sábado, 25 de abril de 2009

"Nós oferecemos uma escola disciplinadora, com conteúdos que não são significativos’. Entrevista especial com Euclides Redin

Quando se fala nos motivos da evasão escolar, a mudança deve acontecer, na opinião de Euclides Redin, nosso entrevistado de hoje, nas escolas. “O conceito de escola, hoje, é o mesmo do tempo do início da modernidade. Alteraram as metodologias, as didáticas, as tecnologias, mas a escola é a mesma, um espaço em que as crianças e jovens recebem disciplinamento do corpo e da mente”, relata o professor, nesta entrevista que concedeu, por telefone, à IHU On-Line. Redin não traz dados que desconhecemos, mas destaca pontos importantes que precisam ser discutidos com urgência. “As leis e as políticas públicas da escola precisam ser repensadas. Nós vivemos de plano em plano, coordenados pela União (MEC, Capes etc.), promovendo reformas. Mas reformas sempre em função de alterar procedimentos. Para que serve a escola? Isso não está sendo questionado”, salienta. Euclides Redin é graduado em Pedagogia, pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Nossa Senhora da Imaculada Conceição, com especialização em Orientação Educacional, pela PUC-Rio. Nesta mesma universidade, realizou o mestrado em Educação. Também é doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, pela Universidade de São Paulo (USP). Por longos anos foi professor na Unisinos e pesquisador do PPG em Educação da mesma universidade. Autor de Paulo Freire: ética, utopia e educação (São Leopoldo: Vozes, 1999), atualmente é professor da Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo, RS. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em sua opinião, por que a porcentagem de evasão escolar ainda é tão grande e crescente? Euclides Redin – De fato, essa questão está em pauta. A pesquisa da Fundação Getulio Vargas mostra que, especialmente no Ensino Médio, há uma porcentagem grande de jovens que não vão para escola, ou vão e depois desistem. A pesquisa conclui que a maioria que desiste é por falta de interesse. Uma minoria dos desistentes diz que é por causa do trabalho. A meu ver, existe ainda que há uma questão mal colocada pela pesquisa. O jovem tem interesse em estudar, assim como toda criança e jovem sadio quer aprender, tanto que todos eles são curiosos e aprendem coisas que às vezes nem deveriam. O aprender faz parte do descobrimento do mundo e de si mesmo. Não é possível culpar o aluno dizendo que ele não quer aprender. O que está acontecendo é que a escola que oferecemos não é interessante. Nossa escola é disciplinadora, com conteúdos que não são significativos e não irão levar a grandes mudanças e melhorias na vida dos jovens. O desafio da sobrevivência é muito maior e vai além dos bancos escolares. A proposta da escola, desse modo, não está respondendo à necessidade de progressão. Por exemplo, toda escola, sobretudo no Ensino Médio, está voltada para a universidade, e a preparação do jovem para o ensino superior. Tanto é que o Enem começa a fazer parte da seleção de vestibular. Então, de fato, os conteúdos são voltados para a universidade, não para a vida, assim como para os interesses imediatos e longos do jovem. No entanto, nas escolas técnicas, praticamente, a evasão é zero. Há filas de espera no Senai, Senac, escolas técnicas, formada por jovens que querem estudar nelas porque sabem que depois estão praticamente empregados. Então, essas escolas oferecem conteúdos que têm consequência na vida do jovem, mesmo que elas sejam pesadas, exigentes. Precisamos pensar, portanto, num novo tipo de escola. A causa não está no jovem, mas na escola que não oferece uma experiência significativa de dignidade humana, de existência, de cidadania e que melhora a sua perspectiva de vida. Além disso, nós, professores, não estamos muito voltados a entender a expectativa do jovem. Temos mais um compromisso com o conteúdo, com processos didático-pedagógicos, com a disciplina.
IHU On-Line – O mercado vem disputando o jovem com a escola. Que influência a escola pode ter para que o jovem também corresponda a essa expectativa do jovem?
Euclides Redin – A escola não prepara para o mercado, mas, sim, para o ensino geral. A escola deveria ser profissionalizante, mas, conforme a lei, ela só pode ser desse modo quando cursada paralelamente ou após o Ensino Médio. De fato, a escola não prepara para o mercado de trabalho, mas visa à obtenção dos estudos do ensino superior. No entanto, grande parte da população não tem em vista o ensino superior quando falta comida em casa, quando o pai está desempregado, ou quando o fundamental é garantir a sobrevivência. Grande parte da população jovem quer ir para o mundo do trabalho. Para isso, precisa de alguma competência básica. Muito do conhecimento proposto pela escola não tem aplicabilidades para o jovem poder lutar por emprego e integração no mundo do trabalho. O mercado precisa de gente preparada e a exigência é a experiência. O que o mercado quer é a competência para resultados, o que ainda não conseguimos.
IHU On-Line – Que perfil tem esse jovem que opta pelo mercado? E que tipo de adulto ele se forma? Euclides Redin – Tenho, a partir da minha experiência, que o jovem brasileiro, nesse impasse que estamos em relação ao futuro, quer viver o tempo presente agora, já e imediatamente. Isso porque em relação ao futuro ele não tem grandes expectativas. Não sabemos que futuro estamos oferecendo a ele. Há um presenteísmo no perfil do jovem do mundo: ele precisa consumir e aproveitar o momento presente porque não sabe se irá viver o amanhã. Além disso, o futuro não se apresenta como promissor. Isso tem consequências no sentido de que homem futuro a sociedade está construindo. Este homem é um pouco desesperançado. Não sabemos o que esperar de nossos jovens daqui a meio ano, um ano. Aí estão todos os jovens, os que têm e os que não têm estudo. Nós, na universidade, vivemos esse drama no período de formatura. Recebe-se um diploma, mas o aluno sai, no dia seguinte, à procura de emprego, às vezes por meses e anos. Muitas vezes, o trabalho que consegue não é na área em que se especializou, porque o mundo mudou. Não temos, portanto, muitas expectativas sobre o futuro. Há uma desesperança globalizada, então a questão do homem do futuro é uma incógnita. Isso explica violências de vários tipos, comportamentos desesperados, assassinatos, mortes, consumismo, aproveitamento do momento presente.
IHU On-Line – Há uma cultura nova se formando a partir desse grande número de jovens abandonando as escolas? Euclides Redin – Essa é a grande pergunta. A escola, para o jovem, é boa. O que ele não gosta é da sala de aula. Ele aprecia, na escola, a companhia dos educadores, o pátio etc. O que está acontecendo no mundo é esse presenteísmo, que é um desafio. O futuro não dá grandes esperanças. O desafio é criar uma cultura em que valha a pena investir em valores humanos, cívicos, cidadania, dignidade. Não podemos desistir da luta. Se o jovem não for à luta, ficará pior. É preciso, a partir daí, criar uma cultura da esperança. Quando cada instituição fizer a sua parte, dará força a essa ideia de uma cultura para um outro futuro.
IHU On-Line – O professor precisa rever seu papel na escola, diante dos alunos? Euclides Redin – Nós, os professores, precisamos nos preparar melhor. Há muito professor bom, especial, interessado e que deseja fazer da escola uma experiência de dignidade, cidadania, construção de pensamento, de emoções. Mas há muitos professores que estão desestimulados. Nós sofremos de uma síndrome do desânimo, do descaso. Somos muito maltratados pelo sistema. É possível ver como os professores do Rio Grande do Sul têm sido tratados, nos últimos anos, pelas secretarias estaduais, pelos governos. E o sindicato dos professores do estado é um dos maiores da América Latina. É preciso investir nos professores, no acompanhamento, na renovação de sua formação continuada, para que possamos cumprir melhor a função de mestres, professores e companheiros dos alunos. A outra coisa que precisa ser repensada é a função dos sistemas de educação. As leis e as políticas públicas da escola precisam ser repensadas. Nós vivemos de plano em plano, coordenados pela União (MEC, Capes etc.), promovendo reformas. Mas reformas sempre em função de alterar procedimentos. Para que serve a escola? Isso não está sendo questionado. O conceito de escola, hoje, é o mesmo do tempo do início da modernidade. Alteraram as metodologias as didáticas, as tecnologias, mas a escola é a mesma, um espaço em que as crianças e jovens recebem disciplinamento do corpo e da mente. Existem experiências de escolas que estão voltadas à construção conjunta de uma cultura de cidadania.
IHU On-Line – Esse posicionamento dos alunos, de desinteresse pelas aulas que leva ao abandono das escolas, explica, de alguma forma, a postura violenta de que tanto se fala nos últimos dias? Euclides Redin – Nunca apareceram tantos casos de violência na escola, mas tenho a impressão de que essa violência sempre existiu. A imprensa gosta quando a notícia tem sangue e, quando as coisas se tornaram mais violentas, se insiste no assunto. A violência não nasceu na escola, e não é a escola que irá acabar com a violência nas ruas. Há uma nova visão de civilização para poder participar do mercado. Hoje, vivemos a relação social de incluídos e excluídos. Isto aparece de diversas maneiras, há muito tempo, fora da escola e agora adentrou este espaço. O que a escola pode fazer? Trabalhar uma experiência diferente de vida e, assim, fazer com que essa experiência possa escoar para as ruas, para as casas, para os pátios, porque, se vamos fazer uma pesquisa sobre as múltiplas violências que ocorrem dentro de casa, vamos nos assustar ainda mais.
IHU On-Line – Como o senhor vê o modelo proporcionado pelas escolas itinerantes do MST?
Euclides Redin – Ali há uma coisa significativa. De fato, a escola itinerante, que era reconhecida pelo estado, estava centrada em cima das crianças de famílias acampadas. O currículo era montado em função dessas crianças e estava dando certo! Quem estava sendo transferido para escolas tradicionais estava se dando muito bem. O controle do sistema sobre a escola itinerante não era tão efetivo e, assim, ele começou a fechá-la, pois não havia como fazer seu controle. A infraestrutura era feita debaixo de uma árvore, ou de uma lona preta, com professores acampados e com crianças passando por um momento complicado. A situação é precária, claro, mas essa escola tratava melhor a questão da vivência.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Muros nas favelas do RJ. Segregação, apartação, divisão? Entrevista especial com Ignácio Cano

