segunda-feira, 12 de abril de 2010

O valor da biodiversidade brasileira é maior que todo o PIB. Entrevista especial com Roberto Gomes de Souza Berlinck

“A biodiversidade que hoje conhecemos (pelo menos em parte) no nosso planeta é o fruto de 3,5 bilhões de anos de evolução biológica através dos processos de seleção natural. Foi este processo, ao longo de todo este tempo, que levou ao surgimento de todas as espécies biológicas conhecidas (e ainda não conhecidas)”. A definição é do professor e pesquisador Roberto Berlinck, em entrevista concedida, por e-mail, para a IHU On-Line.
Ele enfatiza que a espécie humana faz parte da biodiversidade do planeta, mas que nenhuma outra espécie viva da Terra depende dos humanos. “Se a espécie humana for extinta, por qualquer razão, provavelmente a maioria das outras espécies vivas continuarão a existir, como bactérias, fungos, cianobactérias, plantas e animais. A espécie humana deixaria de existir muito antes que as espécies vegetais desaparecessem por completo”, argumenta. Para Berlinck, “as sementes constituem a fonte de informação e de geração de vida de diversas espécies vegetais. Com a perda da biodiversidade, espécies vegetais estão desaparecendo porque não conseguem se reproduzir”. Roberto Gomes de Souza Berlinck possui graduação em Química pela Universidade Estadual de Campinas e doutorado em Ciências (Química Orgânica) pela Université Libre de Bruxelles. Atualmente é professor no Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP). Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais as principais características que diferenciam a biodiversidade marinha e terrestre?
Roberto Berlinck - A biodiversidade marinha e terrestre é fundamentalmente diferente por um motivo simples: o meio marinho é aquoso, salino e, em função da profundidade onde os organismos vivos são encontrados, estes estão sob uma pressão muito grande (em termos de pressão atmosférica). Já os organismos terrestres vivem em um ambiente aéreo, constituído principalmente por nitrogênio (N2, 70% da atmosfera), intensa radiação luminosa e com fortes correntes de ar. Tais características ambientais fizeram com que as espécies terrestres e marinhas adquirissem características muito diferentes ao longo da evolução biológica. Por exemplo, as espécies de animais marinhos tiveram que desenvolver mecanismos para utilizar oxigênio dissolvido na água do mar. Já as espécies terrestres tiveram que desenvolver mecanismos para tolerar uma alta concentração de oxigênio no ambiente em que vivem. As espécies marinhas também tiveram que desenvolver maneiras de tolerar uma significativa concentração de sais no seu ambiente, o que não ocorre no ambiente terrestre. Desta forma, as espécies marinhas apresentam características anatômicas e fisiológicas inexistentes nas espécies terrestres. Por exemplo, vários tunicados (invertebrados marinhos) têm, em seu sangue, átomos de vanádio, um metal relativamente raro, que não ocorre na maioria dos organismos terrestres. Por outro lado, muitos insetos utilizam substâncias químicas voláteis, que se dispersam no ar, para se comunicar, o que não ocorre no ambiente marinho.
IHU On-Line - Como entender a disparidade do número de espécies entre ambiente terrestre e marinho? O que provocou esse fenômeno?
