domingo, 21 de junho de 2009

ANGRA 2: medo e insegurança. Entrevista especial com Rafael Ribeiro

No início da segunda quinzena de maio deste ano, um incidente nuclear ocorreu em Angra 2. A existência de pequenos problemas nas atividades indústrias, nucleares ou não, é normal. Anormal é não informar a população sobre o evento, mas principalmente negar dados que esclareciam as circunstâncias e impactos do problema. O incidente teria sido abafado não fosse a Sociedade Angrense de Proteção Ecológica (Sapê) receber informações sobre o ocorrido nas ruas da cidade de Angra dos Reis.
Ela checou as informações nos relatórios realizados pela Eletronuclear e passou a buscar mais dados sobre o ocorrido. Não recebendo tal informação diretamente dos órgãos responsáveis, recorreu à mídia e, só então, o acidente foi notificado. Embora as informações ainda não tenham sido dadas com transparência, o representante da Sapê, Rafael Ribeiro, concedeu, por telefone, a entrevista a seguir à IHU On-Line.
Ribeiro falou sobre a questão da falta de informação e segurança em relação aos procedimentos da indústria nuclear no país. Para ele, uma comissão deveria ser formada para ter “acesso mais profundo ao que acontece dentro do complexo nuclear”, mas até agora a indústria e o complexo nuclear não aceitaram.Confira a entrevista.
IHU On-Line – Antes da Eletronuclear anunciar o problema, você denunciaram. Como ficaram sabendo desse acidente?
Rafael Ribeiro – Nós escutamos comentários na cidade de que algumas pessoas haviam sido contaminadas num trabalho interno. A notícia era meio confusa, associava ar condicionado com trabalho de pintura. Dizia também que havia pessoas contaminadas. Quando soubemos isso, começamos a buscar informações junto aos procedimentos padrões da indústria nuclear, que contêm qualquer evento não usual, e são enviadas a alguns órgãos públicos, como a defesa civil e prefeitura municipal. A linguagem usada nesses relatórios é difícil. Não é possível, só lendo, saber com precisão o que aconteceu. Nós descobrimos isso no dia 26 de maio, e o ocorrido teria se dado no dia 15. O documento informava que a chaminé havia detectado a presença de radiação e que tudo tinha sido resolvido no mesmo dia. Quando soubemos disso, passamos a divulgar para a imprensa local e nacional de que tinha de fato acontecido alguma coisa na operação da usina, mas que não sabíamos precisar. Em seguida, passamos a ligar para a Comissão Nacional de Energia Nuclear, responsável no país por monitorar as atividades nucleares, mas responsável também por estimular o uso da energia nuclear no país. Com essa dupla contribuição, a Cnen acaba não cumprindo seu papel. Nós, então, ligamos para a Eletronuclear. A pessoa que nos atendeu não quis nem se identificar ou dar qualquer tipo de informação. Depois, buscamos a Cnen de Angra dos Reis, e o senhor que nos atendeu disse que, por determinação da comissão, não poderia nos passar nada, apenas o assessor de imprensa. Esse, no entanto, quando contatado, não informou nada. Somente no dia seguinte, depois que a grande imprensa passou a averiguar a informação, é que recebemos a nota pública que informava o que tinha acontecido em linhas gerais.
IHU On-Line – Eles, então, não iam divulgar essa informação?