Segregação, apartação, divisão? Ou seria apenas uma forma de conter a expansão das favelas em relação à Mata Atlântica? Os muros que estão sendo construídos em torno das favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro, mais do que gerarem debates, estão levantando dúvidas importantes. O prefeito fala, inclusive, em remoção das favelas, mas o projeto usa como justificativa a preservação ambiental. A questão é que os muros já estão sendo levantados, e os problemas sociais também já estão surgindo. Quem analisa o projeto dos muros e os problemas causados por ele é o sociólogo Ignácio Cano, em entrevista à IHU On-Line. Realizada por telefone, a conversa traz dados relevantes sobre a questão. Ele acredita que, se o projeto é mesmo de contenção de território, isso deveria ser feito de forma menos agressiva e, portanto, defende uma fiscalização rigorosa para conter a expansão urbana para áreas de proteção ambiental. “Eu acho que é justificável pelo controle da expansão, sem dúvida alguma, quando falamos em áreas de proteção ambiental.
Agora, é bom que se saiba que a expansão não acontece só nas favelas da Zona Sul. Acontece, sobretudo, na Zona Oeste. Então, a lógica de controlar a expansão nessas áreas não nos levaria diretamente a construção de muros nas favelas da Zona Sul. Isso introduz mais uma dúvida: qual é a lógica por detrás disso?”, questionou Cano. Ignácio Cano é sociólogo graduado pela Universidad Complutense de Madrid, na Espanha. Nesta mesma universidade, realizou o doutorado em Sociologia. Fez pós-doutorado pela University of Michigan, pela University of Arizona e pela Lancaster University. Atualmente, é consultor do Observatório das Favelas e do Governo do Estado de Minas Gerais. Coordena pesquisa na Ong Conectas e na Fundação Heinrich Böll. Também é professor do curso de Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Socialmente falando, o que explica e implica com a construção dos muros em torno das favelas cariocas? Ignácio Cano – A proposta dos muros não é recente, já existe há algum tempo e se situa numa certa ambiguidade. Por um lado, há uma agenda ambiental, de proteção de áreas protegidas da Mata Atlântica, e de controle na expansão (até agora descontrolada) de territórios urbanos. Por outro lado, há uma agenda de segurança pública e de controle das populações que moram nesses territórios. No passado, quando a proposta foi lançada, ela gerou uma resistência muito grande em função dessa estigmatização, dessa associação entre moradores de favela e gueto. A ideia dos muros se assemelha, como Saramago já falou, à ideia dos muros de Berlim e da Palestina. Dessa vez, o governo lançou a ideia com base na proteção ambiental, que de fato é urgente. É preciso regular a situação dos territórios e preservar as áreas de Mata Atlântica. No entanto, há uma suspeita de que a lógica desses muros não é simplesmente uma lógica de proteção ambiental, mas também inclui uma linha de segurança pública. Nós defendemos que o mesmo objetivo de demarcação de território poderia ser conseguido com uma intervenção menos agressiva, que demarcasse de alguma outra forma que não tivesse um custo econômico tão alto, nem um impacto paisagístico tão forte. Além disso, não deveria associar os moradores de favela a essa ideia de gueto. Afinal de contas, o controle da expansão de territórios depende mais da fiscalização do que da construção de limites. Acredito que isso poderia ter sido feito de uma forma mais simples e menos agressiva.
IHU On-Line – A construção dos muros influencia de que forma a violência gerada neste espaço? Ignácio Cano – Ela pode ser usada como uma estratégia de contenção, por exemplo, quando há uma operação policial nas favelas. É relativamente comum que membros de grupos criminosos fujam para as áreas do mato. Os muros poderiam ser usados para fechar esses acessos. Então, poderiam haver operações, de forma que não pudesse haver uma fuga das comunidades. Mas, se os muro forem usados com esse intuito, sem dúvida alguma sofrerão ataques, desmontando em alguns locais. A manutenção para esse tipo de muro será muito alta e será um plano inviável. Então, acredito, se eles forem usados de fato como uma ferramenta para segurança pública, irão sofrer ataques e acabarão sendo destruídos num prazo relativamente breve.
IHU On-Line – Os muros em torno das favelas cariocas podem ser ambientalmente justificáveis? Ignácio Cano – Eu acho que é justificável pelo controle da expansão, sem dúvida alguma, quando falamos em áreas de proteção ambiental. Agora, é bom que se saiba que a expansão não acontece só nas favelas da Zona Sul. Acontece, sobretudo, na Zona Oeste. Então, a lógica de controlar a expansão nessas áreas não nos levaria diretamente a construção de muros nas favelas da Zona Sul. Isso introduz mais uma dúvida: qual é a lógica por detrás disso? Para alguns setores da sociedade, de classe média, a ideia de contenção das favelas, historicamente, era, na verdade, de remoção. Isso foi feito, em parte, pelo regime militar, de uma forma muito autoritária. Hoje em dia, não há uma viabilidade política ou econômica para essa política da remoção, mas a ideia de contenção vai de encontro ao imaginário de parte da população, ao invés de conter as favelas. Na verdade, trata muito mais de planejamento urbano e, portanto, de evitar a expansão descontrolada em todo o território. Acredito que isso possa ser feito com outras ferramentas, sobretudo com fiscalização, que não exigirão a construção de muros que tenham as desvantagens que apontei inicialmente.
IHU On-Line – A construção dos muros pode ser considerado uma forma de apartação? Ignácio Cano – Essa é a questão, ou seja, quando você constrói um muro de três metros de concreto está colocando um de um lado e outro do outro. É preciso evitar que a população se expanda, o que, do ponto de vista do planejamento urbano, pode ser razoável. No entanto, há uma outra associação em relação às pessoas que moram lá dentro, o que é muito negativa para elas. O governo está negando, por enquanto, essa associação, mas há suspeita de que, além da agenda ambiental, há essa outra agenda que é negativa para as pessoas dessas comunidades.
IHU On-Line – Por que apenas os jornais cariocas e internacionais estão debatendo essa questão? Ignácio Cano – Acho que o Brasil tem debatido até certo ponto. Tenho recebido ligações de revistas e jornais de outros estados. É claro que é um problema tipicamente carioca, mas é um problema nacional. O governo está ciente dessa polêmica e das controvérsias. Por isso, está tentando frisar essa lógica ambiental e que os muros não irão cercar totalmente as favelas. Penso que o governo está ciente que as significativas geram uma certa resistência.
IHU On-Line – Conter a expansão das favelas é necessário? Ignácio Cano – Mais do que conter, existe a questão do planejamento urbano. Pode haver uma certa expansão, mas não pode ser descontrolada. Na favela, a grande vantagem é que podem construir para cima. Isso tem acontecido de forma sistemática, mas é preciso também respeitar normas de segurança para as pessoas que moram lá. Mais do que conter, a ideia é planejar o tecido urbano de forma que a expansão não seja descontrolada. Isso vale para todo o território, pois, como falei antes, a grande expansão hoje não acontece nas favelas da Zona Sul, acontece nas áreas da Zona Oeste.
IHU On-Line – Que problemas sociais esses muros começam a gerar? Ignácio Cano – Começam a gerar essa sensação de gueto e de cercamento de comunidades, que já existe, porque de fato vivemos numa sociedade dividida. Até certo ponto é segregada, onde, por exemplo, moradores das áreas novas de classe média não podem ir livremente às favelas e os moradores das favelas não podem ir livremente em outras favelas, muitas vezes. Então, os direitos básicos de locomoção já estão limitados e o grau de segregação urbana é bastante grande. A particularidade do Rio de Janeiro também é que essas áreas segregadas são de uma dimensão muito reduzida, então existem pessoas ganhando um ou dois salários mínimos por mês morando muito perto de pessoas que ganham 20, 30 salários mínimos. Essa microsegregação é muito característica do Rio de Janeiro, mas ela já existe. Os muros vêm contribuir simbolicamente com essa imagem de separação, divisão entre as populações.
IHU On-Line – Todas as favelas que serão cercadas ficam na Zona Sul. O que isso significa? Ignácio Cano – Isso pode ser interpretado de várias formas. A mais óbvia é que o Poder Público dá atenção basicamente ao que acontece na Zona Dul. A violência, por exemplo, que acontece na Zona Sul tem muita repercussão, gerando política pública, mobilização social, além de muitos artigos e matérias na imprensa. E o que acontece nas favelas, sobretudo da Zona oeste, apenas gera impacto social. Então, isso vale para a violência, para investimento urbano, para tudo. Nossa sociedade é muito desigual do ponto de vista individual, territorial, e o Poder Público presta uma atenção especial ao que acontece, então, na Zona Sul. Essa é a primeira leitura. A outra leitura é: na medida em que existe essa outra agenda de segurança pública, ela também irá tentar privilegiar a segurança das populações da Zona Sul. Por exemplo, num debate que aconteceu recentemente, o prefeito voltou a colocar o termo remoção, quase banido do debate público, o que gerou um debate que tem provocado bastante controvérsia. O prefeito afirma que preciso mesmo haver debate. Mas, mais uma vez, os argumentos usados foram, por exemplo, que a Lagoa Rodrigo de Freitas, entre outros lugares, tiveram favelas removidas pelo regime militar. Os argumentos são sempre referidos ao que acontece na zona nobre da cidade.

domingo, 19 de abril de 2009

Ocidente e Islã: os medos recíprocos. Entrevista com Gilles Kepel

"Se nos esquecemos das teorias de Huntington, tudo se torna mais simples". Os europeus podem desempenhar um papel importante: na França, os jovens muçulmanos já são a vanguarda de uma nova geração híbrida e mestiça. "O discurso feito em Ankara por Barack Obama é um ótimo sinal que encerra a época do choque de civilizações teorizado por Samuel Huntington". Gilles Kepel, um dos maiores especialistas sobre o mundo muçulmano, está convencido disso. A reportagem é do jornal La Repubblica, 14-04-2009.
A tradução é de Moisés Sbardelotto. "Com esse discurso, como também com a decisão de fechar Guantánamo, o presidente norte-americano quer romper radicalmente com a era Bush e a sua ideologia. A América de Obama quer se posicionar além da dupla terror-martírio. Ele não acredita mais na grande cruzada da época Bush para transformar o mundo muçulmano com a força. E, abandonando essa visão do mundo, Obama tenta marginalizar a Al Qaeda, cujo mito prospera graças à oposição à política de Bush". Eis a entrevista.
A teoria do choque de civilizações é útil aos fundamentalistas islâmicos? Certamente, os islâmicos adoram o livro de Huntington, porque dá a eles um estatuto e legitima a sua ação. Graças a isso, eles se tornaram os únicos representantes das populações muçulmanas. Depois do fim do comunismo, Huntington procurou encontrar novas linhas de ruptura a partir de uma oposição entre civilização e religião. Mas desse modo reificou identidades que, na realidade, são móveis. Se ele teve tanto sucesso, é só porque a sua teoria chegou em um momento de vazio ideológico.
Então, a sua parábola se concluiu? Obama, em todo o caso, não a compartilha absolutamente. O choque entre Bush e Bin Laden nascia do choque entre duas grandes narrações: a da guerra contra o terror, feitas pelos norte-americanos, e a da jihad contra o Ocidente. Duas narrações que faliram em seus objetivos. Bush não conseguiu transformar o Oriente Médio em uma província submetida aos Estados Unidos, enquanto Bin Laden não conseguiu mobilizar as massas muçulmanas atrás da bandeira do martírio. Então, Obama quer fechar o parêntese aberto pelos atentados do 11 de setembro de 2001. Veremos se, depois de ter encerrado a era Bush, a sua política será suficientemente eficaz para encerrar também a era Bin Laden. E sobretudo reconstruir as relações com o mundo muçulmano.
Acredita que ele conseguirá? Em todo o caso, não poderá fazer isso sozinho, dado que a América não tem mais os meios para uma política unilateral. Ele precisa cooperar com os aliados e deve levar em conta as exigências dos outros países. Obama sabe que o mundo se tornou multipolar e está procurando se adaptar a essa realidade, sem ideologias pré-concebidas. Nessa perspectiva, a Europa pode desempenhar um papel importante, por exemplo, construindo um espaço comum no qual possam se reencontrar todos os países que estão na orla do Mediterrâneo. Esse espaço pode se tornar uma oportunidade de encontro entre o Ocidente e o Islã, para superar os medos recíprocos deixados de herança por aqueles que, nos dois campos, invocavam a cruzada e a jihad. Se, porém, esquecermos as teorias de Huntington, tudo se torna mais simples. Certamente, a presença dos muçulmanos na Europa foi vivida de maneira dramática no momento dos atentados de Madri ou de Londres. Mas a situação está mudando. Na França, os jovens muçulmanos, na realidade, são já a vanguarda de uma nova geração híbrida e mestiça, que vem do mundo muçulmano, mas é sempre mais de cultura europeia. Apesar de todas as dificuldades, essa nova geração já está deixando para trás a guerra e as culturas.