Roberto Berlinck - A resposta a esta pergunta não é simples. Recentemente foi publicado um artigo na revista científica Science que discute exatamente esta questão. O artigo foi comentado no meu blog, Química Viva, e a ideia que os autores do artigo apresentam é que a biodiversidade marinha é muito menor do que a biodiversidade terrestre, quando se considera o número de espécies nos dois ambientes. O levantamento mostra que de cada 10 espécies biológicas, nove situam-se em ambiente terrestre. Tal distribuição é relativamente recente, uma vez que, há 400 milhões de anos, a predominância era de espécies marinhas. Contudo, há cerca de 110 milhões de anos, as plantas terrestres começaram a sofrer um intenso processo de especiação (surgimento de novas espécies), bem como seus respectivos agentes polinizadores, micro-organismos associados e herbívoros predadores. Com a “explosão” das plantas floríferas há cerca de 110 milhões de anos, estas ocuparam praticamente todos os ambientes terrestres onde podiam se desenvolver. Como a dispersão das espécies pelo ar é muito mais rápida e pode atingir longas distâncias, o surgimento de um número excepcional de espécies terrestres foi muito favorecido. Sendo a dispersão no meio marinho muito mais difícil, as espécies marinhas tendem a viver de forma aglutinada, formando comunidades de alta densidade populacional – os recifes de corais. As espécies que vivem intimamente associadas aos recifes de corais se tornam particularmente vulneráveis a doenças, predação e fatores ambientais, como aquecimento e ocorrência de desastres como maremotos e furacões. Tais fatos já foram extensivamente observados nos corais da região caribenha e das Bahamas. Os corais destas regiões estão continuamente expostos a enormes furacões que movimentam as águas oceânicas de maneira extremamente agressiva, deixando um enorme rastro de destruição de corais e suas espécies associadas. São necessárias décadas para que tais recifes voltem a apresentar suas características originais. O mesmo vale para corais da Grande Barreira de Corais da Austrália, que sofrem particularmente com efeito de branqueamento dos corais (morte de zooxantelas e outras cianobactérias) em decorrência de mudanças na temperatura da água bem como nas taxas de dissolução de dióxido de carbono na água do mar. Outro fator que pode ter contribuído para um aumento significativo na biodiversidade terrestre é o aumento na vascularização das plantas superiores. Tal fator levou a um incremento importante na biomassa das plantas, e pode ter contribuído para a ocupação de nichos ecológicos ainda disponíveis. Em consequência, o número de espécies biológicas terrestres aumentou muito, deixando a biodiversidade marinha muito aquém em número de espécies. Vários fatores podem ter influenciado esta diferença, como a maior densidade da água quando comparada com a do ar, fazendo com que larvas de animais sejam transportadas com muito mais dificuldade no meio marinho do que no terrestre. A dissipação de calor na água é muito mais difícil, tornando os organismos marinhos mais suscetíveis a eventuais variações de temperatura. Desta forma, o ambiente terrestre seria muito mais propício para os processos adaptativos que regem o processo de evolução através da seleção natural.
IHU On-Line - Qual a importância de conhecer e preservar a biodiversidade? Ela é algo bom para quem e para o quê?
Roberto Berlinck – Atualmente, este é um tema constante nos meios de comunicação, e vale a pena enfatizar: somos parte da biodiversidade. O ser humano é um animal como qualquer outro. Não somos especiais. Fundamentalmente, as únicas diferenças entre a espécie humana e as outras espécies biológicas são a consciência e a linguagem. Tais características tornaram a espécie humana única, porém não mais importante ou melhor. Por exemplo, a maior parte da fotossíntese é realizada por microalgas oceânicas (cerca de 80-90% de toda a fotossíntese do planeta Terra é realizada no mar). O processo de fotossíntese captura dióxido de carbono e, na presença de luz e água, transforma o CO2 em matéria orgânica (glicose) e oxigênio. No meu ponto de vista, considero os organismos fotossintetizantes muito mais importantes do que a espécie humana, pois as espécies de algas e plantas que realizam a fotossíntese mantêm a vida de todas as outras espécies que dependem delas. Nenhuma outra espécie viva da Terra depende da espécie humana. Se a espécie humana for extinta, por qualquer razão, provavelmente a maioria das outras espécies vivas continuarão a existir, como bactérias, fungos, cianobactérias, plantas e animais. A espécie humana deixaria de existir muito antes que as espécies vegetais desaparecessem por completo. A percepção da importância da biodiversidade não se reduz a preservar e conservar a natureza porque ela é boa e bela, e sim porque a vida na Terra é uma gigantesca rede de inter-relações entre animais, vegetais e micro-organismos. Se, por acaso, partes desta rede forem severamente comprometidas, toda a rede estará comprometida. Uma vez que esta rede se estabeleceu, não é possível simplesmente ignorá-la. É preciso conhecê-la, cada vez melhor, para que possamos não apenas gerar conhecimento, mas também utilizarmos a biodiversidade de várias maneiras (na produção de alimentos e medicamentos; como lazer em zoológicos, museus, aquários etc.; em pesquisa biomédica), de forma responsável e sustentada.