Rafael Ribeiro – Eles não iam demorar dez dias para informar o acidente, ou seja, eles não iriam informar mais o que havia acontecido. O acidente só foi notificado de forma clara e pública porque a gente soube. Esse é o histórico da indústria nuclear aqui em Angra dos Reis. A maior parte dos incidentes e dos acidentes com gravidade que ocorreram só vieram a público depois de denúncia, que se originou dentro da própria usina por parte dos trabalhadores. Isso nos preocupa, pois até hoje não sabemos exatamente o que aconteceu. Se você observar a notícia, quando veio a público, já veio com um culpado. Foi dito que teria ocorrido falha humana e que o trabalhador envolvido havia sido afastado. Não se questionou os procedimentos. Nós temos alguns depoimentos de trabalhadores que informam que a carga de trabalho é muito intensa, o que causa muita estafa, cansaço e é um passo para a ocorrência de falhas humanas. Veja bem, o que mais nos preocupa no que aconteceu, e que até hoje não está claro, é que as informações foram desencontradas. Alguns falaram em quatro trabalhadores atingidos, outros falaram em seis. Esses trabalhadores não têm nome, ninguém sabe onde moram, o que nos impede de verificar o ocorrido. Um fato recorrente no complexo nuclear e que nos preocupa bastante é que, nas paradas das usinas (quando é feita a manutenção dos reatores, organizado o combustível e realizada a limpeza da área com maior radiação), o trabalho de maior risco é feito por aqueles não contratados permanentes. Eles são expostos a uma área de risco e a uma carga de trabalho forte. A maior parte deles são jovens com intenção de fazer um trabalho contínuo na Eletronuclear. Então, acabam se expondo a esse tipo de trabalho. A incidência de radiação nessa população jovem depois é difícil de associar à própria empresa, uma vez que abrange trabalhadores “avulsos”. Daqui a dez anos, dificilmente será possível vincular uma eventual incidência de câncer ao trabalho executado numa área de risco. O câncer, aliás, é o principal mal causado pela incidência de radiação.O que esse acidente nos traz, em primeiro lugar, de preocupação, é a condição de trabalho dos trabalhadores da indústria nuclear, principalmente daqueles que não têm um vínculo seguro com a empresa. A segunda coisa que nos preocupa bastante diz respeito a como é tratada a informação. São poucas as instituições que recebem o informativo que, como disse o prefeito após a denúncia, não explicava o acidente, pois não havia menção de que trabalhadores poderiam estar contaminados. A informação, quando surge, vem de forma truncada e, ainda assim, não é possível averiguar a veracidade do que foi informado. A terceira coisa que nos preocupa é a questão da própria Cnen. O que daria segurança é um trabalho efetivo da comissão nacional de energia nuclear, independente e que trouxesse à população de Angra dos Reis segurança, no que diz respeito ao que acontece lá dentro. Hoje, o que acontece é o contrário. Há, na cidade, um clima de preocupação e insegurança quanto ao que, de fato, ocorre. Nós não sabemos quantos eventos similares a esse aconteceram. Temos lembrado sempre que um dos maiores problemas que aconteceram com o Césio 137 em Goiânia foi que, após o acidente, as autoridades tentaram abafar o caso e não divulgar informações, o que tornou a abrangência do caso muito maior do que já era em si. É a esse risco a mais que a população de Angra dos Reis e do Brasil está exposta.
IHU On-Line – Então, vocês não conseguiram contatar nenhum dos funcionários contaminados?
Rafael Ribeiro – Nem mesmo sabemos o nome dos funcionários. Temos uma informação, que vem de dentro da usina, de que um dos funcionários, no período em que a denúncia foi feita, tinha sumido, ou seja, ele não tinha voltado a trabalhar. Por conta disso, fizemos uma associação e achamos que ele é quem foi afastado por falha humana. Suspeitamos que esse funcionário esteja ainda contaminado por radiação. O clima no setor onde aconteceu esse problema é de preocupação, porque os funcionários estão sendo constrangidos para não dar informação e a abafar o caso. Não temos informação e nem segurança.
IHU On-Line – Um problema maior poderia ter ocorrido a partir dessa “falha de procedimento”?
Rafael Ribeiro – Com certeza. Primeiro porque não sabemos qual é o grau do dano ocorrido, segundo porque que esse tipo de procedimento impede que uma série de atitudes seja tomada dentro do tempo. E terceiro porque temos um plano de emergência absolutamente inoperante e falho. Ele tem um raio de intervenção muito baixo, que exclui áreas de moradores que vivem em torno da usina, áreas inclusive que cresceram em função da atividade nuclear. Temos duas ou três comunidades, com mais de 20 mil pessoas, que estão a pouco mais de cinco quilômetros da usina excluídas desse plano. Não temos, aqui, um sistema de transporte efetivo. Além disso, há uma estrada que a cada chuva e instabilidade cria impedimentos. Também não temos um sistema de transporte marítimo que pudesse transportar as pessoas, nem mesmo escolas e abrigos preparados para deslocamento de população. Existem escolas que estão citadas no plano de emergência como ponto de apoio em que só há um banheiro funcionando. Quantas famílias uma escola dessas poderia receber num momento de emergência? Temos lembrado que problemas em instalações nucleares acontecem como em qualquer outra atividade industrial e humana. Só que, se você buscar informações sobre acidentes com vazamento de radioatividades, chegará a uma lista com mais de dez pequenos acidentes que ocorreram na França, no Japão, na Bélgica, na Finlândia, na Espanha. E cada um teve um