terça-feira, 31 de março de 2009

" O Planeta necessita que mudemos de modelo de vida"

Serge Latouche, professor emérito de Economia da Universidade de Paris-Sul (Orsay), é um dos teóricos do decrescimento, uma proposta que rechaça o crescimento pelo crescimento e a sociedade de consumo.
Convidado pelo Instituto do Território, Latouche alertou, em uma conversa em Valência, para a superexploração do Planeta.
Urge uma mudança, razão pela qual, para Latouche, “a crise é uma boa notícia”. Segue a entrevista que Serge Latouche concedeu a Cristina Vázquez e está publicada no jornal espanhol El País, 30-03-2009. A tradução é do Cepat.
Esses tempos de crise são um momento propício para as teorias do decrescimento, não?
Sim e não. Sim, porque a crise econômica está conectada ao desastre econômico, o que nos leva a um choque terapêutico que exige outro sistema [de produção]. E não, porque a reação de todos os Governos e dos poderes econômicos não é corrigir, mas reproduzir o atual sistema; mais indústrias automobilísticas e mais cimento, o que é uma contradição. Os Governos admitem isso, mas fazem o contrário para evitar tensões sociais e seguem ajudando os bancos, o capital...
A sua proposta não é utópica? É uma revolução e toda revolução implica uma mudança de mentalidade. Temos o exemplo do Maio de 1968, que não foi violento. As pessoas saíram às ruas para pedir outro modelo de vida. Não foi uma mudança tão espetacular como a revolução francesa, mas trouxe transformações. O Planeta necessita que mudemos de estilo de vida.
Há alguém que possa liderar este movimento? As mudanças não serão produzidas com as estruturas atuais, que são do século XIX. Serão associações, mas não necessariamente um partido político. Eu, ao menos, não tenho intenção de criá-lo.
Que mudanças vão empreender? A relocalização, porque permite desmundializar, questiona os mercados financeiros e encontra um sentido diferente para a produção local e ecológica.
Um retorno ao campo? Não apenas um retorno ao campo. Mas creio que haverá uma agricultura não produtivista. Não deve ser entendido como um retorno ao passado; será preciso reinventar uma agricultura mais próxima, menos produtivista e que use menos pesticidas e produtos químicos para engorda.
O desemprego é o grande drama desta crise. O que você faria? Os Governos reimpulsionam o crescimento, o que nos empurra novamente contra a parede. Há soluções fáceis como aumentar a população agrícola, reduzir as horas de trabalho ou potencializar a reciclagem. A indústria automobilística poderia produzir tecnologia solar em vez de carros.
Como vive um crítico do crescimento? Não é preciso ser de uma sobriedade masoquista. Mas eu, por exemplo, não ando de avião, prefiro o trem. Andar de carro pela cidade também é bastante desagradável. Se pudermos andar de bicicleta, melhor. Não gosto de beber água engarrafada. Prefiro as biocooperativas aos shoppings centers e coisas do gênero.
É o decrescimento incompatível com a internet? Todos aqueles que fizeram uma opção radical de voltar ao campo, ser autônomos e produzir seus próprios alimentos, têm computador. O decrescimento não demoniza necessariamente a internet.

domingo, 29 de março de 2009

"NÃO LER A BÍBLIA, É COMO SER CEGO"