IHU On-Line - Qual a especificidade da biodiversidade das sementes?
Roberto Berlinck - As sementes constituem a fonte de informação e de geração de vida de diversas espécies vegetais. Com a perda da biodiversidade, espécies vegetais estão desaparecendo porque não conseguem se reproduzir. Sendo assim, a constituição de bancos de sementes vegetais (atualmente existem vários no mundo todo) é extremamente importante para melhor se conhecer a distribuição dos vegetais na Terra, como estas sementes são importantes para a disseminação de espécies vegetais dos quais dependem insetos, aves e outros animais, bem como para servir de material de referência para análise genética de diferentes tipos de plantas e também propiciar o plantio de espécies raras e nativas que se encontram em extinção.
IHU On-Line - Como relacionar a biodiversidade com o processo de evolução e seleção natural das espécies?
Roberto Berlinck - A biodiversidade que hoje conhecemos (pelo menos em parte), no nosso planeta, é o fruto de 3,5 bilhões de anos de evolução biológica através dos processos de seleção natural. Foi este processo, ao longo de todo este tempo, que levou ao surgimento de todas as espécies biológicas conhecidas (e ainda não conhecidas).
IHU On-Line - O que significa para o mundo o conhecimento de que nossa biodiversidade é tão rica? Quais as implicações da abundância da biodiversidade para os outros setores da nossa sociedade, como a economia, por exemplo?
Roberto Berlinck - Como indiquei anteriormente, a biodiversidade é a parte mais importante de uma enorme rede, extremamente complexa, que chamamos de VIDA. O fato de o Brasil ser um país denominado “megadiverso” o coloca em destaque no cenário internacional, uma vez que possui entre 15% e 25% de toda a biodiversidade da Terra. É um dos poucos países que ainda possui uma biodiversidade tão extensa, boa parte ainda desconhecida. Portanto, é extremamente importante que sejam criados programas de pesquisa, desenvolvimento e aplicação de processos e produtos oriundos da biodiversidade brasileira. Estima-se que o valor da biodiversidade brasileira seja de 2 trilhões de dólares por ano, muito maior do que o PIB do Brasil. O potencial de utilização dos recursos oriundos da biodiversidade brasileira é incalculável. Apenas uma parte muito, mas muito pequena mesmo, destes recursos foi pesquisada e se tornou produtos de importância econômica, cultural e social. É importante assinalar que a exploração racional da biodiversidade também pode gerar produtos culturalmente importantes. A história do Brasil está intimamente relacionada à sua biodiversidade, a começar pela exploração do Pau-Brasil. A culinária brasileira está intimamente ligada à sua biodiversidade, como várias plantas do gênero Piper (que são os diferentes tipos de pimentas), peixes da região norte e centro-oeste, diferentes tipos de mandioca, uma enorme variedade de frutas, alimentos que fazem parte da cultura social. Além disso, muitas plantas foram (e ainda são) utilizadas na construção civil, móveis, embarcações, e que atualmente estão felizmente protegidas. A biodiversidade brasileira não somente deve ser explorada para fins econômicos diretos, mas também para gerar conhecimento. Não se conhece quase nada sobre os mais diversos tipos de micro-organismos, insetos, plantas e organismos marinhos que podem gerar produtos de alto valor tecnológico agregado, como enzimas. Tais produtos podem beneficiar enormemente a população brasileira de diferentes maneiras: promovendo avanço científico, gerando conhecimento, possibilitando a geração de processos e produtos de interesse para a saúde humana, para a agricultura, e de muitas outras formas. Por isso, é muito importante que se estimule a pesquisa e o conhecimento sobre a fauna e a flora brasileira. Existem inúmeros pesquisadores no Brasil inteiro que se dedicam a estudar a biodiversidade brasileira, como forma de melhor conhecer e possibilitar a utilização racional dos recursos naturais. Tais pesquisas devem ser muito estimuladas, e o acesso à biodiversidade brasileira deve ser facilitado para os pesquisadores e estudantes que queiram se dedicar a melhor conhecer as plantas, animais e micro-organismos do Brasil.