procedimento, como áreas evacuadas, informação. Esse tipo de acidente, por mínimo que seja, deve ter normas de segurança que devem ser atendidas. Nossa prática ainda está muito ligada à época em que surgiu a indústria nuclear no Brasil, ou seja, ao autoritarismo e, por conta disso, estamos sofrendo a falta de informações que colocam em xeque todo o sistema de segurança da usina nuclear.IHU On-Line – Vocês têm conhecimento de como funcionam os treinamentos das usinas nucleares?Rafael Ribeiro – A informação que temos é superficial. Sabemos que, em alguns casos, são exigidos cursos técnicos, mas isso depende da função e grau de responsabilidade, pois lá existem desde físicos nucleares nacionais e da Alemanha, que têm toda uma formação específica, até trabalhadores temporários com qualificação na área. Lá dentro, eles dão alguns cursos de segurança e também de operação. Só que sabemos também, por depoimentos informais, que, muitas vezes, em função da urgência e da demanda, os trabalhadores acabam descumprindo aqueles procedimentos técnicos padrões em função da necessidade, da urgência e da pressão da chefia. Se não houver monitoramento e controle externo da atividade, não haverá mudança. Um trabalhador que tem um problema de radioatividade acaba afetando a si próprio, a sua família e a população. Nós ficamos sabendo que, no ano passado, durante uma visita da Câmara Federal de deputados e senadores, uma senadora (cujo nome não foi revelado), depois da visita às instalações da usina, acusou um nível acima de radioatividade, e ficou “presa” durante um tempo até que fosse retirada toda a radioatividade acusada pelas máquinas, o que gerou um constrangimento geral. Só estou levando essas ocorrências porque é próprio de quem trabalha com radioatividade apresentar algum grau de contaminação e até uma grande contaminação dependendo da ocorrência. Precisamos ter um sistema seguro e eficaz, uma vez quer o Brasil optou ter energia e indústrias nucleares e, mais do que isso, construir mais uma empresa nuclear. É necessário melhorar nossos serviços. Nós consideramos uma insanidade do país construir uma terceira usina nuclear sem mesmo ter o destino definitivo do lixo atômico das duas primeiras. Estamos postergando para o futuro a solução dos principais problemas da indústria nuclear
IHU On-Line – O ambiente de Angra dos Reis mudou muito em função das usinas nucleares?
Rafael Ribeiro – O impacto direto da indústria nuclear é muito difícil de mensurar. Para nós, que somos um grupo de cidadãos que se articulam em defesa do meio ambiente, o principal impacto direto da população é o convívio com a situação de perigo, revelado por com um acidente como esse. Angra dos Reis sofreu, a partir da década de 1970, impacto pela construção da Rio-Santos, pelas centrais nucleares, pelo terminal de petróleo e por uma série de empreendimentos que mudaram todo o espaço socioeconômico e ambiental. Certamente, a indústria nuclear teve um peso grande sobre esses impactos, pois a partir dela várias construções foram feitas. Existe um problema sério de saneamento, além do comprometimento dos principais corpos hídricos do município, de construções irregulares em morros dando um aspecto favelizado numa região belíssima. Há uma série de transformações socioambientais que a indústria nuclear, do ponto de vista da mobilização do contingente de mão-de-obra e de recursos, contribuiu, mas que não pode ser só atribuída à indústria nuclear, obviamente.
IHU On-Line – Como deveria funcionar um controle social sobre a operação das usinas?
Rafael Ribeiro – Há alguns anos, nós defendemos que seja formada uma comissão local composta pelos Poderes Executivo e Legislativo, nas suas várias representações e da sociedade civil, com acesso mais profundo ao que acontece dentro do complexo nuclear. Essa proposta é simples, não exige grandes transformações ou investimentos e seria muito boa tanto para a indústria nuclear quanto para a própria população. Mas, infelizmente, o complexo e a indústria nuclear são bastante fechados e nem mesmo isso eles aceitaram.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Pobreza. A mãe do trabalho escravo no Brasil. Entrevista especial com Leonardo Sakamoto

Quando você escuta o que Leonardo Sakamoto tem a dizer sobre trabalho escravo no Brasil fica espantado. Embora o Brasil ainda seja apontado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como um país exemplo no combate a esse problema, o trabalho escravo é uma dura realidade para as mazelas mais pobres que estão à margem da sociedade. Essa camada mais pobre muitas vezes não apenas se submete ao trabalho forçado uma vez, como também, sem opção, volta a optar por esses mesmos lugares tempos depois. “O trabalho escravo se arvora num tripé: impunidade, ganância e pobreza. A impunidade está sendo combatida e a ganância está começando a ser impugnada, mas a pobreza está longe de ser erradicada”, diz Sakamoto, nesta entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line. O cientista político e integrante da ONG Repórter Brasil considera que nossas relações de trabalho atuais ainda são baseadas na relação que se estabeleceu antes da Lei Áurea, ou seja, ela está fundamentada no modelo de trabalho escravo do período colonial e imperial que o país viveu. Sendo a pobreza o grande motivo de um trabalhador se submeter a esse tipo de estrutura de trabalho, o Brasil ainda está longe de verdadeiramente ser um exemplo para o mundo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O Brasil é um país de destacado pela OIT pela atuação no combate ao trabalho escravo. Você concorda? Que ações merecem ser valorizadas?