Socialismo fracassou, capitalismo quebrou: o que vem a seguir?

A prova de uma política progressista não é privada, mas sim pública। A prioridade não é o aumento do lucro e do consumo, mas sim a ampliação das oportunidades e, como diz Amartya Sen, das capacidades de todos por meio da ação coletiva. Isso significa iniciativa pública não baseada na busca de lucro. Decisões públicas dirigidas a melhorias sociais coletivas com as quais todos sairiam ganhando. Esta é a base de uma política progressista, não a maximização do crescimento econômico e da riqueza pessoal. A análise é do historiador britânico Eric Hobsbawm em artigo publicado no The Guardian e reproduzido pela Carta Maior, 15-04-2009.
Eis o artigo. Seja qual for o logotipo ideológico que adotemos, o deslocamento do mercado livre para a ação pública deve ser maior do que os políticos imaginam. O século XX já ficou para trás, mas ainda não aprendemos a viver no século XXI, ou ao menos pensá-lo de um modo apropriado. Não deveria ser tão difícil como parece, dado que a idéia básica que dominou a economia e a política no século passado desapareceu, claramente, pelo sumidouro da história. O que tínhamos era um modo de pensar as modernas economias industriais – em realidade todas as economias -, em termos de dois opostos mutuamente excludentes: capitalismo ou socialismo. Conhecemos duas tentativas práticas de realizar ambos sistemas em sua forma pura: por um lado, as economias de planificação estatal, centralizadas, de tipo soviético; por outro, a economia capitalista de livre mercado isenta de qualquer restrição e controle. As primeiras vieram abaixo na década de 1980, e com elas os sistemas políticos comunistas europeus; a segunda está se decompondo diante de nossos olhos na maior crise do capitalismo global desde a década de 1930. Em alguns aspectos, é uma crise de maior envergadura do que aquela, na medida em que a globalização da economia não estava então tão desenvolvida como hoje e a economia planificada da União Soviética não foi afetada. Não conhecemos a gravidade e a duração da atual crise, mas sem dúvida ela vai marcar o final do tipo de capitalismo de livre mercado iniciado com Margareth Thatcher e Ronald Reagan. A impotência, por conseguinte, ameaça tanto os que acreditam em um capitalismo de mercado, puro e desestatizado, uma espécie de anarquismo burguês, quanto os que crêem em um socialismo planificado e descontaminado da busca por lucros. Ambos estão quebrados. O futuro, como o presente e o passado, pertence às economias mistas nas quais o público e o privado estejam mutuamente vinculados de uma ou outra maneira. Mas como? Este é o problema que está colocado diante de nós hoje, em particular para a gente de esquerda. Ninguém pensa seriamente em regressar aos sistemas socialistas de tipo soviético, não só por suas deficiências políticas, mas também pela crescente indolência e ineficiência de suas economias, ainda que isso não deva nos levar a subestimar seus impressionantes êxitos sociais e educacionais. Por outro lado, até a implosão do mercado livre global no ano passado, inclusive os partidos social-democratas e moderados de esquerda dos países do capitalismo do Norte e da Australásia estavam comprometidos mais e mais com o êxito do capitalismo de livre mercado. Efetivamente, desde o momento da queda da URSS até hoje não recordo nenhum partido ou líder que denunciasse o capitalismo como algo inaceitável. E nenhum esteve tão ligado a sua sorte como o New Labour, o novo trabalhismo britânico. Em suas políticas econômicas, tanto Tony Blair como Gordon Brown (este até outubro de 2008) podiam ser qualificados sem nenhum exagero como Thatchers com calças. O mesmo se aplica ao Partido Democrata, nos Estados Unidos. A idéia básica do novo trabalhismo, desde 1950, era que o socialismo era desnecessário e que se podia confiar no sistema capitalista para fazer florescer e gerar mais riqueza do que em qualquer outro sistema. Tudo o que os socialistas tinham que fazer era garantir uma distribuição eqüitativa. Mas, desde 1970, o acelerado crescimento da globalização dificultou e atingiu fatalmente a base tradicional do Partido Trabalhista britânico e, em realidade, as políticas de ajudas e apoios de qualquer partido social democrata. Muitas pessoas, na década de 1980, consideraram que se o barco do trabalhismo não queria ir a pique, o que era uma possibilidade real, tinha que ser objeto de uma atualização. Mas não foi. Sob o impacto do que considerou a revitalização econômica thatcherista, o New Labour, a partir de 1997, engoliu inteira a ideologia, ou melhor, a teologia, do fundamentalismo do mercado livre global. O Reino Unido desregulamentou seus mercados, vendeu suas indústrias a quem pagou mais, deixou de fabricar produtos para a exportação (ao contrário do que fizeram Alemanha, França e Suíça) e apostou todo seu dinheiro em sua conversão a centro mundial dos serviços financeiros, tornando-se também um paraíso de bilionários lavadores de dinheiro. Assim, o impacto atual da crise mundial sobre a libra e a economia britânica será provavelmente o mais catastrófico de todas as economias ocidentais e o com a recuperação mais difícil também. É possível afirmar que tudo isso já são águas passadas. Que somos livres para regressar à economia mista e que a velha caixa de ferramentas trabalhista está aí a nossa disposição – inclusive a nacionalização -, de modo que tudo o que precisamos fazer é utilizar de novo essas ferramentas que o New Labour nunca deixou de usar. No entanto, essa idéia sugere que sabemos o que fazer com as ferramentas. Mas não é assim. Por um lado, não sabemos como superar a crise atual. Não há ninguém, nem os governos, nem os bancos centrais, nem as instituições financeiras mundiais que saiba o que fazer: todos estão como um cego que tenta sair do labirinto tateando as paredes com todo tipo de bastões na esperança de encontrar o caminho da saída. Por outro lado, subestimamos o persistente grau de dependência dos governos e dos responsáveis pelas políticas às receitas do livre mercado, que tanto prazer lhes proporcionaram durante décadas. Por acaso se livraram do pressuposto básico de que a empresa privada voltada ao lucro é sempre o melhor e mais eficaz meio de fazer as coisas? Ou de que a organização e a contabilidade empresariais deveriam ser os modelos inclusive da função pública, da educação e da pesquisa? Ou de que o crescente abismo entre os bilionários e o resto da população não é tão importante, uma vez que todos os demais – exceto uma minoria de pobres – estejam um pouquinho melhor? Ou de que o que um país necessita, em qualquer caso, é um máximo de crescimento econômico e de competitividade comercial? Não creio que tenham superado tudo isso. No entanto, uma política progressista requer algo mais que uma ruptura um pouco maior com os pressupostos econômicos e morais dos últimos 30 anos. Requer um regresso à convicção de que o crescimento econômico e a abundância que comporta são um meio, não um fim. Os fins são os efeitos que têm sobre as vidas, as possibilidades vitais e as expectativas das pessoas. Tomemos o caso de Londres. É evidente que importa a todos nós que a economia de Londres floresça. Mas a prova de fogo da enorme riqueza gerada em algumas partes da capital não é que tenha contribuído com 20 ou 30% do PIB britânico, mas sim como afetou a vida de milhões de pessoas que ali vivem e trabalham. A que tipo de vida têm direito? Podem se permitir a viver ali? Se não podem, não é nenhuma compensação que Londres seja um paraíso dos muito ricos. Podem conseguir empregos remunerados decentemente ou qualquer tipo de emprego? Se não podem, de que serve jactar-se de ter restaurantes de três estrelas Michelin, com alguns chefs convertidos eles mesmos em estrelas. Podem levar seus filhos à escola? A falta de escolas adequadas não é compensada pelo fato de que as universidades de Londres podem montar uma equipe de futebol com seus professores ganhadores de prêmios Nobel. A prova de uma política progressista não é privada, mas sim pública. Não importa só o aumento do lucro e do consumo dos particulares, mas sim a ampliação das oportunidades e, como diz Amartya Sen, das capacidades de todos por meio da ação coletiva. Mas isso significa – ou deveria significar – iniciativa pública não baseada na busca de lucro, sequer para redistribuir a acumulação privada. Decisões públicas dirigidas a conseguir melhorias sociais coletivas com as quais todos sairiam ganhando. Esta é a base de uma política progressista, não a maximização do crescimento econômico e da riqueza pessoal. Em nenhum âmbito isso será mais importante do que na luta contra o maior problema com que nos enfrentamos neste século: a crise do meio ambiente. Seja qual for o logotipo ideológico que adotemos, significará um deslocamento de grande alcance, do livre mercado para a ação pública, uma mudança maior do que a proposta pelo governo britânico. E, levando em conta a gravidade da crise econômica, deveria ser um deslocamento rápido. O tempo não está do nosso lado.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

O MUNDO SEGUNDO A MONSANTO !

