Discutir, de forma geral e unida, para mudar os paradigmas atuais. Essa é a alternativa dada pelo professor Célio Bermann em relação ao Plano Decenal de Energia, em vigor no Brasil, que planeja (e já está fazendo isso) ampliar a oferta de energia no país. No entanto, fica claro, pelas palavras de Bermann, que essa energia é para produção de produtos que, em grande parte, são destinados à exportação. Ou seja, estamos produzindo energia para gerar produtos que não ficam no Brasil. Para o professor, “a tendência de incremento dos combustíveis fósseis na matriz energética, certamente, está indo na contramão da história”.
Nesta entrevista, realizada por telefone, Célio Bermann fala, fundamentalmente, do Plano Decenal de Energia, mas analisa-o de forma mais questionadora, levando em conta termos sociais, econômicos e ambientais. “O que está acontecendo, de forma geral, com o planejamento energético no nosso país, a meu ver, é que estamos submetidos ao que eu chamo de uma ditadura da oferta”, refletiu.
Célio Bermann é graduado em Arquitetura e Urbanismo, pela Universidade de São Paulo. Na École des Hautes Études en Sciences Sociales (França), especializou-se em Histoire et Géographie des Populations. É mestre em Planejamento Urbano e Regional, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e doutor em Planejamento de Sistemas Energéticos, pela Universidade Estadual de Campinas. A USP também lhe concedeu o título de pós-doutorado e livre-docência. É nesta universidade que hoje atua como professor e pesquisador. É autor de Energia no Brasil: para quê? para quem? - Crise e alternativas para um país sustentável (São Paulo: Editora Livraria da Física/FASE, 2002) e Exportando a nossa natureza - Produtos intensivos em energia: implicações sociais e ambientais (Rio de Janeiro: FASE, 2004), entre outras obras.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Sendo o Brasil um dos países com maior possibilidade de ter uma matriz energética relativamente limpa e renovável, quais são as maiores discrepâncias desse Plano Decenal de Energia?
Célio Bermann – São várias as questões que envolvem a previsão de oferta de energia da forma como o Plano Decenal está hoje indicando. A primeira delas diz respeito à necessidade, e o plano explicita isso, de atendimento do mercado em curto prazo. Esse atendimento só é possível através das termelétricas a derivados de petróleo e a gás natural e, também, utilizando o carvão mineral. Esta necessidade é ditada pelo mercado, não pela população brasileira nem pelo órgão planejador do governo. E o fato de ela precisar atender uma demanda que é do mercado, a necessidade de energia a curto prazo, faz com que esta última previsão coloque com muita ênfase a termeletricidade a partir de combustíveis fósseis.
A segunda questão também está relacionada com o mercado que indica que as chamadas fontes renováveis são caras. Isto é, a produção de energia elétrica a partir dos ventos, da biomassa, de energia solar, é considerada não competitiva com as fontes tradicionais. Isso faz com que a aposta nas fontes renováveis seja também restrita.
E, por último, existe a questão relacionada com as chamadas energias renováveis relacionadas com hidroeletricidade. O plano prevê uma grande ampliação da capacidade hidrelétrica do Brasil. O problema é que esta capacidade de produção de energia elétrica, a partir dos rios, da água, está fundamentalmente localizada na região amazônica.
IHU On-Line – E o que está acontecendo em termos ambientais e sociais?
Célio Bermann – Como esta área comporta um grande chamado de Unidades de Conservação, uma grande quantidade de áreas consideradas indígenas, a produção de eletricidade nelas encontra um conflito que será superado apenas – e isso o plano não indica – através da priorização da produção de energia, em detrimento da conservação ambiental, da manutenção da cultura e dos territórios das populações tradicionais. Então, são esses os três aspectos que ajudam a entender o porquê desta oferta de energia elétrica para os próximos dez anos.
IHU On-Line – Com esse Plano Decenal de Energia, em sua opinião, se produz energia para o quê e para quem?
Célio Bermann – Se pegarmos a matriz de consumo setorial de energia elétrica no Brasil, praticamente 30% da energia é consumida pelos seis setores chamados de intensivos em energia. São eles: o cimento, a produção de aço, a produção de ferro-ligas (ligas a base de ferro), a produção dos metais não-ferrosos (principalmente, o alumínio primário), a produção de química e, finalmente, o setor de papel e celulose. Esses seis setores consomem 30% da energia produzida no Brasil. Destes seis setores, quatro – produção de aço, não-ferrosos, ferro-ligas, papel e celulose – são fundamentalmente destinados à exportação. Esses cálculos eu desenvolvi aqui no Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP e mostram que praticamente 17,5% da energia elétrica no Brasil é destinada à exportação. Isto é, é uma energia elétrica que foi consumida pelas plantas indústrias eletrointensivas, e que são exportadas, incorpora a produção de energia a esses bens primários.
IHU On-Line – Estamos na contramão da história?
