegue a um Estatuto dos trabalhadores (1970). Porém, há mais: a composição de uma classe que possa ser reconhecida nessas lutas é animada pelo ódio nos confrontos do trabalho de fábrica: “E nós éramos verdadeiramente todos a mesma coisa... a coisa que não tinha diferença era a nossa vontade, a nossa lógica, a nossa descoberta que o trabalho é o único inimigo e a única doença. Era o ódio que todos tínhamos por este trabalho e pelos patrões que nos obrigavam a fazê-lo. Era por isso que todos estávamos enfurecidos, e era por isso que, quando não fazíamos greve, entrávamos em benefício. Tudo isso para evitar aquela prisão onde nos tiravam a nossa liberdade e a nossa força todos os dias. Estes pensamentos, que eu tinha há muito tempo por minha conta, eu finalmente via que eram o que todos pensavam e diziam. E as lutas, que até então eu fazia por iniciativa própria contra o trabalho, acabei vendo que eram as lutas que todos nós podíamos fazer juntos e assim vencê-las.” Um novo modo de regulação Este nível de conflito produz direitos efetivos porque compele as instituições democráticas a definirem um modo de regulação à altura das reivindicações dos operários e da sociedade. Hoje, a composição de classe narrada por Balestrino não existe: quando se olha somente ao mundo do trabalho, emergem, em todo o caso, significativos episódios de luta (penso nas novas formas de luta que fizeram notícia em setembro passado na Itália) que falam tanto da debilidade quanto da força dos trabalhadores: os trabalhadores são débeis porque sofrem a fragmentação da produção e são desambientados ante a mobilidade dos capitais, sob os quais o regime de acumulação contemporâneo se estrutura. Os trabalhadores tentam reconhecer-se entre si, tentam conceber-se como um grupo de interesses coeso. Os trabalhadores são indivíduos explorados, e o são quando trabalham ou quando não trabalham. Por exemplo, o caso INNSE nos mostra a força que há na subjetividade no momento em que organizam a luta, no momento em que põem em ação a própria inteligência, indo combater aqueles aspectos da produção capitalista que prejudicam os interesses do capital. Um importante sociólogo do trabalho italiano, Luciano Gallino, escreveu que extrair indicações de caráter geral do caso INNSE parece uma temeridade. Todavia, o entrincheiramento de poucos operários sob altas estruturas, com o apoio de outros trabalhadores, e a solidariedade de quem se sente partícipe do sentido de desespero e de coragem daqueles operários, atinge um dos pontos nevrálgicos do novo capitalismo: a mídia, os processos informativos que assumiram um papel sempre mais incisivo na valorização de uma atividade produtiva qualquer. Com seu gesto, ditado por um lúcido desespero, os operários revelaram que uma fábrica em condições de saúde teria sido fechada para extrair algo útil do encerramento. São os interesses imobiliários, a cessão dos setores empresariais, as reestruturações, as operações de Mergers & Acquisitions que caracterizam este capitalismo. Ante estas novas lógicas (financeiras) de maximização dos úteis de empresa, facilitadas pelas irresponsabilidades dos governos e dos sindicatos que aceitaram o enfraquecimento dos direitos dos trabalhadores, é preciso repensar as formas do conflito. Foi sempre Gallino que teve a honestidade de relatar as palavras de um operário do INNSE que, nos microfones da Rádio Popular, dialogava com outro operário da CIM de Marcellina: “O velho tipo de luta, a paralisação, não funciona mais. É preciso utilizar outras formas de luta”. Palavras que, em alguns âmbitos de movimentos (penso nos precários que organizam a Euro May Day Parade) são difundidas há tempo. O conflito pode retornar, se se desenvolve uma coesão entre aqueles que sofrem a crise e se reassume a consciência que a luta paga. Permitam-me, uma vez mais, recorrer à literatura. Vasco Pratolini contou em Metello a longa greve que, no início do século 20, paralisou os canteiros de obras de Florença: “O grevista é um trabalhador que tomou consciência de sua condição de explorado e deliberadamente enfrenta a luta e sacrifícios cada vez maiores, onde reivindicar os seus direitos. Todas estas palavras são verdadeiras no momento da ação, mas depois? Quando uma paralisação se arrasta, como crescem as dificuldades, crescem as tentações. Durante uma greve, trata-se de resistir, isto é, de esperar”. As mesmas palavras valem também quando a luta assume uma forma diversa da paralisação. Hoje, no meu ponto de vista, as reivindicações do mundo do trabalho e as reivindicações no terreno das políticas sociais deveriam proceder conjuntamente. Notas: 1.- Paul Adolph Volcker (1927): economista americano. Desde fevereiro de 2009, é presidente do Conselho Consultivo de Recuperação Econômica do presidente Barack Obama. 2.- Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano. Durante a adolescência foi militante da Juventude Italiana de Ação Católica, como Umberto Eco e outros intelectuais italianos. Em 2000 publica o livro-manifesto Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003), com Michael Hardt. Atualmente, após a suspensão de todas as acusações contra ele, definitivamente liberado, ele vive entre Paris e Veneza, escreve para revistas e jornais do mundo inteiro e publicou recentemente Multidão. Guerra e democracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005), também com Michael Hardt. Sobre essa obra, publicamos um artigo de Marco Bascetta na 125ª edição da IHU On-Line, de 29-11-2004. 3.- Marie Judith Revel (1966): filósofa francesa, é professora da Universidade de Roma - La Sapienza e colaboradora no Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universiade de Consenza e do Centro Michel Foucault (Paris). Suas pesquisas abordam o pensamento francês contemporâneo, particularmente a obra de Michel Foucault. Foi diretora da edição italiana dos Ditos e Escritos de Foucault (Feltrinelli, 1996-1998). 4.- Nanni Balestrini (1935): poeta e escritor italiano.