Marie-Monique Robin: "O mundo segundo a Monsanto" Pesquisadora francesa fala do poder da maior multinacional de sementes: corrupção de governos, produção armas químicas, controle de alimentos em nível global Em entrevista jornal argentino Página 12, a escritora e documentarista francesa, Marie-Monique Robin apresenta seu novo livro, fruto de três anos de profundas investigações sobre o poder de influência da multinacional sobre Governos e o projeto de controle total da produção de alimentos em nível global. Corrupção, produção de armas químicas e controle sobre do que você come são algumas das denuncias feitas pela francesa. Como define a Monsanto? Monsanto é uma empresa deliquente. E digo por que há provas concretas disso. Foi muitas vezes condenada por suas atividades industriais, por exemplo o caso dos PCB, produto que agora está proibido, mas que segue contaminando o planeta. Durante 50 anos o PCB esteve nos transformadores de energia. E a Monsanto, que foi condenada por isso, sabia que eram produtos muito tóxicos, mas escondeu informação e nunca disse nada. E é a mesma história com outros dois herbicidas produzidos por Monsanto, que formaram o coquetel chamado “agente laranja” utilizado na guerra do Vietnã, e também sabia que era muito tóxico e fez o mesmo. E mais, manipulou estudos para esconder a relação entre as dioxinas e o câncer. É uma prática recorrente na Monsanto. Muitos dizem que isto é o passado, mas não é assim, é uma forma de obter lucros que ainda hoje está vigente. A empresa nunca aceitou seu passado nem aceitou responsabilidades. Sempre tratou de negar tudo. É uma linha de conduta, e hoje acontece o mesmo com os transgênicos e o Roundup. Quais são as práticas comuns da Monsanto na ordem global? Tem práticas comuns em todos os países onde atua. Monsanto esconde dados sobre seus produtos, mas não só isso, também mente e falsifica estudos sobre seus produtos. Outra particularidade que se repete na Monsanto é que cada vez que cientistas independentes tratam de fazer seu trabalho a fundo com os transgênicos, têm pressões ou perdem seus trabalhos. Isso também acontece nos organismos dos Estados Unidos como são a FDA (Administração de Alimentos e Medicamentos) ou EPA (Agência de Proteção Ambiental). Monsanto também é sinônimo de corrupção. Dois exemplos claros e provados são a tentativa de suborno no Canadá, que originou uma sessão especial do Senado canadense, quando se tratava a aprovação do hormônio de crescimento leiteiro. E o outro caso é na Indonésia, onde a Monsanto foi condenada porque corrompeu a cem altos funcionários para por no mercado seu algodão transgênico. Não duvidamos que exista mais casos de corrupção onde a Monsanto é quem corrompe. Você também afirma que a modalidade de “portas giratórias” é uma prática habitual. Sem dúvida. Na história da Monsanto sempre está presente o que nos Estados Unidos se chama “a porta giratória”. Um exemplo claro: o texto de regulamentação que regula os transgênicos nos Estados Unidos foi publicado em 1992 pela FDA, a agência norteamericana encarregada da seguridade de alimentos e medicamentos. A qual se supõe é muito séria, ao menos sempre eu pensava isso, até antes deste trabalho. Quando diziam que um produto havia sido aprovado pela FDA pensava que era seguro. Agora sei que não é assim. No '92, o texto da FDA foi redigido por Michael Taylor, advogado da Monsanto que ingressou na FDA para fazer esse texto e logo foi vice-presidente da Monsanto. Um exemplo muito claro de “porta giratória”. Há muitos exemplos, em todo o mundo. Monsanto fabricou o agente laranja, PCB e glifosato. E tem condenações por publicidade enganosa. Por que tem tão boa reputação? Por falta de trabalho sério dos jornalistas e a cumplicidade dos políticos. Em todo o mundo é igual. Por que a Monsanto não fala? Tentou chamá-los? Sim, mas não aceitaram perguntas. Também é o mesmo em todo o mundo. Ante qualquer jornalista crítico, a Monsanto tem uma só política: “Não comentes” (sem comentários). O que significa a Monsanto no mercado mundial de alimentos? A meta da Monsanto é controlar a cadeia alimentar. Os transgênicos são um meio para essa meta. E as patentes uma forma de conseguí-lo. A primeira etapa da “revolução verde” já ficou para trás, foi a de plantas de alto rendimento com utilização de pesticidas e a contaminação ambiental. Agora estamos na segunda etapa dessa “revolução”, onde a chave é fazer valer as patentes sobre os alimentos. Isto não tem nada a ver com a idéia de alimentar ao mundo, como se publicou em seu momento. A única finalidade é aumentar os lucros das grandes corporações. Monsanto ganha em tudo. Ela vende o pacote tecnológico completo, sementes patenteadas e o herbicida obrigatório para essa semente. Monsanto te faz firmar um contrato pelo qual te proíbe conservar sementes e te obriga a comprar Roundup, não se pode utilizar um glifosato genérico. Neste modelo Monsanto ganha em tudo, e é tudo ao contrário da segurança alimentar. De passagem, recordemos, que a soja transgênica que se cultiva aqui não é para alimentar aos argentinos, é para alimentar aos porcos europeus. E o que acontecerá na Argentina quando as carnes da Europa terem que ser etiquetadas sendo que foram alimentadas com soja transgênica? Se deixará de comprar carnes desse tipo e a Argentina também receberá o golpe, porque lhe abaixará a demanda de soja. Esteve na Argentina, Brasil e Paraguai. Que particularidades encontrou na região? Deve-se recordar que a Monsanto entrou aqui graças ao governo de Carlos Menem, que permitiu que a soja transgênica entrasse sem nenhum estudo. Foi o primeiro país da América Latina. Depois da Argentina organizou-se um contrabando de sementes transgênicas, de grandes produtores, para o Paraguai e o Brasil, que se viram obrigados a legalizá-las porque eram cultivos que depois se exportavam. E depois veio a Monsanto a reclamar suas regalias. Foi incrível como se expandiu a soja transgênica na região, e em tão poucos anos. É um caso único no mundo. Na década de 90 a Argentina era denominada como aluno modelo do FMI. Hoje, com 17 milhões de hectares com soja transgênica e a utilização de 168 milhões de litros só de glifosato, pode-se dizer que a Argentina é um aluno modelo dos agronegócios? Sim, claro. A Argentina adotou o modelo Monsanto em tempo recorde, é um caso pragmático. Mas também houve alguns problemas com o aluno modelo. Como as sementes transgênicas são patenteadas, Monsanto tem o direito de propriedade intelectual. Isso significa, como o vi no Canadá e Estados Unidos, que lhes fazem firmar aos produtores um contrato nos quais se comprometem a não conservar parte de suas colheitas para ressemear no próximo ano, o que fazem os agricultores de todo o mundo. A Monsanto o denuncia como uma violação de sua patente. Então a Monsanto envia a “polícia de genes”, que é algo incrível, detetives privados que entram nos campos, tomam amostras , verificam se é transgênico e se o agricultor tem comprado suas sementes. Se não as tem comprado, realizam juízos e a Monsanto ganha. É parte de uma estratégia global: a Monsanto controla a maioria das empresas sementeiras e patenteia as sementes, exigindo que cada campesino compre suas sementes. O que aconteceu aqui é que a lei argentina não proíbe guardar sementes de uma colheita e utilizá-las na próxima semeadura. Em um primeiro momento a Monsanto disse que não iria pedir regalias, e deu sementes baratas e Roundup barato. Mas em 2005 começou a pedir regalias, rompeu o acordo inicial e por isso mantém um enfrentamento judicial com seu aluno preferido. O Roundup tem um papel protagonista neste modelo. Muitas comunidades campesinas e indígenas denunciam seus efeitos, mas existem poucas proibições. É um impacto incrivelmente silenciado. Ninguém pode negar o que trazem as esterilizações com este herbicida, totalmente nocivo. Tenho a segurança de que será proibido em algum momento, como foi o PCB, estou segura de que chegará este momento. De fato na Dinamarca já foi proibido por sua alta toxicidade. É urgente analisar o perigo dos agroquímicos e os OGM (Organismos Geneticamente Modificados). Contudo, as grandes empresas do setor prometem há décadas que com transgênicos e agrotóxicos se conseguirá aumentar a produção, e assim acabar com a fome do mundo. A Argentina é o melhor exemplo dessa mentira. Como tem ido com a sojização do país? Tem se perdido na produção de outros alimentos básicos e ainda há fome. Este modelo é o modelo do monocultivo, que acaba co outros cultivos vitais. É uma transformação muito profunda da agricultura, que leva diretamente à perda da soberania alimentar, e lamentavelmente já não depende de um governo para poder revertê-lo. Por que ao processo agrário atual você o chama “a ditadura da soja”? É uma ditadura no sentido de um poder totalitário, que abrange tudo. Deve-se ter claro que quem controla as sementes controla a comida e controla a vida. Nesse sentido, a Monsanto tem um poder totalitário. É tão claro que até a Syngenta, outra grande empresa do setor e competidora da Monsanto, chamou ao Brasil, Paraguai e Argentina “as repúblicas unidas da soja”. Estamos frente a um programa político com finalidades muito claras. Uma pergunta simples o demonstra: quem decide o que se vai cultivar na Argentina? Não o decide nem o governo nem os produtores, o decide a Monsanto. A multinacional decide o que se semeará, sem importar aos governos, o decide a empresa. E, para pior, a segunda onda de transgênicos vai ser muito forte, com um modelo de agrocombustíveis que acarretará mais monocultivos. E, a esta altura, já está claro que o monocultivo é perda de biodiversidade e é todo contrário à segurança alimentar. Já não há dúvidas de que o monocultivo, seja o da soja ou para biodiesel, é o caminho para a fome. Qual é o papel da ciência no modelo de agronegócios, onde a Monsanto é só sua cara mais famosa? Antes pensava que quando um estudo era publicado em uma prestigiosa revista científica, se tratava de um trabalho sério. Mas não. As condições em que se publicam alguns estudos são tristes, com empresas como Monsanto pressionando aos diretores das revistas. No tema transgênico fica muito claro que é quase impossível realizar estudos do tema. Em muitas partes do mundo, os Estados Unidos ou a Argentina, os laboratórios de investigações são pagos por grandes empresas. E quando o tema é sementes, transgênicos ou agroquímicos, a Monsanto sempre está presente e sempre condiciona as investigações. Os cientistas tem temor ou são cúmplices? Ambas as coisas. O temor e a cumplicidade estão presentes nos laboratórios do mundo. No livro deixo claro que há cientistas, em todos os países, cuja única função é legitimar o trabalho da empresa. Qual é o papel dos governos para que empresas como Monsanto avancem? Os governos são os melhores propagandistas dos OGM (Organismos Geneticamente Modificados). Realizam um trabalho de lobby incrível. A Monsanto leva seus estudos, sua informação, suas revistas e fotos, tudo muito lindo. E diz aos políticos que não haverá contaminação e salvará ao mundo. E os políticos entram na dela. E também há pressões. Deputados franceses tem denunciado publicamente as pressões da Monsanto, até reconheceram que a companhia contatou a cada um dos 500 deputados para que legislem segundo os interesses da empresa. E o papel dos meios de comunicação? Me dá muita pena porque sou jornalista e acredito no que fazemos, acredito que é uma profissão com um papel muito importante na democracia, mas há uma grande manipulação dos meios. Em todo o referido aos transgênicos, a imprensa não trabalha seriamente. Os meios olham a propaganda da Monsanto e a publicam sem questionamentos, como se fossem empregados da empresa. Também é público que a Monsanto convida a comer aos periodistas, lhes dá regalias, os leva de viagem a Saint Louis (onde está sua sede central); os jornalistas vão muito contentes, passeiam pelos laboratórios, não perguntam nada e vão. Assim funcionam os meios com a Monsanto. Também registrei casos nos quais a Monsanto busca, em cada meio de comunicação, um defensor. Estabelece contato com ele e consegue opiniões favoráveis. Não sei se há corrupção, mas sei que a Monsanto consegue seu objetivo. Na Argentina é claro como atua, ao ver alguns artigos de suplementos rurais se vê que em lugar de artigos jornalísticos são publicidades da Monsanto. Não pareceria que um jornalista o escreveu, foi diretamente a companhia. Que avaliação faz do enfrentamento entre o governo e as entidades patronais do agronegócio? Em 2005 entrevistei a Eduardo Buzzi, estava furioso pelo assunto das regalias reclamadas pela Monsanto. Falava dos enganos da Monsanto. E, além disso, falava dos problemas que trazia a soja, até me pôs em contato com pequenos produtores que me falaram das mentiras da Monsanto, da resistência que mostravam as ervas daninhas, que tinha que utilizar mais herbicidas e que os campos ficavam como terra morta. Buzzi sabia tudo isso e me dizia que questionava esse modelo, afirmava que a soja trazia a destruição da agricultura familiar e me dizia que a Federação Agrária representava esse setor, que enfrentava aos pools de semeadura e às grandes empresas. E Buzzi denunciava muito este modelo, muito bom discurso. Mas agora não é o que acontece. Nunca o voltei a ver e gostaria de perguntar-lhe o que lhe aconteceu que agora se une com as entidades mais grandes, me estranha muito a mudança que mostra. E acima de Buzzi está com Aapresid (Associação Argentina de Produtores de Semeadura Direta – integrada por todas as grandes empresas do setor, incluindo as sementes e agroquímicas), que é a que mais ganha com todo esse modelo, e que apareceu pouco neste conflito. Aapresid manipula tudo e está com os grandes sojeiros, que não são agricultores e que até promovem um modelo sem agricultores. Então não entendo como a Federação Agrária disse representar produtores pequenos e está com a Aapresid. O que a Federação Agrária é muito estranho, não se entende. E o papel do governo? As retenções podem ser que frenem algo do processo de sojização. Mas não é uma solução frente a um modelo tão agressivo. A solução tem que ser algo muito mais radical e não a curto prazo. Claro que a tentação dos governos é grande, a soja traz bons rendimentos, mas deve-se pensar a longo prazo. Não há soluções simples e de curto prazo para um modelo que tira campesinos de suas terras e, mediante esterilizações, contamina a água, a terra e a população. Fonte: Brasil de Fato Texto: Darío Aranda, Argentina / Postado em 12/04/2009 ás 10:39

quarta-feira, 8 de abril de 2009

''Temos claro que o governo Lula não é um governo de esquerda, e sim neoliberal''. Entrevista especial com Nilton Viana