IHU On-Line - Como a perda da biodiversidade pode influenciar na longevidade da vida terrestre, inclusive da sobrevivência da espécie humana?
Roberto Berlinck - Como eu disse acima, a espécie humana é parte da megarrede de VIDA do nosso planeta. Porém, não é parte essencial desta rede. Existem outros organismos que são muito mais importantes nesta rede, como aqueles que fazem fotossíntese (plantas, algas e microalgas) e os que degradam a matéria orgânica (bactérias e fungos). Se o desenvolvimento humano prolongar a utilização não-racional, não planejada, irresponsável e não-sustentada da biodiversidade, é muito provável que em algum momento esta rede de vida fique comprometida. A própria sobrevivência da espécie humana depende de ações que minimizem a exploração da biodiversidade de maneira inconsequente. Infelizmente, parece que os governos de muitos países ainda não estão cientes do problema real e não estão implementando ações efetivas que minimizem a perda de biodiversidade. Porém, a história da humanidade nos mostra, várias vezes, que é melhor se conhecer a fundo potenciais problemas que nos cercam, para tentar evitar que estes problemas se tornem crônicos, para que eventualmente possam ser solucionados. A conservação e preservação da biodiversidade não são diferentes. É extremamente difícil prever quais seriam as consequências de uma perda significativa de biodiversidade. Tenho certeza que ninguém gostaria de vivenciar esta experiência.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

O Pantanal ameaçado. Entrevista especial com Débora Calheiros

Imprevisível dizer como será o novo perfil do Pantanal caso os 116 projetos de centrais hidrelétricas forem instalados nessa região. De acordo com Débora Calheiros, “o que se sabe é que, muito provavelmente, irá mudar o fluxo natural das águas de cada rio, e, por conseguinte, do sistema Pantanal como um todo”.
Ela concedeu à IHU On-Line uma entrevista, por telefone, sobre as ameaças colocadas ao Pantanal em nome da produção de energia em função do crescimento econômico do país.
Débora respondeu também questões sobre o desmatamento e criação de gado na região, além do que ela acha que está em jogo quando se trata da implementação de centrais hidrelétricas e barragens. “Criar 116 barragens sem nenhum estudo prévio, em uma região que deveria ser conservada, que é patrimônio nacional e da humanidade, além de ser uma reserva da biosfera, é temerante. Por isso, nós pesquisadores junto das ONGs e a sociedade civil do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul alertamos para esta questão”, opinou.
Débora Calheiros é biológa e, atualmente, trabalha na Embrapa Pantanal.Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que significa, para o Pantanal, a instalação de 116 pequenas centrais hidrelétricas?
Débora Calheiros – Na verdade, são vários tipos de centrais, não só as pequenas. Existem as Usinas Hidrelétricas (UHEs) que têm potência superior a 30 megawatts, as PCHs, que têm potência de até 30 megawatts, e as Centrais Geradoras de Eletricidade (CGHs) que são menores ainda. Dessas 116, a maioria serão PCHs, mas também estão previstas as CGHs e as UHEs. Estamos preocupados com o efeito conjunto e cinérgico de todos esses empreendimentos nos rios formadores do Pantanal que estão ao redor do planalto. Fizemos um workshop intitulado “A influência de usinas hidrelétricas no funcionamento hidroecológico do Pantanal Brasil”, na 8ª Conferência Internacional de Áreas Úmidas, a Intecol, que ocorreu em Cuiabá, em julho de 2008. Fizemos uma carta de recomendações que foi enviada a todos os órgãos envolvidos, tanto em nível federal quanto estadual. Agora o Ministério Público Federal também está atuando nesta questão, justamente para tentarmos fazer com que haja um planejamento e um estudos dos impactos de todo o conjunto de barragens que estão previstas. Atualmente, existem 29 barragens em operação, tanto grandes quanto pequenas, e 87 já em construção, licenciamento e sob estudo. O que queremos é evitar a mudança do pulso de inundação, dos ciclos de cheias e secas natural do sistema Pantanal.