Leonardo Sakamoto – Realmente, o Brasil pode ser considerado, comparado com outras ações no combate do trabalho em escravo em outros países, um exemplo internacional. Esse exemplo foi construído através de muita pressão e atuação da sociedade civil e movimentos sociais nos últimos 120 anos. Desde a Lei Áurea, há formas de dominar a força de trabalho a ponto de o sujeito ser considerado um objeto. As organizações sociais, entidades lutadoras pela liberdade, já atuavam naquela época. São mais de cem anos de luta. Quando a Organização Internacional do Trabalho (OIT) avalia que o governo e a sociedade civil brasileira são um exemplo, é uma consequência de toda essa atuação. No entanto, ao mesmo tempo em que é um exemplo internacional nesse sentido e nos mostra o que temos caminhado, se formos comparar os outros exemplos de outros países, você acaba ficando muito triste. Se o Brasil está avançando, mesmo com suas dificuldades e problemas no combate a esse crime, os outros países estão muito aquém. Países como o Paquistão e Índia, por exemplo, ainda estão engatinhando no combate ao trabalho forçado. Nós estamos bem, mas numa situação em que o mundo inteiro está mal. Então, precisamos considerar isso.
IHU On-Line – No entanto, o trabalho escravo ainda é uma realidade. Qual é o status desse problema no país?
Leonardo Sakamoto – A situação é a seguinte: o combate ao trabalho escravo no Brasil funciona, com estrutura oficial, desde 1995 e a partir de então pouco mais de 35 mil pessoas foram libertadas. Alguns pensam que é um número grande. No entanto, ainda estamos muito longe de erradicar essa prática. Algumas pessoas perguntam: quantos escravos vivem no Brasil? Isso é impossível de estimar: a CPT já pensou em 25 mil, e alguns funcionários públicos em 40 mil. A verdade é que, de 1995 até hoje, avançamos muito na construção de instrumentos públicos para combater essa prática. Temos uma fiscalização forte que verifica a situação no campo e retira trabalhadores, além da ação cada vez mais relevante da Justiça do Trabalho junto com o Ministério Público, para fazer com que os escravagistas contemporâneos paguem indenizações. Também temos um número crescente – desde 1996 quando o STF, numa decisão em que a Justiça Federal quis mostrar competência para julgar esse tipo de crime – de casos de condenação criminal (como pessoas na cadeia), além de punições econômicas da sociedade civil. Os escravagistas vão para uma lista negra do Ministérios do Trabalho, e esse cadastro é público e usado por empresas, bancos privados e públicos para cortar financiamento.Agora, isso ainda é pouco, porque o trabalho escravo se arvora num tripé: impunidade, ganância e pobreza. O trabalho escravo se arvora num tripé: impunidade, ganância e pobrezaA impunidade está sendo combatida e a ganância está começando a ser impugnada, mas a pobreza está longe de ser erradicada. O trabalho escravo não é uma doença, mas ele é uma febre, ou seja, um sintoma de algo mais grave. A doença é a pobreza, a falta de acesso a possibilidades, a alternativas de vida, que empurra milhões de pessoas para fora de suas casas em busca de subemprego, da qual o trabalho escravo é a pior condição. Então, estamos avançando no combate à impunidade e ganância, mas muito longe de combater a pobreza no Brasil, que é mãe do trabalho escravo.
IHU On-Line – Qual sua análise desse recente relatório que a OIT divulgou sobre trabalho escravo?
Leonardo Sakamoto – É o terceiro relatório sobre trabalho forçado no mundo. O segundo foi lançado em 2005 e lá ele já aparecia como um bom exemplo. A OIT diz que as perdas com o trabalho forçado no mundo é de em torno de 21 bilhões de dólares. Ao mesmo tempo, ela destaca que o problema, no Brasil, se concentra na agricultura. No entanto, afirma que, também, há exemplos de práticas de experiências no combate ao trabalho escravo através da educação. Do mesmo modo, critica que as punições criminais pelo trabalho escravo ainda são pequenas, comparadas com o tamanho do crime. Além de tudo, coloca desafios no sentido de garantir trabalho decente para esses trabalhos para que se evite o problema. De qualquer modo, de maneira geral, o relatório é muito simpático ao país.