Há quase sete anos, a comunicação no Brasil tem um parceiro na luta pela democratização da informação: o jornal Brasil de Fato. Pautado pela luta dos movimentos sociais e buscando romper o cerco formado pelos grandes meios de comunicação, o jornal tem prestado um serviço a favor daqueles que desejam ver, analisar e refletir sobre o outro lado das histórias. A IHU On-Line conversou, por telefone, com o jornalista Nilton Viana, editor do Brasil de Fato. Ele nos fala sobre a história e a luta do veículo e, também reflete um pouco sobre o jornalismo hoje (e do futuro) no Brasil. “Num processo de transformação, a democratização dos meios de comunicação é fundamental. Se quisermos construir uma sociedade justa, igualitária, é fundamental a democratização dos meios de comunicação”, disse ele.
Confira a entrevista. IHU On-Line – O jornal Brasil de Fato inicia o seu sétimo ano de existência sem interrupção, um fato raro em publicações de esquerda. Ao que o senhor atribuiu essa longevidade do jornal?
Nilton Viana – Já estamos caminhando para o sétimo ano de existência e resistência do Brasil de Fato. Na verdade, trata-se de um acontecimento que, com certeza, é uma conquista para a classe trabalhadora. No entanto, ele se deve, fundamentalmente, à contribuição e ao projeto político do Brasil de Fato de militantes espalhados pelo país todo. O jornal nasceu da necessidade justamente dos movimentos sociais de terem seu instrumento de comunicação, capaz de romper os grandes cercos midiáticos, para fazer o contraponto aos grandes meios de comunicação e, ao mesmo tempo, para ser um instrumento que sirva de subsídio para a militância social.
IHU On-Line – O Brasil de Fato surgiu com o propósito de não ter como referência a agenda do Planalto e dos partidos, e sim do movimento social. Isso tem sido possível? Nilton Viana – Desde o começo do Brasil de Fato, dentro do contexto político editorial do jornal, discutimos que o veículo não seria nem corrente transmissora de governo algum, portanto não teríamos e procuramos não ter como centro das nossas pautas as ações governamentais. É claro que, como um jornal político, acaba tendo pauta sim, do ponto de vista institucional e governamental, mas procuramos centrar fogo nas nossas pautas principalmente nas lutas dos povos, dos movimentos sociais. Onde o povo estiver lutando, estaremos cobrindo, esse é o nosso compromisso maior.
IHU On-Line – De que fatos o jornal trata que a grande imprensa ignora? Nilton Viana – Por exemplo, de fatos que dignificam o povo brasileiro. Nós sempre procuramos cobrir lutas dos movimentos sociais que os grandes meios ignoram. Procuramos traçar e cobrir ações coletivas, experiências e lutas coletivas que dão dignidade ao povo brasileiro. Coisa que os grandes meios não fazem e quando fazem é para ridicularizar ou personalizar as lutas.
IHU On-Line – Qual é a linha editorial do Brasil de Fato em relação ao governo Lula? Nilton Viana – O Brasil de Fato tem uma linha independente do governo Lula ou de qualquer outro governo. Não somos oposição, pois não é esse o nosso papel, nem tampouco corrente política de nenhum governo. O Brasil de Fato é um projeto político em que procuramos ser plurais no campo da esquerda, ao mesmo tempo em que temos como referências, no seu projeto editorial, a construção de um projeto popular para o Brasil. Portanto, ele não tem o governo como centro disso, mas sim as lutas dos povos. O nosso posicionamento político referente ao governo é assim: quando o governo Lula tomar fizer qualquer medida que seja em benefício da maioria do povo, seremos os primeiros a estampar em nossas páginas. Da mesma forma, quando ele toma medidas antipopulares e de interesses neoliberais e capitalistas, seremos os primeiros a criticar, como temos feito sistematicamente. Temos claro que o governo Lula não é um governo de esquerda, e sim neoliberal. Nesse sentido, o conjunto dos movimentos sociais e da esquerda têm consciência de que se trata de um governo extremamente contraditório. Por mais que tenha avanços políticos do ponto de vista de sua política externa, por exemplo, do ponto de vista interna não fez as mudanças estruturais que o país precisa.
IHU On-Line – Alguns consideram o Brasil de Fato um porta-voz das teses do MST e excessivamente chavista. Como o senhor avalia essas críticas? Nilton Viana – Para nós, isso não tem o menor problema. Mas não somos porta-vozes do MST, e sim do conjunto dos movimentos sociais. Infelizmente, nesse país, um dos únicos movimentos que faz luta permanente é o MST e a Via Campesina. E o Brasil de Fato tem o compromisso de cobrir as lutas de todos os movimentos sociais que fazem luta nesse país. Da mesma forma, damos cobertura ao Chávez. Entendemos que o processo de transformação da Venezuela, apesar de ter suas contradições, é muito interessante e, por isso, temos correspondente lá, assim como temos correspondente no Paraguai e na Bolívia. Isso porque queremos mostrar ao povo brasileiro estas experiências de governos progressistas e que estão fazendo processos interessantes de transformação no nosso continente. O jornal reflete e procura pautar todos esses espaços onde lutas e processos de transformação estão acontecendo. Por isso, essas críticas são tranquilas. Claro que na esquerda há companheiros e companheiras que veem o processo na Venezuela com outros olhos, mas entendemos que o governo venezuelano tem tido vários avanços e utilizado o Estado para melhorar as condições de vida daquele povo. Isso é pauta permanente para nós.
IHU On-Line – Em tempos midiáticos e de informações on-line (sítios, blogs, twitter), o formato jornal impresso não estaria ultrapassado? Nilton Viana – Não. Essa discussão sobre a questão dos meios de comunicação é muito interessante, mas eu não vejo o jornal impresso como algo ultrapassado. Talvez porque as pesquisas e todos os indicadores mostram que alguns leitores ainda têm dificuldades com a internet, com leituras na internet de textos reflexivos e longos. A internet serve muito para comunicação rápida, para fazer a cobertura factual, mas não para textos mais densos, analíticos. Tanto é verdade isso que os grandes meios da burguesia não abriram mão do jornal impresso e o Brasil de Fato, por mais que seja semanal, procura contextualizar as situações de forma mais analítica, dando elementos para que nossos leitores sejam capazes de criticar e fazer reflexões sobre a sua própria realidade, além de fazer comparações com outros meios. Os meios burgueses usam uma tática interessante de diagramação: por exemplo, quando fazem reportagens ligadas aos movimentos sociais, colocam na mesma página outras questões ligadas à editoria de Polícia. Isso porque o olhar desses jornais é de que os movimentos sociais são casos de polícia. A própria diagramação é uma forma de passar mensagens para seus leitores.
IHU On-Line – Quais têm sido as grandes dificuldades do jornal Brasil de Fato e os seus grandes avanços? Nilton Viana – As grandes dificuldades estão ligadas à manutenção de um jornal independente do capital, ou seja, tentar manter uma imprensa sem depender de grandes anúncios (que é o que mantém os grandes jornais). Sabemos que hoje vivemos na ditadura do capital. Se no período da ditadura militar eram colocados sensores dentro das redações para limitar a publicação de matérias, hoje vivemos na ditadura do capital, que nos impõe monopólios a um custo muito alto de impressão e manutenção de equipamento. Assim, a grande dificuldade que encontramos é a de sustentar um meio independente e comprometido com a maioria do povo. Daí, entendemos que quem deve sustentar são os nossos militantes.
IHU On-Line – Qual é o futuro do jornalismo e que perfil de jornalista esse profissional do futuro precisa? Nilton Viana – Primeiro, a sociedade tem questionado a esse enorme poder controlador da mídia. Há uma tendência natural da sociedade de exigir democratização dos meios de comunicação e, mais ainda, democratização da informação. Hoje, 85% da informação produzida no mundo é produzida pelo centro do Império, os Estados Unidos. Então, penso que, cada vez mais, a sociedade precisa exigir a democratização dos meios de comunicação. Também entendemos que, num processo de transformação, a democratização dos meios de comunicação é fundamental. Se quisermos construir uma sociedade justa, igualitária, é fundamental a democratização dos meios de comunicação. Então, a meu ver, o futuro do jornalista e do jornalismo passa por rever esses elementos. Primeiro, acho que não cabe mais panfletos como a Veja. O grande problema não é se a Veja é de direita, de esquerda ou qualquer outra posição. O grande problema é quando ela mente, omite e manipula grotescamente a informação. Isso presta um desserviço à sociedade, que precisa, cada vez mais, exigir, qualidade da informação, veracidade da informação. Não podemos aceitar esse tipo de jornalismo, pois o futuro deste passa por essa reflexão. Precisamos travar uma luta árdua em torno dessas questões. Os grandes meios são os verdadeiros partidos das elites, porque é através deles que se pauta a agenda pública, se busca recursos públicos etc. Sabemos que precisamos avançar do ponto de vista de esquerda para democratizar os meios de comunicação, assim como o MST rompe com o cerco do latifúndio.