IHU On-Line – Se forem instaladas essas PCHs no Pantanal, qual seria o novo perfil da região?
Débora Calheiros – É imprevisível. Como cada rio terá um regime diferente, por conta do funcionamento do regime da hidrelétrica, seja grande ou pequena, não temos como prever. O que se sabe é que, muito provavelmente, irá mudar o fluxo natural das águas de cada rio, e, por conseguinte, do sistema Pantanal como um todo. Por exemplo, a bacia do Rio Cuiabá, principal tributário do Rio Paraguai, é responsável por 40% da água do sistema. Esta bacia já tem barragens grandes em seus principais rios, o Manso, Itiquira, Correntes e São Lourenço. Já temos evidências de que o curso de inundação já é alterado abaixo da cidade de Cuiabá, pela hidrelétrica de Manso. O conjunto dessas quatro hidrelétricas na mesma bacia é um problema. No fim dos rios Paraná e Paraguai, temos o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, que possui uma área ransa, além de ser uma unidade de conservação nacional. Temos que conservar esse ambiente. A mudança do pulso de inundação é um potencial importante para operar a ecologia da própria área do parque.
IHU On-Line – Neste momento, qual a situação do desmatamento na região do Pantanal?
Débora Calheiros – Na planície, ainda temos uma boa conservação do sistema, segundo dados do último levantamento realizado por ONGs, como WWF, TNC, SOS Pantanal e outras da região, junto com a EMBRAPA Pantanal. O levantamento na planície aponta que temos 15% de área alterada. No caso do Pantanal, não podemos falar só de desmatamento, pois não é só mata. A vegetação nativa inclui pastagens e arbustos. Falamos de supressão da área vegetal nativa. O problema está no planalto. No planalto secundante estão as nascentes dos rios, formadores do Pantanal. Nesta região do planalto, de 60% a 80% da área está alterada. Isto é muito preocupante, pois é um desmatamento que não respeita a nascente e não respeita a mata ciliar, em geral. Não respeita, também, o código florestal e as áreas de preservação permanente que conservam os rios. Os rios que formam o Pantanal estão comprometidos já na área de nascente. Na região de planície, ainda há conservação e boa qualidade ambiental, pelo menos por enquanto.
IHU On-Line – Em que áreas estão concentradas as criações de gado? Essas áreas modificadas em pastagens têm diminuido?
Débora Calheiros – Na região de planície, a maioria dos sistemas de produção agrícola é tradicional. Este sistema respeita o ciclo das águas e se utiliza, na maior parte, de pastagens nativas. O manejo do gado é feito conservando o ambiente, tanto é que temos um dos biomas mais conservados do Brasil. O problema é que as fazendas estão mudando de dono, que estão vindo de fora da região. Geralmente são pessoas de São Paulo e do Paraná que têm a cultura de desmatar tudo e colocar pastagens exóticas, como a braquiária, uma gramínea africana. Isso altera profundamente o ambiente, e não respeita a questão das APPs. O desmatamento é indiscriminado e temos evidências de que isso está aumentando. Hoje as áreas desmatadas estão em 15%, mas, em 1999, eram apenas 5%. A tendência é que aumente, justamente por que as fazendas estão mudando de dono.
IHU On-Line – O que está em jogo em relação à construção dessas PCHs?