IHU On-Line – Onde o problema do trabalho escravo no Brasil é maior?
Leonardo Sakamoto – Nas regiões de expansão agropecuária. Os agropecuários ou não querem gastar ou não têm dinheiro para capitalizar e começar o seu empreendimento de forma correta. Desta forma, eles acabam usando mão-de-obra forçada nas áreas periféricas da fazenda, ou seja, eles não usam trabalho escravo na operação de colheitadeira, mas sim para fazer cerca, expandir pasto, derrubar floresta. Assim, o foco do trabalho escravo no Brasil está na Amazônia oriental e meridional e também na região do Cerrado e no Pantanal. É claro que não se reduz a isso: há trabalho escravo desde o Rio Grande do Sul, passando por São Paulo, Rio de Janeiro, Acre....
IHU On-Line – O incentivo do governo em relação à produção de etanol, logo de cana-de-açúcar, provocou o aumentou o problema do trabalho escravo no país?
Leonardo Sakamoto – Essas relações de causa e efeito são muito difíceis de comprovar. O que acontece é que o Ministério do Trabalho começou, há uns dois anos, um trabalho maior sobre a cana-de-açúcar, pois o Brasil começou a produzir mais esse produto. Foi uma ação preventiva. Não é necessariamente por causa de denúncias, mas pelo interesse do país e pelo aumento da produção. O Ministério do Trabalho começou a fazer mais fiscalização porque se preocupou com a produção do etanol e acabou enfrentando uma situação que existia não por causa da produção da cana, mas já desde antes. Há muito tempo, se tem uma ligação da produção do açúcar com o trabalho forçado.
IHU On-Line – De que forma o marcado globalizado também incentiva a prática do trabalho escravo?
Leonardo Sakamoto – Através do comércio, pois temos trabalho escravo em diferentes setores do Brasil, Ao consumir produtos sem saber a origem, sem pressionar para que a cadeia de produção seja limpa, você está contribuindo para o trabalho escravo no Brasil.como a cadeira produtiva da carne, do aço, do ferro, da soja, do algodão, da cana, da madeira, de arroz, feijão, milho. Ao consumir produtos sem saber a origem, sem pressionar para que a cadeia de produção seja limpa, você está contribuindo para o trabalho escravo no Brasil. Ao mesmo tempo, há diversos atores internacionais que demandam produtos cada vez mais baratos sem se preocupar o que isso significa lá na ponta.
IHU On-Line – O que acontece com o trabalhador que foi submetido à escravidão?
Leonardo Sakamoto – Ele recebe seguro-desemprego por três meses, e passa a ser inserido no cadastro do Bolsa-Família. Também há programas de requalificação no Ministério do Trabalho, assim como programas de reinserção ao mundo trabalho, mas ainda é pouco. Apesar de haver uma política nacional de inserção desses trabalhadores na sociedade, muitas vezes eles acabam caindo novamente na teia da escravidão.
IHU On-Line – De que forma o escravismo se explica através do perfil da sociedade brasileira contemporânea?
Leonardo Sakamoto – O trabalho escravo, mas também as relações de trabalho no Brasil, são uma herança do escravismo colonial e imperial que tivemos. A sociedade escravista moldou as relações de trabalho país, a relação entre direitos e deveres, e a maneira como é vista a geração de riqueza. Na verdade, quando houve a “canetada” da Princesa Isabel, o Brasil e os produtores brasileiros estenderam ao máximo o limite para a abolição da escravatura até o momento em que não pode mais. Mas aquela libertação não foi feita de maneira que garantisse a inserção daqueles escravos na sociedade brasileira. Liberou-se essa força de trabalho, e os trabalhadores não tiveram compensação. Ainda vivemos consequências daquilo, o que foi muito útil ao capital. Não estou falando de negros ou indígenas apenas, mas sim de toda a população de trabalhadores, o que é uma herança daquela época.

sábado, 6 de junho de 2009

Hobsbawm: ‘Crise ambiental é desafio central que enfrentamos no século XXI'

“Vivemos meio século de um crescimento exponencial da população global, e os impactos da tecnologia e do crescimento econômico no ambiente planetário estão colocando em risco o futuro da humanidade, assim como ela existe hoje. Este é o desafio central que enfrentamos no século 21. Vamos ter que abandonar a velha crença — imposta não apenas pelos capitalistas — em um futuro de crescimento econômico ilimitado na base da exaustão dos recursos do planeta”. A afirmação é do historiador Eric Hobsbawm em entrevista exclusiva à jornalista Verena Glass e publicada na Revista Sem Terra, maio/junho 2009.