Célio Bermann – Depende do referencial que temos. Se pensarmos que, de certa forma, se consolida num plano internacional um esforço na direção de reduzir emissões de gases de efeito estuda e com isso reduzir a utilização dos combustíveis fósseis, uma matriz energética como a nossa, em que esta participação tende a aumentar, certamente é um indício de que estamos indo na direção contrária àquela que o contexto mundial hoje preconiza. Por outro lado, temos uma situação que nos favorece desta comparativa facilidade que o Brasil apresenta com relação a sua matriz energética. Ela é uma matriz energética em que as chamadas fontes energéticas renováveis são acentuadas em relação ao panorama internacional, o que nos permite deixar um pouco a vontade em relação aos esforços internacionais. Mas, eu repito, a tendência de incremento dos combustíveis fósseis na matriz energética, certamente, está indo na contramão da história.
IHU On-Line – A partir das suas críticas, podemos entender que, então, o Plano mostra uma submissão da política em relação ao mercado?
Célio Bermann – Antes dessa submissão ao mercado, o que está acontecendo, de forma geral, com o planejamento energético no nosso país, a meu ver, é que estamos submetidos ao que eu chamo de uma ditadura da oferta. Ao não se questionar a demanda, a oferta passa a ser a única forma de manutenção daquilo que podemos chamar de uma articulação entre o planejamento do governo e o mercado. A outra questão é a submissão do planejamento energético do nosso país ao que determina o mercado. Se o mercado fosse homogêneo, em que todos os seus agentes poderiam se expressar da mesma forma, teríamos, de alguma forma, uma situação de liberdade e democracia. Isso não acontece. O que temos em relação ao perfil de consumo energético brasileiro é uma priorização às grandes corporações internacionais, ao grande capital internacional e nacional.
Com isso, as decisões ficam quase que inteiramente subordinadas a essas necessidades, em detrimento de uma questão importante, do meu ponto de vista, que é a demanda social, em que um contingente considerável de brasileiros ainda vive sem acesso à energia elétrica. Claro que o governo, ao implantar, em grande medida, o seu programa "Luz para todos", procura atender esta necessidade. Mas, enquanto ela for restrita à extensão de rede, enquanto o acesso de energia elétrica não permitir que fontes locais de energia renovável atendam às necessidades das populações que são distantes à rede de distribuição, enquanto isso tudo não for feito, ficaremos sujeitos à Lei do Mercado. E na Lei do Mercado essas populações não têm espaço.
IHU On-Line – Como fica nossa pegada ecológica a partir da instauração desse plano?
Célio Bermann – A ideia de se buscar identificar o que a literatura internacional chama de pegada ecológica, isto é, o acesso aos recursos naturais em relação à transformação de energia, no caso do Plano Decenal de Energia, gera uma contabilidade em termos de degradação de recursos, de dilapidação dos recursos e dos ecossistemas. No nosso caso, de novo, se compararmos o perfil de suprimento energético no Brasil com o plano internacional, veremos que temos ainda uma situação bastante favorável. Isso não quer dizer que a pegada ecológica irá crescer e se tornar cada vez mais intensa em função daquilo que o Plano Decenal preconiza.
IHU On-Line – Este plano tem, de algum forma, pontos positivos?
Célio Bermann – O que eu considero positivo, e o plano abre, pela primeira vez, é a possibilidade de contestação Ou seja, a sociedade, de uma forma geral, pode questionar e buscar outras soluções. Isso não quer dizer que, nas atuais circunstâncias, o governo consiga incorporar, de uma forma sistemática, a crítica que pode emergir do fato do plano ser submetido às audiências públicas. Via de regra, audiências públicas são, basicamente, apresentações por parte do governo. Há pouco espaço para o debate, e, quando ele efetivamente acontece, como foi o caso, no início do último mês, quando o Ministério Público Federal chamou o governo para uma audiência pública, ainda se fica sem uma definição clara de que forma o governo irá considerar aquilo que foi indicado nessa reunião, ou até que ponto irá desconsiderar outras opiniões.
IHU On-Line – Que mudanças são mais emergenciais nesse plano?
Célio Bermann – Primeiro, o plano precisa necessariamente rever os seus paradigmas. Ele foi pensado numa época anterior ao período que se consolidou como de crise no mercado internacional. Essa crise tem repercussões no nosso país, e os parâmetros nos quais o plano se alicerça precisam ser revistos. A segunda questão é trazer a problemática do destino da energia. Não é possível continuarmos reproduzindo a situação, histórica, em que o Ministério de Minas e Energia não conversa com o Ministério de Economia e com o Ministério de Indústria, Comércio e Relações Internacionais. Este, por sua vez, não conversa com outras esferas do governo que decidem as previsões e o perfil em que a indústria, em particular, irá se moldar nos próximos anos. Então, o Ministério de Minas e Energia corre atrás de decisões em que ele não é envolvido. A sociedade também não se envolve num debate importante, no sentido de se possa definir um programa de desenvolvimento capaz de reduzir essa participação subordinada do país ao processo de globalização. Essa participação fica restrita ao papel de mero exportador de bens primários de alto conteúdo energético e alto impacto ambiental. Nessas circunstâncias, eu penso que, se há algo que precisa ser feito para mudar este contexto, necessariamente, é mudar o paradigma do planejamento energético, de forma a introduzir uma discussão mais profunda, mais geral, envolvendo as várias esferas de governo e a sociedade, para a construção de um plano de desenvolvimento em que a demanda por energia seja restabelecida.
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