Débora Calheiros – É a questão da ampliação da matriz energética do país. Só que as PCHs geralmente têm um licenciamento muito superficial e são muitas no mesmo rio. Uma PCH é uma coisa, mas várias no mesmo rio é praticamente uma grande barragem. Elas, em geral, são um fio d’água, ou seja, não criam reservatório de água, mas alteram o fluxo das águas. Embora não se tenha um reservatório, quando se tem muitas PCHs no mesmo rio, há uma variação na vazão e a retenção de nutrientes, o que altera a qualidade da água, e, por conseguinte, o funcionamento ecológico do rio juzante da barragem. Este é um problema sério, mas o maior problema é essa proliferação indiscriminada de barragens sem planejamento. Ainda mais no caso do Pantanal, uma área que deve ser preservada. Se fosse em um rio, em São Paulo, onde já encontram vários problemas ambientais, é uma coisa. Mas criar 116 barragens sem nenhum estudo prévio, em uma região que deveria ser conservada, que é patrimônio nacional e da humanidade, além de ser uma reserva da biosfera, é temerante. Por isso, nós pesquisadores junto das ONGs e a sociedade civil do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul alertamos para esta questão. Uma reportagem de um jornal de São Paulo apontou que, recentemente, o presidente da empresa de pesquisa energética, a EPE, afirmou que eles vão realizar, finalmente, o estudo que estávamos pleiteando, a Avaliação Ambiental Integrada. Este é um estudo feito pelo setor elétrico para saber o efeito sinérgico de várias barragens em uma mesma bacia. Pela Resolução Conama de 1985, relacionada com estudos de impacto ambiental e com a lei de recursos hídricos de 1997, temos que trabalhar sempre com a visão de bacia hidrográfica. Não se pode licenciar um empreendimento sem ter a noção do que irá acarretar na área da bacia hidrográfica. No caso da bacia do Rio Paraguai, como ela é grande e possui vários empreendimentos, deve se fazer uma análise de todos eles em conjunto. O setor elétrico já tem esse tipo de análise, que já fizeram no Rio Uruguai e em outros rios do país, por isso, estávamos pleiteando, desde 2008, para que colocassem a bacia do Rio Paraguai como prioridade. Uma outra solicitação que fizemos na carta de recomendações é que se faça, também, uma avaliação ambiental estratégica. Esta é uma outra ferramenta e poderia ser feita pelo Ministério do Meio Ambiente. Inclusive, anteriormente, já houve uma tentativa de se fazer estudo na região, quando existia o Programa Pantanal, atualmente não existe nenhuma política pública voltada para o Pantanal. O estudo começou a ser feito, mas não teve finalização, para ver a questão do desenvolvimento da bacia como um todo, incluindo principalmente a questão da industrialização pesada que existe aqui na região e não só para a questão das hidrelétricas. A avaliação ambiental estratégica tem uma visão geral do sistema e de opções de desenvolvimento sustentável para o sistema, levando em conta todos os fatores dos empreendimentos e os propósitos de desenvolvimento. Estamos pleiteando esses dois estudos profundos, para que possamos, pelo princípio de precaução, evitar que se altere um ecossistema tão importante mundialmente como o Pantanal.
IHU On-Line – Porque não se fez uma avaliação ambiental integrada da região anteriormente?
Débora Calheiros – Não tenho ideia. Sabemos que existem várias bacias já contempladas. Além do Rio Uruguai, existem outros como Trombetas, no Pará. No site da EPE, encontra-se a lista de todos os rios contemplados e os estudos completos. Estamos sugerindo o estudo desde 2008, e o próprio Conselho Estadual de Recursos Hídricos do Mato Grosso do Sul e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente estão preocupados com essa problemática, que levantamos durante a realização do workshop. Questionamos, ainda em 2008, a EPE sobre essa questão. O problema é que 70% de todos esses empreendimentos estão previstos para a parte norte da bacia, no estado de Mato Grosso, e isso pode alterar o pulso de inundação e o fluxo das águas para Mato Grosso do Sul, que está rio abaixo. A preocupação mais evidente foi do estado de Mato Grosso do Sul. O Ministério Público Federal também se sensibilizou com a questão e está atuando. Provavelmente, agora, em abril, eles irão informar a decisão de que estão preocupados com essa questão e estão pedindo também que se façam estudos para que não haja problemas no futuro, na questão de conservação do Pantanal Matogrossense.
IHU On-Line – Ao analisar os projetos de eficiência energética em andamento no Brasil, como Belo Monte, o complexo do Rio Madeira etc., podemos dizer que o Brasil precisa mesmo de toda essa energia?