Eis a entrevista.
O planeta vive hoje uma crise que abalou as estruturas do capitalismo mundial, atinge indiscriminadamente atores em nada responsáveis pela sua eclosão, e que talvez seja um dos mais importantes “feitos” da moderna globalização. Na sua avaliação, quais foram os fatores e mecanismos que levaram a esta situação?
Nos últimos quarenta anos, a globalização, viabilizada pela extraordinária revolução nos transportes e, sobretudo, nas comunicações, esteve combinada com a hegemonia de políticas de Estado neoliberais, favorecendo um mercado global irrestrito para o capital em busca de lucros. No setor financeiro, isto ocorreu de forma absoluta, o que explica porque a crise do desenvolvimento capitalista ocorreu ali. Apesar do fato de que o capitalismo sempre — e por natureza — opera por meio de uma sucessão de expansões geradoras de crises, isto criou uma crise maior e potencialmente ameaçadora para o sistema, comparável à Grande Depressão que se seguiu a 1929, mesmo que seja cedo para avaliarmos todo o seu impacto. Um problema maior tem sido que a tendência de declínio das margens de lucro, típico do capitalismo, tem sido particularmente dramática porque os operadores financeiros, acostumados a enormes ganhos com investimentos especulativos em épocas de crescimento econômico, têm buscado mantê-los a níveis insustentáveis, atirando-se em investimentos inseguros e de alto risco, a exemplo dos financiamentos imobiliários “subprime” nos EUA. Uma enorme dívida, pelo menos quarenta vezes maior do que a sua base econômica atual foi assim criada, e o destino disso era mesmo o colapso.
Como resposta à crise econômica, governos e instituições financeiras estão concentrados em salvar os sistemas bancário e financeiro, opção que tem sido considerada uma tentativa de cura do próprio vetor causador do mal. No que deve resultar este movimento?
Um sistema de crédito operante é essencial para qualquer país desenvolvido, e a crise atual demonstra que isso não é possível se o sistema bancário deixa de funcionar. Nesse sentido, as medidas nacionais para restaurá-lo são necessárias. Mas o que é preciso também é uma reestruturação do Estado por exemplo, através das nacionalizações, a “desfinanceirização” do sistema e a restauração de uma relação realista entre ativos e passivos econômicos. Isso não pode ser feito simplesmente combinando vastos subsídios para os bancos com uma regulação futura mais restrita. De toda forma, a depressão econômica não pode ser resolvida apenas via restauração do crédito. São essenciais medidas concretas para gerar emprego e renda para a população, de quem depende, em última instância, a prosperidade da economia global.
Antes de se agudizar o caos econômico, o mundo começou a sofrer uma sucessão de abalos sociais e ambientais, como a falta global de alimentos, as mudanças climáticas, a crise energética, as crises humanitárias decorrentes das guerras, entre outros. Como você avalia estes fatores na perspectiva do paradigma civilizatório e de desenvolvimento do capitalismo moderno?
Vivemos meio século de um crescimento exponencial da população global, e os impactos da tecnologia e do crescimento econômico no ambiente planetário estão colocando em risco o futuro da humanidade, assim como ela existe hoje. Este é o desafio central que enfrentamos no século 21. Vamos ter que abandonar a velha crença — imposta não apenas pelos capitalistas — em um futuro de crescimento econômico ilimitado na base da exaustão dos recursos do planeta. Isto significa que a fórmula da organização econômica mundial não pode ser determinada pelo capitalismo de mercado que, repito, é um sistema impulsionado pelo crescimento ilimitado. Como esta transição ocorrerá ainda não está claro, mas se não ocorrer, haverá uma catástrofe.
O capitalismo tem adquirido, cada vez mais, uma força hegemônica na agricultura com o crescimento do agronegócio. Muitos defendem que a Reforma Agrária não cabe mais na agenda mundial. Como vê este debate e a luta pela terra de movimentos sociais como o MST e a Via Campesina?