''Não há a menor possibilidade de que os americanos recuem e abandonem as posições de poder''. Entrevista especial com José Luís Fiori

"A ideologia econômica liberal não previu e não consegue explicar a crise que ela provocou e, como conseqüência, não tem nada para dizer, nem propor neste momento. Por isso mesmo, as ideias ortodoxas e liberais saíram do primeiro plano, mas não morreram, nem desapareceram", afirma José Luís Fiori. O professor e diretor do Programa de Pós-Graduação de Economia Política Internacional da UFRJ José Luís Fiori é o autor de O mito do colapso do poder americano, escrito em parceria com Carlos Medeiros e Franklin Serrano e lançado pela Editora Record no final de 2008. Fiori é autor, entre outros, de 60 Lições dos 90 - Uma década de neoliberalismo e O voo da coruja - Para reler o desenvolvimento brasileiro. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele comenta os aspectos principais da obra e ainda reflete sobre a atual crise financeira internacional.
Para Fiori, “as guerras e a crise econômica mundial que estão em pleno curso não são um sintoma do fim do poder americano”. Pelo contrário, “fazem parte de uma transformação de longo prazo, que está aumentando a pressão competitiva dentro do sistema mundial, e está provocando uma nova corrida imperialista entre as grandes potências, com a participação decisiva dos EUA, da China e da própria Rússia, que retorna ao sistema depois de uma década de derrota, crise e reestruturação”. Ele ainda acrescenta que a longa “adolescência assistida” da América do Sul acabou. E que “o mais provável é que esta mudança provoque, no médio prazo, uma competição cada vez mais intensa entre o Brasil e os Estados Unidos, pela supremacia na América do Sul”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em linhas gerais, qual é a tese que o senhor defende em O mito do colapso do poder americano? José Luís Fiori – Não é simples de responder sua pergunta em poucas linhas, porque o livro reúne três ensaios que compartem vários pontos de vista, mas não tem necessariamente a mesma perspectiva teórica. No meu próprio ensaio, existe uma parte mais conjuntural e outra mais de longo prazo e, além disso, existe uma parte teórica mais crítica e outra mais propositiva. No meu artigo, começo criticando a teoria dos “ciclos hegemônicos”, e proponho uma leitura alternativa do sistema mundial, visto como um “universo em expansão” contínua, onde todas as potências que lutam pelo “poder global” estão sempre criando ordem e desordem, expansão e crise, paz e guerra. Por isso, para mim, desordem, crise e guerra não são, necessariamente, um anúncio do “fim” ou do “colapso” dos países e das economias envolvidas. E, neste início do século XXI, eu considero que as guerras e a crise econômica mundial que estão em pleno curso não são um sintoma do fim do poder americano. Pelo contrário, fazem parte de uma transformação de longo prazo, que está aumentando a “pressão competitiva” dentro do sistema mundial, e está provocando uma nova “corrida imperialista” entre as grandes potências, com a participação decisiva dos EUA, da China e da própria Rússia, que retorna ao sistema depois de uma década de derrota, crise e reestruturação.
IHU On-Line – Por que o senhor acredita que o poder dos Estados Unidos é tão forte que seu colapso seria apenas um mito? José Luís Fiori – Em termos muito sintéticos, porque depois da II Guerra Mundial, como depois da crise dos anos 1970, os EUA foram a potência que ficou com o controle inconteste da moeda internacional, do mercado e dos capitais financeiros dominantes no mundo, da inovação da ponta tecnológico-militar e das principais pontas do sistema de informação e comunicação mundial, além, é lógico, de manterem um sistema de controle militar global, por terra, mar e ar.
IHU On-Line – A crise financeira internacional e o crescimento de países como a China não afetarão o poder americano? Não se trata do fim do império norte-americano? José Luís Fiori – Para responder esta pergunta, preciso fazer antes uma breve digressão teórica. Eu não leio a história do sistema mundial como uma sucessão de ciclos hegemônicos, uma espécie de ciclos biológicos dos estados que nascem, crescem, dominam o mundo e depois decaem e são substituídos por um novo estado que percorreria o mesmo ciclo anterior até chegar à sua própria hora da decadência. Do meu ponto de vista, a melhor analogia para se pensar o sistema mundial é como um “universo em expansão" contínua, onde todos os estados que lutam pelo "poder global" – em particular, a potência líder ou hegemônica – constituem um núcleo inseparável, complementar e competitivo, em permanente estado de preparação para a guerra. Por isso, são estados que estão sempre criando, ao mesmo tempo, ordem e desordem, expansão e crise, paz e guerra. E as potências que uma vez ocupam a posição de liderança não desaparecem, nem são derrotadas por seu “sucessor”. Elas permanecem e tendem a se fundir com as forças ascendentes, criando blocos cada vez mais poderosos de poder, como aconteceu, por exemplo, no caso da Holanda, Grã Bretanha e Estados Unidos que, na verdade, foram alargando sucessivamente as fronteiras do poder anglo-saxônico. Além disso, neste sistema interestatal capitalista em que vivemos, crises econômicas e guerras não são, necessariamente, um anúncio do “fim” ou do “colapso” dos estados e das economias envolvidas. Pelo contrário, na maioria das vezes, fazem parte de um mecanismo essencial da acumulação do poder e da riqueza dos estados envolvidos dentro do sistema interestatal capitalista. Agora bem, do meu ponto de vista, as crises e guerras que estão em curso neste início do século XXI ainda fazem parte de uma transformação estrutural, de longo prazo, que começou na década de 1970 e que aponta, neste momento, para um aumento da “pressão competitiva” mundial e para uma nova “explosão expansiva” do sistema mundial - como a que ocorreu nos longos séculos XVI e XIX –, que contará com um papel decisivo do poder americano.
IHU On-Line – Como o senhor vê a presença de Obama no poder a partir dessa tese defendida no livro? Algo muda? José Luís Fiori – Se só nos fixarmos nas pessoas e seus discursos, creio que não haveria muito que esperar de novo da política externa do governo Obama. As figuras centrais que estão no comando da política externa, como no caso da política econômica, são conhecidos que já governaram durante os oito anos da administração Clinton que promoveu cerca de 48 intervenções militares ao redor do mundo, ao contrário do que se imagina que foi a década de 1990. Por outro lado, os programas de campanha da senhora Hillary, como o do próprio Obama, foram explicitamente intervencionistas e comprometidos com a manutenção do poder global dos EUA. Porque não podemos esquecer que os Estados Unidos têm uma infraestrutural global de poder militar pela qual devem zelar, seja qual for o seu governo. São os seus acordos militares com cerca de 130 países, são suas 700 bases militares situadas ao redor de todo o mundo e são finalmente seus mais de meio milhão de soldados servindo ou lutando fora do território americano. Os EUA devem enfrentar dificuldades e contradições crescentes para administrar este poder global, mas não há a menor possibilidade de que os americanos recuem e abandonem estas posições de poder, por sua própria conta, com ou sem Barak Obama.
IHU On-Line – A partir da crise financeira atual, quais os rumos que o senhor vislumbra para a América do Sul e o Brasil? José Luís Fiori – Esta crise econômica deve produzir um aumento dos conflitos entre os próprios estados da região, e deles com os Estados Unidos. Já não há possibilidade de escapar da pressão competitiva mundial, e isto acelera a formação objetiva e incontornável de um subsistema estatal no continente sul-americano, potencializando o poder interno e externo dos seus estados. E, neste sentido, a integração econômica do continente seguirá sendo um desafio absolutamente original, porque suas economias não são complementares, porque não existe um país que cumpra o papel de “locomotiva” da região, e porque a América do Sul não tem um inimigo externo comum. De qualquer maneira, do meu ponto de vista, a longa “adolescência assistida” da América do Sul acabou. E o mais provável é que esta mudança provoque, no médio prazo, uma competição cada vez mais intensa entre o Brasil e os Estados Unidos, pela supremacia na América do Sul.
IHU On-Line – O senhor pensa que a crise atual sinaliza que nos encontramos diante do fim do capitalismo, pelo menos da forma como o conhecemos? José Luís Fiori – Não, do meu ponto de vista não se trata do fim do capitalismo, nem do sistema interestatal. Não há nenhum sinal disso. A origem desse sistema mundial que nasce na Europa e é ganhador impõe sua supremacia ao mundo, nas suas formas básicas de organização do poder como estado e da economia como capitalista. Vitória estrondosa que nasce na Europa nos séculos XII a XIV até o aparecimento das economias nacionais no fim do século XVI. Fernand Braudel sugere que é preciso subir ao sótão para ver as relações do príncipe com o banqueiro. O sistema mundial que nasceu na Europa se assemelha mais a um universo em expansão contínua do que a uma sucessão de ciclos vitais ou biológicos. Como se este sistema acumulasse energia e se expandisse de forma contínua desde o século XIII, passando por momentos de explosão expansiva, como no século XVI, XIX e agora de novo, neste início do século XXI.
IHU On-Line – No contexto atual, qual é, em sua opinião, o novo papel dos EUA, da China, da Rússia, e de países da Ásia Central, da África e da América do Sul? José Luís Fiori – Como já disse, apesar da violência desta crise financeira, e dos seus efeitos em cadeia sobre a economia mundial, não deverá haver uma “sucessão chinesa” na liderança política e militar do sistema mundial. Pelo contrário, do ponto de vista estritamente econômico, o mais provável é que ocorra um aprofundamento da fusão financeira em curso desde a década de 1990, entre a China e os Estados Unidos. Assim mesmo, do ponto de vista geopolítico, acho que o que assistiremos nas próximas décadas, será uma competição intensa dentro de um “núcleo central” do Sistema Mundial constituído pelos Estados Unidos, pela China, e pela Rússia, essa graças à suas reservas energéticas, ao seu arsenal atômico, e ao tamanho das suas perdas territoriais e populacionais depois de 1991. Se for assim, se estará constituindo um novo “núcleo central” do sistema mundial composto por três “estados continentais”, que detém isoladamente um quarto da superfície da terra, e mais de um terço da população mundial. Nesta nova “geopolítica das nações”, a União Européia terá um papel secundário, ao lado dos Estados Unidos, enquanto não dispuser de um poder unificado, com capacidade de iniciativa estratégica autônoma. E a Índia, Irã, Brasil e África do Sul deverão aumentar o seu poder regional, em escalas diferentes, mas não serão poderes globais, ainda por muito tempo. Mas é muito difícil de prever os caminhos do futuro, depois da era imperialista em que estamos submersos.
IHU On-Line – Quais as previsões que o senhor faz, de forma geral, a partir da crise financeira atual? José Luís Fiori – Do meu ponto de vista, os economistas e as autoridades governamentais americanas, e de todo o mundo, estão num voo cego, mesmo quando não o reconhecem, ou não possam reconhecê-lo. No meio desta confusão, acho que só existem três coisas que podem ser afirmadas com algum grau de certeza: a primeira é que, faça o que faça, o governo americano será absolutamente decisivo para a evolução da crise em todo mundo; a segunda é de que, neste momento, todos os governos envolvidos estão fazendo a mesma aposta e adotando as mesmas estratégias monetárias e fiscais, e aprovando “pacotes” sucessivos (e até agora impotentes) de ajuda à estabilização e reativação do sistema financeiro e de estímulo à produção e ao emprego, junto um aumento generalizado – mas ainda disfarçado - das barreiras protecionistas. E todos os governos estão se propondo aumentar o rigor da regulação dos seus e agentes e mercados financeiros; e a terceira coisa que se pode afirmar com toda certeza é que ninguém, absolutamente ninguém, sabe se estas políticas darão certo.
IHU On-Line – Como o senhor analisa aqui a questão desta volta da intervenção do Estado na economia? Considera que foi uma vitória do keynesianismo e uma derrota definitiva das ideias neoliberais? José Luís Fiori – Nada do que está acontecendo tem a ver com qualquer tipo de vitória ou derrota teórica. Trata-se de uma reação emergencial e pragmática frente à ameaça de colapso do poder dos estados e dos bancos, e, como conseqüência, dos sistemas de produção e emprego. Foi uma mudança de rumo inesperada e inevitável, que foi imposta pela força dos fatos, independente da ideologia econômica dos governantes que estão aplicando as novas políticas e que, na sua maioria, ainda eram ortodoxos e liberais até anteontem. É como se estivéssemos assistindo à versão invertida da famosa frase da senhora Thatcher: “there is no alternative”. Só que agora, do meu ponto de vista, esta nova convergência aconteceu sem maiores discussões teóricas ou ideológicas e sem nenhum entusiasmo político, ao contrário do que aconteceu com a “virada” liberal-conservadora dos anos 1980, 1990, que atravessou todos os países e todos os planos da vida social e econômica. A ideologia econômica liberal não previu e não consegue explicar a crise que ela provocou e, como conseqüência, não tem nada para dizer, nem propor neste momento. Por isso mesmo, as ideias ortodoxas e liberais saíram do primeiro plano, mas não morreram, nem desapareceram. Pelo contrário, permanecem atuantes em todas as frentes e trincheiras de resistência às políticas estatizantes que estão em curso. Uma resistência que tem crescido a cada hora que passa, dentro e fora dos EUA. Mas, por outro lado, os keynesianos também não têm uma teoria capaz de dar conta da complexidade desta nova situação mundial. O problema é que, na maioria das vezes, os keynesianos têm uma enorme dificuldade de tratar com os interesses e as lutas do mundo real. E compartilham com os liberais uma espécie de “erro inverso”: os liberais acreditam na possibilidade e na eficácia da eliminação do poder político e do estado do mundo dos mercados, enquanto os keynesianos acreditam na possibilidade e na eficácia da intervenção corretiva do estado no mundo econômico. Mas estão sempre imaginando um estado homogêneo e onisciente, capaz de formular políticas econômicas sábias, justas e eficazes, desde que não sejam “atrapalhadas” pelo mundo real. Ou seja, em última instância, ortodoxos e keynesianos compartilham a mesma dificuldade de entender e incluir nos seus modelos, projeções e recomendações, as contradições e as lutas políticas próprias do mundo econômico.