Débora Calheiros – Não sou exatamente do setor energético, trato da questão ambiental e acho que devemos, simplesmente, pensar se queremos ou não preservar o Pantanal. Se queremos produzir energia na região, que a energia seja gerada no Pantanal para suprir São Paulo, Rio Grande do Sul etc., temos que saber que teremos perdas, e uma delas é a conservação do Pantanal. A outra opção que temos, que até propomos na carta de recomendações, é que as barragens do Pantanal não sejam ligadas ao sistema interligado nacional. Uma vez que se precisa de energia em São Paulo, a hidrelétrica de Mato Grosso terá de fornecer energia para lá. O regime de águas e de fucionamento do reservatório não é regido pelo fluxo natural das águas, é regido pela demanda de energia. Se ele não tiver esse vínculo, de fornecer energia para fora do sistema, seria uma opção de ter um funcionamento mais ecológico. Se pode produzir energia, mas de uma forma natural. Fora esta questão, ainda tem aquela da retenção de nutrientes, a barragem impede a migração dos peixes. O pulso de inundação para o ecossistema e a população da região pantaneira depende do fluxo das águas, tanto para os ribeirinhos e os pescadores, quanto para o turismo, que é baseado em pesca e pecuária. A pecuária tem atividades tradicionais e econômicas da região e dependem da forma ambiental do ecossistema. Então, se alterarem o pulso de inundação, alteram a vida, a economia e a questão social de toda a região pantaneira. Além disso, o Brasil é signatário das metas do milênio e, dentre essas existem as metas ecossistêmicas do milênio. As metas ecossistêmicas colocam claramente que não se pode pegar uma região, como uma bacia com ecossistema, e dela retirar todos os serviços ambientais possíveis. Se deve escolher alguns deles que serão usufruidos, como água de boa qualidade e pesca ou energia. Não dá para se tirar todos os serviços ambientais de uma região sem perdas. Ou optamos que a bacia do Alto Paraguai seja fornecedora de energia, ou optamos pela sua conservação e do Pantanal.
IHU On-Line – Numa entrevista anterior, a senhora revelou que um dos problemas que o Pantanal vem enfrentando é a introdução de espécies exóticas de animais. Como está essa situação hoje?
Débora Calheiros – Uma vez que a espécie exótica é introduzida em um sistema natural, é muito difícil que ela saia. Uma vez que ela se estabelece, ela se adapta ao ambiente. No caso do Pantanal, há espécies de peixes da amazônia, o Tucunaré e o Tambaqui, e alguns moluscos que são originários da China, o Mexilhão Dourado e a Corbícula. Esse é um problema que não se pode resolver, temos que conviver com isso. Há sempre um momento de explosão da população, já que não há predador, vírus ou bactérias que causem mortandade. A tendência é o aumento vertiginoso da população. No caso da bacia do Paraná e Paraguai, onde o Mexilhão Dourado foi introduzido através da Argentina, houve um problema seríssimo nas hidrelétricas desse sistema. Itaipu, por exemplo, tem um problema sério, que provavelmente demanda milhares de reais para poder limpar esses moluscos. Como eles crescem rápido e vertiginosamente, sem predadores, eles acabam bloqueando as grades de proteção das turbinas, e os canos começam a fechar e a bloquear a passagem de água. Este é um problema sério, econômico e social. Na questão do Pantanal, este mexilhão é um pouco menos problemático do que na região do Rio Paraná, pois existe um fenômemo natural chamado Dequada, que acontece no processo de decomposição durante a enxente. A água transborda do rio, vai para a planície e há uma decomposição muito grande de plantas submersas. Isso abaixa o oxigênio, aumento o CO2 na água, essas espécies exóticas acabam morrendo e há um controle maior da população. No caso do Rio Paraná, esta população explodiu de forma absurda e acabou se tornando um problema. Uma vez que se introduzem espécies, que não pertencem a uma bacia, e elas se adaptam, é muito difícil se controlar. Isto causa um desequilíbrio ecológico absurdo, pois essas espécies competem com as nativas por espaço e alimento, os peixes da região não estão acostumados a comer esses moluscos, e, quando comem, destroem o trato digestivo. Apenas algumas espécies já estão adaptadas para comer alguns moluscos nativos, e já têm dentes e um sistema digestivo apropriados. No caso dos peixes amazônicos é a mesma coisa. Eles competem com as espécies nativas e acabam desequilibrando as relações da cadeia alimentar. Infelizmente só vamos perceber a junção de todos esses problemas e impactos a médio e longo prazo.