A produção agrícola necessária para alimentar os seis bilhões de seres humanos do planeta pode ser fornecida por uma pequena fração da população mundial, se compararmos com o que era no passado. Isso levou tanto a um declínio dramático das populações rurais desde 1950, quanto a uma vasta migração do campo para as cidades. Também levou a um crescente domínio da agricultura por parte não tanto do grande agronegócio, mas principalmente de empreendimentos capitalistas que hoje controlam o mercado desta produção. Da mesma forma, têm aumentado os conflitos entre agricultores e iniciativas empresariais na disputa pela terra para propósitos não agrícolas (indústrias, mineração, especulação imobiliária, transporte etc.), bem como pela sua posse e pela exploração dos recursos naturais. A Reforma Agrária sem duvida não é mais tão importante para a política como foi há 40 anos, pelo menos Insustentável: crescimento econômico e da população colocam em risco o futuro da amizade na América Latina, mas claramente permanece uma questão central em muitos outros países. Na minha opinião, a crise atual reforça a importância da luta de movimentos como o MST, que é mais social do que econômica. Em tempos de vacas gordas é muito mais fácil ganhar a vida na cidade. Em tempos de depressão, a terra, a propriedade familiar e a comunidade garantem a segurança social e a solidariedade que o capitalismo neoliberal de mercado tão claramente nega aos migrantes rurais desempregados.
Na virada do século, um novo movimento global de resistência social tomou corpo através do que ficou conhecido como altermundialismo. Surgiu o Fórum Social Mundial, e grandes manifestações contra a guerra e instituições multilaterais, como a OMC, o G8 e a ALCA, na América Latina, ganharam as ruas. Na sua avaliação, o que resultou destes movimentos? E hoje, como vê estas iniciativas?
O movimento global de resistência altermundialista merece o crédito de duas grandes conquistas: na política, ressuscitou a rejeição sistemática e a crítica ao capitalismo que os velhos partidos de esquerda deixaram atrofiar. Também foi pioneiro na criação de um modo de ação política global sem precedentes, que superou fronteiras nacionais nas manifestações de Seattle e nas que se seguiram. Grosso modo, logrou formular e mobilizar uma poderosa opinião pública que seriamente pôs em cheque a ordem mundial neoliberal, mesmo antes da implosão econômica. Seu programa propositivo, porém, tem sido menos efetivo, em função, talvez, do grande número de componentes ideologicamente e emocionalmente diversos dos movimentos, unificados apenas em aspirações muito generalistas ou ações pontuais em ocasiões específicas.
Principalmente na América Latina, os anos 2000 trouxeram uma série de mudanças políticas para a região com a eleição de governadores mais progressistas. A sociedade civil organizada ganhou espaço nos debates políticos, mas os avanços na garantia dos direitos sociais ainda esperam por uma maior concretização. Como analisa este fenômeno?
O fator mais positivo para a América Latina é a diminuição efetiva da influência política e ideológica — e, na América do Sul, também econômica — dos EUA. Um segundo fator muito importante é o surgimento de governos progressistas — novamente mais fortes na América do Sul — , inspirados pela grande tradição da igualdade, fraternidade e liberdade, que comprovadamente está mais viva aí do que em outras regiões do mundo neste momento. Estes novos regimes têm se beneficiado de um período de altos preços de seus bens de exportação. Quão profundamente serão afetados pela crise econômica, principalmente o Brasil e a Venezuela, ainda não está claro. Suas políticas têm logrado algumas melhorias sociais genuínas, mas até agora não reduziram significativamente as enormes desigualdades econômicas e sociais de seus países. Esta redução deve permanecer a maior prioridade de governos e movimentos progressistas.
Diante da crise civilizatória, do fracasso do capitalismo e da inoperância dos sistemas multilaterais, que não foram aptos a enfrentar as grandes questões mundiais, as esquerdas têm se debatido na busca de alternativas; mas nem consensos nem respostas parecem despontar no horizonte. Haveria, em sua opinião, a possibilidade real da construção de um novo socialismo, uma nova forma de lidar com o planeta e sua gente, capaz de enfrentar a hegemonia bélica, econômica e política do neoliberalismo?
Eu não acredito que exista uma oposição binária simples entre “um novo socialismo” e a “hegemonia do capitalismo”. Não existe apenas uma forma de capitalismo. A tentativa de aplicar um modelo único, o “fundamentalismo de mercado” global anglo-americano, é uma aberração histórica, que potencialmente colapsou agora e não pode ser reconstruída. Por outro lado, o mesmo ocorre com a tentativa de identificar o socialismo unicamente com a economia centralizada planejada pelo Estado dos períodos soviético e maoísta. Esta também já era (exceto talvez se nosso século for reviver os períodos temporários de guerra total do século 20). Depois da atual crise, o capitalismo não vai desaparecer. Vai se ajustar a uma nova era de economias que combinarão atividades econômicas públicas e privadas. Mas o novo tipo de sistemas mistos tem que ir além das várias formas de “capitalismo de bem estar” que dominou as economias desenvolvidas nos trinta anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.