domingo, 5 de abril de 2009

Desglobalização para uma nova economia mundial. Entrevista especial com Walden Bello

COMPARAR O MUNDO ATUAL, GLOBBALIZADO COM UM U-BOAT ALEMÃO DA SEGUNDA GUERRA, É UMA SITUAÇÃO MUITO INUSITADA.
"Talvez nenhuma imagem seja mais evocativa do atual estado da economia global que aquela do U-Boat alemão da Segunda Guerra no Atlântico Norte . Ele descia rápido, e a tripulação não sabia quando ele atingiria o fundo. E quando ele atingir o fundo do oceano, a tripulação será capaz de fazer o submarino subir novamente bombeando ar comprimido nos tanques danificados, como os marinheiros no clássico de Wolfgang Petersen “Das Boot”?
Ou o U-Boat irá simplesmente ficar no fundo do oceano, com sua tripulação condenada a contemplar pior destino que a morte súbita? Os métodos keynesianos reinflarão e farão flutuar novamente a economia global?
O MUNDO DE CABEÇA PARA BAIXO!
Ou o U-Boat irá simplesmente ficar no fundo do oceano, com sua tripulação condenada a contemplar pior destino que a morte súbita? Os métodos keynesianos reinflarão e farão flutuar novamente a economia global? A verdade é que a atual tripulação capitalista da economia global não sabe e está apavorada", avalia o sociólogo filipino em entrevista, feita por e-mail, à IHU On-Line. Walden Bello, professor na Universidade das Filipinas, em Manila, membro do Transnational Institute de Amsterdã, presidente da Freedom from Debt Coalition e analista sênior do Focus on the Global South, com sede em Bangkok, Tailândia. Ele é doutor em sociologia pela Universidade de Princeton, EUA, tendo lecionado na Universidade da Califórnia e Berkeley. Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a tese central defendida pelo senhor no livro "Desglobalização: Ideias para uma Nova Economia Mundial"? Walden Bello - A principal ideia é que a globalização – a integração acelerada da produção e dos mercados – está levando a uma desintegração das economias nacionais, deixando as sociedades com cada vez menos controle sobre seu bem-estar econômico e sobre seu futuro. Com mercadorias e mercados de capitais mais integrados, a habilidade das economias nacionais de se isolarem dos caprichos da economia global é muito menor, de modo que quando há uma quebradeira das economias centrais, outras economias também seguem em espiral descendente, o que é, na verdade, o que está acontecendo agora.
IHU On-Line - O que o senhor entende por "desglobalização”? Chegamos ao fim ou, pelo menos, estamos vivendo uma crise da era da globalização? Walden Bello - Desglobalização significa fazer o mercado doméstico novamente ser o centro de gravidade da vida econômica, não o mercado global. Isso não significa autarquia ou retração da economia internacional. Significa que produzir para o mercado doméstico, não para o mercado de exportação, mais uma vez se torna a linha de corte e força motriz da economia. Significa aumentar capital para a produção da economia local, por exemplo, por aumento de impostos, em vez de recorrer principalmente a empréstimos nos mercados internacionais de capital. Significa revitalizar a economia interna para que ela seja o sustentáculo da economia, criando poder de compra através da redistribuição de renda e riquezas.
IHU On-Line - Que ideias o senhor sugere para uma possível nova economia mundial? O que deveria fazer parte desta nova economia global? Um Estado com mais controle da economia, por exemplo? Walden Bello - Ainda que deva haver acordos econômicos internacionais sobre comércio, finanças e ajuda, não devem haver instituições centralizadas de governança econômica global como o Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional, uma vez que essas instituições centralizadoras com incríveis poderes são inevitavelmente dominadas pelas economias mais poderosas. Comércio regional e cooperação deveriam se tornar a via principal da atividade econômica internacional, com as regiões estabelecendo seus próprios reguladores financeiros e desenvolvendo órgãos financeiros como o Banco do Sul, na América Latina. O livre comércio deveria ser suplantado pelo comércio de gestão – ou seja, comércio que é condicionado por prioridades econômicas nacionais como desenvolvimento sustentável ou industrialização sustentável.
IHU On-Line - Como podemos entender a eclosão da atual crise financeira internacional, pela primeira vez, desde a “era de ouro” da globalização? O que isso significa e quais são as consequências? Walden Bello - A era atual é conhecida como a segunda era da globalização, e começou no início dos anos 1980 e se estende até hoje. O impulso das políticas nacionais durante essa era foi deixar o mercado tomar o papel principal na alocação do uso de recursos e na distribuição de riqueza, e minimizar a intervenção do governo e acabar com as restrições sobre o fluxo de comércio e capital. Liberalização e desregulamentação se seguiram como uma doutrina, levando ao fracasso massivo de mercados que estamos experimentando hoje. É importante notar que enquanto a falta de regulação na esfera financeira é a causa imediata da crise, é a superprodução no nível da economia real a derradeira causa. Quero dizer que as políticas de desregulamentação financeira, a re-estruturação neoliberal e a globalização foram esforços para a superação da crise de super-acumulação, superprodução e o excesso de capacidade que importunou o capitalismo global desde o início dos anos 70, quando a “era de ouro” do capitalismo keynesiano e interventor do estado chegou ao fim.
IHU On-Line - Quais as consequências mais graves da crise financeira internacional? Algo pior ainda está por vir ou o pior já passou? Walden Bello - Bem, a crise financeira já se espalhou para a economia real muito, muito rapidamente, e a economia internacional está se contraindo muito rápido, e os motivos vão da recusa dos bancos de emprestar dinheiro para manter as indústrias funcionando à perda de poder aquisitivo, devido à falência do consumidor norte-americano, cujos gastos sustentaram a economia internacional ao longo dos últimos anos. O pior está por vir. Espero uma depressão, com altos níveis de desemprego no Norte, possivelmente atingindo 15% da força de trabalho. No Sul, as condições de subdesenvolvimento, incluindo altos níveis de desemprego, devem ser exacerbadas. No entanto, sob alguns aspectos, a crise no Sul deve ser menos severa que no Norte. Por exemplo, trabalhadores demitidos podem voltar à zona rural e às fazendas – uma opção não possível no Norte, onde a agricultura se tornou altamente monopolizada e de capital intensivo.
IHU On-Line - Quais são os riscos da queda mundial do Produto Interno Bruto (PIB)? Walden Bello - Bem, o FMI já estima que o PIB internacional cairá este ano em 2,5%, a primeira vez no pós-Segunda Guerra que o PIB global se contrai. Penso que, como em várias outras coisas, o FMI está subestimando o colapso do PIB global nos próximos anos.
IHU On-Line - Em que medida a atual crise tem afetado a integração dos mercados internacionais? Walden Bello - Bem, eu antecipei que o processo de globalização ou integração da produção e dos mercados se inverterá como colapso de mercados e as autoridades irão se voltar mais e mais para o foco na produção nacional para o mercado local. As cadeias de fornecimento global, que se tornaram marca das operações das corporações transnacionais serão desmanteladas.
IHU On-Line - Qual deveria ser o papel do G20, no sentido de realizar uma coordenação global diante da crise? Walden Bello - O G20 é um organismo informal dos países poderosos com pouca legitimidade. Sem legitimidade, suas prescrições ecoarão no vazio. O único órgão com legitimidade dada pelos 192 países do mundo é a ONU, e as agências da ONU devem tomar o papel principal na formulação de uma resposta à crise. A Comissão da Reforma Monetária e Financeira indicada pelo presidente da assembléia geral e encabeçada pelo ganhador do Nobel Joseph Stiglitz já escreveu seu relatório preliminar. Esse relatório pode ser a base de uma Sessão Especial da ONU que irá unir todos os países frente à crise. Inclusão é o necessário neste estágio, mas ainda assim o G20 tenta muito ser um clube exclusivo.
IHU On-Line - Quais são os países mais afetados pela crise com relação à exportação? Como o senhor imagina que o Brasil e a América Latina podem se beneficiar agora, considerando seus recursos naturais? Walden Bello - A Ásia oriental, por ter levado mais a sério a estratégia de crescimento liderado pela exportação, irá sofrer muito, mais do que possam sofrer outras regiões. O Brasil e outros países na América Latina têm enormes mercados internos, mas esse mercado interno deve mudar de potencial para real via redistribuição de propriedade e renda para colocar poder aquisitivo nas mãos da população.
IHU On-Line - Como o senhor avalia as decisões de política econômica que os governos do mundo todo têm tomado? É o momento de retrair? Walden Bello - As grandes potências econômicas, ou G20, estão fazendo um grande show dessas reuniões para se familiarizarem com a crise econômica global. E é isso que aocntece com a reunião em Londres no dia 2 de abril.
É tudo show, e o que o show mascara é uma profunda preocupação e medo entre as elites globais de que elas realmente não saibam para onde vai a economia mundial e o que será necessário para estabilizá-la. Com as últimas estatísticas excedendo as avaliações mais pessimistas, com os principais analistas começando a mencionar a temida palavra com “D” (depressão), com a disseminação do sentimento de que trilhões de dólares alocados para o estímulo ao gasto sejam simplesmente varridos por uma tempestade que está recém criando velocidade, o G20 está simplesmente indo com a maré. Talvez nenhuma imagem seja mais evocativa do atual estado da economia global que aquela do U-Boat alemão da Segunda Guerra no Atlântico Norte . Ele descia rápido, e a tripulação não sabia quando ele atingiria o fundo. E quando ele atingir o fundo do oceano, a tripulação será capaz de fazer o submarino subir novamente bombeando ar comprimido nos tanques danificados, como os marinheiros no clássico de Wolfgang Petersen “Das Boot” ? Ou o U-Boat irá simplesmente ficar no fundo do oceano, com sua tripulação condenada a contemplar pior destino que a morte súbita? Os métodos keynesianos reinflarão e farão flutuar novamente a economia global? A verdade é que a atual tripulação capitalista da economia global não sabe e está apavorada. A reunião do G20 tem sido exibida como uma nova “Bretton Woods”, se referindo à conferência de julho de 1944 que designou a ordem multilateral do pós-guerra dos estados capitalistas estatizados. Mas como diz Marx, a história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa.
IHU On-Line - Considerando a crise nos fluxos de investimento, quais os rumos que a globalização vai tomar? O senhor acredita que os próximos anos serão "anos de desglobalização"? Walden Bello - Sim, os próximos anos verão um reverso da globalização enquanto os países se dão conta de que retomar a integridade das economias nacionais é a melhor maneira de assegurar o bem-estar nacional.

