domingo, 24 de maio de 2009

''Comparo o projeto da transposição a um computador cheio de vírus''. Entrevista com D. Cappio

No dia 9 de maio, dom Luiz Flávio Cappio recebeu o Prêmio Kant de Cidadão do Mundo, da Fundação Kant, na cidade de Freiburg, Alemanha. O prêmio, concedido a cada dois anos a pessoas que se destacaram na defesa dos direitos humanos, é o segundo reconhecimento internacional da luta do bispo contra o projeto de transposição do Rio São Francisco. A reportagem e a entrevista é de Marcelo Netto Rodrigues e publicada pelo jornal Brasil de Fato, 20-05-2009. Ano passado, Cappio – que realizou jejuns contra o projeto em 2005 e 2007 – já havia sido agraciado com o prêmio da Paz 2008, concedido pela Pax Christi Internacional. Junto a Rubem Siqueira, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), na Bahia, e coordenador da Articulação São Francisco Vivo, Cappio aproveita a viagem para participar de debates em outras cidades alemãs – Frankfurt, Berlim, Bonn, Bremen – e na cidade austríaca de Graz. Em Berlim, foi o convidado principal de um seminário organizado pela organização católica Misereor, sob o tema energia, poder e fomeh. Quando aproveitou a presença de parlamentares alemães no evento para pedir que enviassem emails ao Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro pressionando-o a julgar as questões jurídicas pendentes que existem contra o projeto.
Eis a entrevista.
O senhor veio para a Alemanha para receber um prêmio de cidadão do mundo. Ano passado, o senhor já havia recebido um prêmio de uma organização com sede na Bélgica. O senhor acredita que é possível internacionalizar a campanha pela não-transposição do rio São Francisco? Desde o momento dos dois jejuns que fizemos, esta campanha já se tornou conhecida no mundo inteiro. Haja vista, a imensa solidariedade que recebemos de muitos países. E estes prêmios são sinais evidentes disso. A Pax Christi, que congrega 54 países, e a Fundação Kant, aqui da Alemanha, assumiram para si essa luta, em defesa dos povos mais pobres do Nordeste brasileiro.
Um confrade seu aqui da Alemanha disse que os seus dois jejuns tiveram, pelo menos, dois efeitos práticos: primeiro, fizeram com que as máscaras de um governo dito popular caíssem no momento em que foi posto numa encruzilhada e acabou optando pelo outro lado; e segundo, fizeram com que a CNBB voltasse a se pautar sob a ótica da opção preferencial pelos pobres. O que mais? Sim, além desses dois aspectos, eu vejo uma tomada de consciência do povo ribeirinho, da nação brasileira e do mundo sobre esse problema que até então era pouco discutido. E uma outra grande conquista foi a unificação de todos aqueles que lutam por essa mesma causa. De repente, vimos juntos povos indígenas, quilombolas, acadêmicos de universidades, políticos que se alinharam a esse espírito de luta, igrejas e movimentos.
Tudo leva a crer que o presidente Lula não poderá declarar no final do seu segundo mandato que ele realizou a transposição. O senhor realmente acredita que ele chegará ao fim do seu mandato sem que a obra tenha deslanchado? Eu não acredito que esse projeto chegue ao fim. Não acredito de jeito nenhum. Eu sempre comparo o projeto da transposição a um computador cheio de vírus. Quando você tem um computador infectado, inevitavelmente chega um momento em que ele para. O projeto está tão viciado, tão cheio de irregularidades, que de repente ele vai empacar. Ele não tem como ir muito à frente. Não acredito que ele chegue ao fim. E não vai satisfazer a vaidade de Lula.
O senhor ainda espera alguma coisa do governo Lula? Olha, eu não digo que eu espero. Eu digo que eu esperei. Eu esperava. E para isso eu lutei, vesti a camisa, suei a camisa para que fosse um governo voltado aos grandes interesses do povo. E de repente, a gente percebeu que o governo Lula se tornou refém das elites, dos grandes projetos transnacionais. Fui decepcionado. Hoje, não espero mais nada do governo dele e não vejo a hora de uma mudança de governo, e espero que seja para melhor.
O Gandhi chegou a fazer nove jejuns. O senhor descarta por completo que venha a fazer mais um jejum ou essa possibilidade ainda existe? Eu não tenho pretensão nenhuma, nem de longe, de me comparar a Gandhi. Mas eu acho que o jejum já atingiu seu objetivo. Já deu um grito e aqueles que deviam ouvir já ouviram. Acho que o recado está dado.
O senhor seria a favor da transposição se ela só viesse após a revitalização do rio? Ou a transposição não deve ocorrer de jeito nenhum? Olha, desde que as comunidades sejam abastecidas, o que é a função prioritária da água. E desde que o rio São Francisco tenha condições, então, pode-se pensar em projetos econômicos de utilização da água. Mas não sei se o projeto de transposição é o melhor. Eu diria projetos de uso econômico da água, mas desde que os povos sedentos fossem dessedentados, e desde que o rio São Francisco suportasse essa ingerência.
O fato de o senhor ter nascido no dia de São Francisco influenciou em alguma medida na sua opção pela Ordem Franciscana? Não, foi apenas uma feliz coincidência. Eu optei pela ordem devido ao grande amor que eu tenho à maneira de São Francisco viver o Evangelho e pelo seu grande amor aos pobres e à natureza.

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