Deve ser uma economia que priorize a justiça social, uma vida digna para todos e a realização do que Amaratya Sen chama de potencialidades inerentes aos seres humanos. Deve estar organizada para realizar o que está além das habilidades do mercado dos caçadores-de-lucro, principalmente para confrontar o grande desafio da humanidade neste século 21: a crise ambiental global. Se este novo sistema se comprometer com os dois objetivos, poderá ser aceitável para os socialistas, independente do nome que lhe dermos. O maior obstáculo no caminho não é a falta de clareza e concordância entre as esquerdas, mas o fato de que a crise econômica global coincide com uma situação internacional muito perigosa, instável e incerta, que provavelmente não estabelecerá uma nova estabilidade por algum tempo. Entrementes, não há consenso ou ações comuns entre os Estados, cujas políticas são dominadas por interesses nacionais possivelmente incompatíveis com os interesses globais.
Conceitos como solidariedade, cooperação, tolerância, justiça social, sustentabilidade ambiental, responsabilidade do consumidor, desenvolvimento sustentável, entre outros, têm encontrado eco, mesmo de forma ainda frágil, na opinião pública. Acredita que estes princípios poderão, no futuro, ganhar força e influenciar a ordem mundial? Vê algum caminho que possa aproximar a humanidade a uma coabitação harmoniosa?
Os conceitos listados estão mais para slogans do que para programas. Eles ou ainda precisam ser transformados em ações e agendas (como a redução de gases de efeito estufa, encorajada ou imposta pelos governos, por exemplo), ou são subprodutos de situações sociais mais complexas (como “tolerância”, que existe efetivamente apenas em sociedades que a aceitam ou que estão impedidas de manter a intolerância). Eu preferiria pensar na “cooperação” não apenas como um ideal generalista, mas como uma forma de conduzir as questões humanas, como as atividades econômicas e de bem estar social. Me entristece que a cooperação e a organização mútua, que eram um elemento tão importante no socialismo do século 19, desapareceram quase que completamente do horizonte socialista do século 20 – mas felizmente não da agenda do MST. Espero que esta lista de conceitos continue conquistando o apoio e mobilize a opinião pública para pressionar efetivamente os governos. Não acredito que a humanidade alcançará um estado de “coabitação harmoniosa” num futuro próximo. Mas mesmo se nossos ideais atualmente são apenas utopias, é essencial que homens e mulheres lutem por elas.
O senhor, que estudou com profundidade a história do mundo e as relações humanas nos últimos séculos, o que espera do futuro?
Se a crise ambiental global não for controlada, e o crescimento populacional estabilizado, as perspectivas são sombrias. Mesmo se os efeitos das mudanças climáticas possam ser estabilizados, produzirão enormes problemas que já são sentidos, como a crescente competição por recursos hídricos, a desertificação nas zonas tropicais e subtropicais, e a necessidade de projetos caros de controle de inundações em regiões costeiras. Também mudarão o equilíbrio internacional em favor do hemisfério Norte, que tem largas extensões de terras árticas e subárticas passíveis de serem cultivadas e industrializadas. Do ponto de vista econômico, o centro de gravidade do mundo continuará a se mover do Oeste (América do Norte e Europa) para o Sul e o Leste asiático, mas o acúmulo de riquezas ainda possibilitará às populações das velhas regiões capitalistas um padrão de vida muito superior às dos emergentes gigantes asiáticos. A atual crise econômica global vai terminar, mas tenho dúvidas se terminará em termos sustentáveis para além de algumas décadas. Politicamente, o mundo vive uma transição desde o fim da Guerra Fria. Se tornou mais instável e perigoso, especialmente na região entre Marrocos e Índia. Um novo equilíbrio internacional entre as potências — os EUA, China, a União Européia, Índia e Brasil — presumivelmente ocorrerá, o que poderá garantir um período de relativa estabilidade econômica e política, mas isto não é para já. O que não pode ser previsto é a natureza social e política dos regimes que emergirão depois da crise. Aqui as experiências do passado não podem ser aplicadas. O historiador pode falar apenas das circunstâncias herdadas do passado. Como diz Karl Marx: a humanidade faz a sua própria história. Como a fará e com que resultados, muitas vezes inesperados, são questões que ultrapassam o poder de previsão do historiador.