sábado, 4 de abril de 2009

Brasil: um país cheio de energia. Mas qual é o destino de toda essa energia? Entrevista especial com Célio Bermann

Discutir, de forma geral e unida, para mudar os paradigmas atuais. Essa é a alternativa dada pelo professor Célio Bermann em relação ao Plano Decenal de Energia, em vigor no Brasil, que planeja (e já está fazendo isso) ampliar a oferta de energia no país. No entanto, fica claro, pelas palavras de Bermann, que essa energia é para produção de produtos que, em grande parte, são destinados à exportação. Ou seja, estamos produzindo energia para gerar produtos que não ficam no Brasil. Para o professor, “a tendência de incremento dos combustíveis fósseis na matriz energética, certamente, está indo na contramão da história”.
Nesta entrevista, realizada por telefone, Célio Bermann fala, fundamentalmente, do Plano Decenal de Energia, mas analisa-o de forma mais questionadora, levando em conta termos sociais, econômicos e ambientais. “O que está acontecendo, de forma geral, com o planejamento energético no nosso país, a meu ver, é que estamos submetidos ao que eu chamo de uma ditadura da oferta”, refletiu. Célio Bermann é graduado em Arquitetura e Urbanismo, pela Universidade de São Paulo. Na École des Hautes Études en Sciences Sociales (França), especializou-se em Histoire et Géographie des Populations. É mestre em Planejamento Urbano e Regional, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e doutor em Planejamento de Sistemas Energéticos, pela Universidade Estadual de Campinas. A USP também lhe concedeu o título de pós-doutorado e livre-docência. É nesta universidade que hoje atua como professor e pesquisador. É autor de Energia no Brasil: para quê? para quem? - Crise e alternativas para um país sustentável (São Paulo: Editora Livraria da Física/FASE, 2002) e Exportando a nossa natureza - Produtos intensivos em energia: implicações sociais e ambientais (Rio de Janeiro: FASE, 2004), entre outras obras.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Sendo o Brasil um dos países com maior possibilidade de ter uma matriz energética relativamente limpa e renovável, quais são as maiores discrepâncias desse Plano Decenal de Energia? Célio Bermann – São várias as questões que envolvem a previsão de oferta de energia da forma como o Plano Decenal está hoje indicando. A primeira delas diz respeito à necessidade, e o plano explicita isso, de atendimento do mercado em curto prazo. Esse atendimento só é possível através das termelétricas a derivados de petróleo e a gás natural e, também, utilizando o carvão mineral. Esta necessidade é ditada pelo mercado, não pela população brasileira nem pelo órgão planejador do governo. E o fato de ela precisar atender uma demanda que é do mercado, a necessidade de energia a curto prazo, faz com que esta última previsão coloque com muita ênfase a termeletricidade a partir de combustíveis fósseis. A segunda questão também está relacionada com o mercado que indica que as chamadas fontes renováveis são caras. Isto é, a produção de energia elétrica a partir dos ventos, da biomassa, de energia solar, é considerada não competitiva com as fontes tradicionais. Isso faz com que a aposta nas fontes renováveis seja também restrita. E, por último, existe a questão relacionada com as chamadas energias renováveis relacionadas com hidroeletricidade. O plano prevê uma grande ampliação da capacidade hidrelétrica do Brasil. O problema é que esta capacidade de produção de energia elétrica, a partir dos rios, da água, está fundamentalmente localizada na região amazônica.
IHU On-Line – E o que está acontecendo em termos ambientais e sociais? Célio Bermann – Como esta área comporta um grande chamado de Unidades de Conservação, uma grande quantidade de áreas consideradas indígenas, a produção de eletricidade nelas encontra um conflito que será superado apenas – e isso o plano não indica – através da priorização da produção de energia, em detrimento da conservação ambiental, da manutenção da cultura e dos territórios das populações tradicionais. Então, são esses os três aspectos que ajudam a entender o porquê desta oferta de energia elétrica para os próximos dez anos.
IHU On-Line – Com esse Plano Decenal de Energia, em sua opinião, se produz energia para o quê e para quem? Célio Bermann – Se pegarmos a matriz de consumo setorial de energia elétrica no Brasil, praticamente 30% da energia é consumida pelos seis setores chamados de intensivos em energia. São eles: o cimento, a produção de aço, a produção de ferro-ligas (ligas a base de ferro), a produção dos metais não-ferrosos (principalmente, o alumínio primário), a produção de química e, finalmente, o setor de papel e celulose. Esses seis setores consomem 30% da energia produzida no Brasil. Destes seis setores, quatro – produção de aço, não-ferrosos, ferro-ligas, papel e celulose – são fundamentalmente destinados à exportação. Esses cálculos eu desenvolvi aqui no Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP e mostram que praticamente 17,5% da energia elétrica no Brasil é destinada à exportação. Isto é, é uma energia elétrica que foi consumida pelas plantas indústrias eletrointensivas, e que são exportadas, incorpora a produção de energia a esses bens primários.
IHU On-Line – Estamos na contramão da história? Célio Bermann – Depende do referencial que temos. Se pensarmos que, de certa forma, se consolida num plano internacional um esforço na direção de reduzir emissões de gases de efeito estuda e com isso reduzir a utilização dos combustíveis fósseis, uma matriz energética como a nossa, em que esta participação tende a aumentar, certamente é um indício de que estamos indo na direção contrária àquela que o contexto mundial hoje preconiza. Por outro lado, temos uma situação que nos favorece desta comparativa facilidade que o Brasil apresenta com relação a sua matriz energética. Ela é uma matriz energética em que as chamadas fontes energéticas renováveis são acentuadas em relação ao panorama internacional, o que nos permite deixar um pouco a vontade em relação aos esforços internacionais. Mas, eu repito, a tendência de incremento dos combustíveis fósseis na matriz energética, certamente, está indo na contramão da história.
IHU On-Line – A partir das suas críticas, podemos entender que, então, o Plano mostra uma submissão da política em relação ao mercado? Célio Bermann – Antes dessa submissão ao mercado, o que está acontecendo, de forma geral, com o planejamento energético no nosso país, a meu ver, é que estamos submetidos ao que eu chamo de uma ditadura da oferta. Ao não se questionar a demanda, a oferta passa a ser a única forma de manutenção daquilo que podemos chamar de uma articulação entre o planejamento do governo e o mercado. A outra questão é a submissão do planejamento energético do nosso país ao que determina o mercado. Se o mercado fosse homogêneo, em que todos os seus agentes poderiam se expressar da mesma forma, teríamos, de alguma forma, uma situação de liberdade e democracia. Isso não acontece. O que temos em relação ao perfil de consumo energético brasileiro é uma priorização às grandes corporações internacionais, ao grande capital internacional e nacional. Com isso, as decisões ficam quase que inteiramente subordinadas a essas necessidades, em detrimento de uma questão importante, do meu ponto de vista, que é a demanda social, em que um contingente considerável de brasileiros ainda vive sem acesso à energia elétrica. Claro que o governo, ao implantar, em grande medida, o seu programa "Luz para todos", procura atender esta necessidade. Mas, enquanto ela for restrita à extensão de rede, enquanto o acesso de energia elétrica não permitir que fontes locais de energia renovável atendam às necessidades das populações que são distantes à rede de distribuição, enquanto isso tudo não for feito, ficaremos sujeitos à Lei do Mercado. E na Lei do Mercado essas populações não têm espaço.
IHU On-Line – Como fica nossa pegada ecológica a partir da instauração desse plano? Célio Bermann – A ideia de se buscar identificar o que a literatura internacional chama de pegada ecológica, isto é, o acesso aos recursos naturais em relação à transformação de energia, no caso do Plano Decenal de Energia, gera uma contabilidade em termos de degradação de recursos, de dilapidação dos recursos e dos ecossistemas. No nosso caso, de novo, se compararmos o perfil de suprimento energético no Brasil com o plano internacional, veremos que temos ainda uma situação bastante favorável. Isso não quer dizer que a pegada ecológica irá crescer e se tornar cada vez mais intensa em função daquilo que o Plano Decenal preconiza.
IHU On-Line – Este plano tem, de algum forma, pontos positivos? Célio Bermann – O que eu considero positivo, e o plano abre, pela primeira vez, é a possibilidade de contestação Ou seja, a sociedade, de uma forma geral, pode questionar e buscar outras soluções. Isso não quer dizer que, nas atuais circunstâncias, o governo consiga incorporar, de uma forma sistemática, a crítica que pode emergir do fato do plano ser submetido às audiências públicas. Via de regra, audiências públicas são, basicamente, apresentações por parte do governo. Há pouco espaço para o debate, e, quando ele efetivamente acontece, como foi o caso, no início do último mês, quando o Ministério Público Federal chamou o governo para uma audiência pública, ainda se fica sem uma definição clara de que forma o governo irá considerar aquilo que foi indicado nessa reunião, ou até que ponto irá desconsiderar outras opiniões.
IHU On-Line – Que mudanças são mais emergenciais nesse plano? Célio Bermann – Primeiro, o plano precisa necessariamente rever os seus paradigmas. Ele foi pensado numa época anterior ao período que se consolidou como de crise no mercado internacional. Essa crise tem repercussões no nosso país, e os parâmetros nos quais o plano se alicerça precisam ser revistos. A segunda questão é trazer a problemática do destino da energia. Não é possível continuarmos reproduzindo a situação, histórica, em que o Ministério de Minas e Energia não conversa com o Ministério de Economia e com o Ministério de Indústria, Comércio e Relações Internacionais. Este, por sua vez, não conversa com outras esferas do governo que decidem as previsões e o perfil em que a indústria, em particular, irá se moldar nos próximos anos. Então, o Ministério de Minas e Energia corre atrás de decisões em que ele não é envolvido. A sociedade também não se envolve num debate importante, no sentido de se possa definir um programa de desenvolvimento capaz de reduzir essa participação subordinada do país ao processo de globalização. Essa participação fica restrita ao papel de mero exportador de bens primários de alto conteúdo energético e alto impacto ambiental. Nessas circunstâncias, eu penso que, se há algo que precisa ser feito para mudar este contexto, necessariamente, é mudar o paradigma do planejamento energético, de forma a introduzir uma discussão mais profunda, mais geral, envolvendo as várias esferas de governo e a sociedade, para a construção de um plano de desenvolvimento em que a demanda por energia seja restabelecida.