sábado, 3 de abril de 2010

''Os humanos são muito estúpidos para evitar as mudanças climáticas'', afirma Lovelock

CRIADOR DA "HIPÓTESE DE GAIA, LOVELOCK EXPÕE SEUS PENSAMENTOS EM UMA DECLARAÇÃO QUE PODERIA FAZER A GENTE PENSAR UM POUCO MAIS EM NOSSO PLANETA...
Os humanos são muito estúpidos para evitar que as mudanças climáticas impactem radicalmente sobre as nossas vidas ao longo das próximas décadas. Essa é a dura conclusão de James Lovelock, o ambientalista mundialmente respeitado e cientista independente que desenvolveu a teoria de Gaia.
A reportagem é do jornal The Guardian, 29-03-2010.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ela surge depois de poucos meses tumultuados em que a opinião pública sobre os esforços para combater as mudanças climáticas foi minada por eventos como os e-mails dos cientistas do clima que vazaram da Universidade de East Anglia (UEA) e o fracasso da cúpula do clima de Copenhague."Eu não acho que já estejamos evoluídos ao ponto de sermos espertos o suficiente para lidar com uma situação tão complexa quanto as mudanças climáticas", disse Lovelock em sua primeira entrevista em profundidade desde o roubo dos e-mails da UEA em novembro passado. "A inércia dos humanos é tão grande que você realmente não pode fazer nada significativo".Uma das principais obstruções a uma ação significativa é a "democracia moderna", acrescentou. "Mesmo as melhores democracias concordam que, quando uma grande guerra se aproxima, a democracia precisa ser colocada de lado. Eu tenho um sentimento de que as mudanças climáticas podem ser uma questão tão severa quanto uma guerra. Pode ser necessário colocar a democracia de molho por um tempo".Lovelock, 90 anos, acredita que a melhor esperança do mundo é investir em medidas adaptativas, como a construção de defesas marinhas ao redor das cidades que são mais vulneráveis à elevação do nível dos oceanos. Ele acha que só um evento catastrófico pode persuadir a humanidade a levar a ameaça das mudanças climáticas a sério, como o colapso de uma geleira gigante na Antártida, como a geleira Pine Island, o que imediatamente iria elevar o nível dos mares."Esse seria o tipo de evento que mudaria a opinião pública", disse. "Ou o retorno das tempestades de areia [dust bowls] no meio oeste. Outro relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) não seria suficiente. Só iríamos discutir sobre ele como agora".O relatório de 2007 do IPCC concluiu que existe 90% de chance de que a emissão de gases do efeito estufa estejam causando o aquecimento global, mas o painel foi criticado por uma afirmação errônea de que as geleiras do Himalaia poderiam derreter até 2030.Lovelock afirma que os eventos dos últimos meses revelaram os esforços dos "bons" céticos do clima: "O que eu gosto nos céticos é que, na boa ciência, você precisa de críticos que lhe façam pensar: 'Droga, será que eu cometi um erro aqui?'. Se você não tiver isso continuamente, você realmente está em apuros. Os bons céticos fizeram um bom trabalho, mas eu acho que alguns dos ruins não fizeram nenhum favor a ninguém. Você precisa de céticos, especialmente quando a ciência se torna tão grande e monolítica".Lovelock, que há 40 anos deu origem à ideia de que o planeta é um organismo gigante e autorregulável – a chamada teoria de Gaia –, acrescentou que tem pouca simpatia pelos cientistas do clima que foram pegos no escândalo dos e-mails da UEA. Ele disse que não leu os e-mails originais – "Eu me senti relutante em fuxicar" – mas que o conteúdo divulgado deixou-o "completamente indignado"."Falsificar os dados é, de qualquer forma, quase literalmente um pecado contra o espírito santo da ciência", disse. "Eu não sou religioso, mas eu digo dessa forma porque eu considero isso muito forte. É o tipo de coisa que você nunca deve fazer. Você precisa manter o padrão".