“Não ler a Bíblia é como ser cego” Para o escritor americano David Plotz, a Bíblia é uma leitura obrigatória para entender a sociedade atual José Antonio Lima Judeu por origem, David Plotz tornou-se agnóstico ao longo da vida, embora tenha mantido o interesse pela religião e pela tradição judaicas. Em 2006, estava tão entediado durante o bat mitzvah da prima – a cerimônia que marca o início das responsabilidades religiosas dos judeus, realizada aos 12 anos para as meninas e aos 13 para os meninos – que começou a ler a Bíblia. Indignado com uma história que leu no Gênesis, e que não conhecera quando criança, decidiu, segundo suas palavras, descobrir o que aconteceria se um “ignorante” lesse o livro no qual sua religião está baseada. Plotz narrou sua experiência em um blog, editado num livro lançado neste mês nos Estados Unidos, cujo título pode ser traduzido como “O bom livro: as coisas bizarras, hilárias, perturbadoras e maravilhosas que aprendi quando li cada palavra da Bíblia”. ENTREVISTA - DAVID PLOTZ QUEM É Casado, pai de três filhos, é jornalista. Já escreveu para revistas como New York Times Magazine, Rolling Stone, GQ e para o jornal The Washington Post. É editor da edição on-line da revista SlateO QUE PUBLICOUThe genius factory: the curious history of the Nobel Prize Sperm Bank (2005) e Good book: the bizarre, hilarious, disturbing, marvelous, and inspiring things I learned when I read every single word of the Bible (2009)
ÉPOCA – Que história do Gênesis o deixou indignado?
David Plotz – Como o bat mitzvah de minha prima estava incrivelmente chato e eu não tinha nada melhor para fazer, peguei a Bíblia e a abri em qualquer página. Caí no capítulo 34 do Gênesis, e comecei a ler a história de Diná, filha de Jacó, um grande patriarca de Israel. Um dia ela sai para uma caminhada e é estuprada, só que o homem que a atacou diz que está apaixonado por ela. Ele, então, vai ao encontro de Jacó e de seus filhos, pede desculpas e diz que quer se casar com ela. Ele oferece muitos favores e, em troca, os filhos de Jacó exigem que todos os homens da tribo do estuprador sejam circuncidados. Aí, acontece uma reviravolta sombria. Após a circuncisão, os filhos de Jacó aproveitam o fato de os homens da outra tribo estarem debilitados e os massacram. Pegam mulheres e crianças como escravos. Quando Jacó reclama do ato, os filhos questionam se Jacó queria que a filha fosse tratada como uma prostituta. E a história acaba. Sem explicação! Aí eu pensei: “Se isso está no Gênesis, que é conhecido, imagine as outras histórias da Bíblia”.
ÉPOCA – O senhor leu apenas o que os cristãos chamam de Velho Testamento. Pretende ler o Novo Testamento?
Plotz – Não vou fazer isso porque sou judeu, e o Novo Testamento não é minha tradição, minha religião. O Velho Testamento é meu livro, e senti que podia me divertir com ele, contar piadas, fazer perguntas.
ÉPOCA – O senhor não faria o mesmo trabalho com outros livros sagrados, como o Corão, por exemplo?
Plotz – Não estou dizendo que é impossível alguém ler o Corão ou outro livro e escrever sobre ele, mas eu não gostaria de ser essa pessoa. Seria um projeto totalmente diferente. ÉPOCA – O senhor defendeu em um artigo recente a leitura da Bíblia em colégios e universidades. Por quê? Plotz – Não acho possível ser uma pessoa verdadeiramente educada sem ter lido a Bíblia. Ela é a fonte original para muitos aspectos de nossa civilização e nossa cultura. Há milhares de palavras e frases que estão na Bíblia e que usamos atualmente. Algumas leis básicas, como o direito de proteger a propriedade e a forma de tratar as outras pessoas, também estão lá. Hoje em dia, a Bíblia ainda é usada na política, como forma de justificar ataques a adversários e grupos específicos, como os homossexuais. Não ler a Bíblia é quase como ser cego. Você fica ignorante sobre como sua civilização se tornou o que é. É como para os americanos não ter lido Shakespeare ou a Constituição. Eu sei que, por ser um livro religioso, não será ensinado nas escolas, mas as pessoas teriam uma visão melhor do mundo se fossem incentivadas a ler os livros que estão na base da criação de suas civilizações. "Perturbou-me o fato de Deus pedir e exigir o assassinato de inocentes. Por que queremos um Deus que deseja matar crianças inocentes?"
ÉPOCA – O que o senhor pensava sobre Deus antes de ler a Bíblia?
O que mudou? Plotz – Antes, eu era agnóstico. Esperava que existisse um Deus, gostava d’Ele, mas não pensava muito nisso. Mas o Deus do Velho Testamento é perverso, mata muita gente sem razão, não é misericordioso, amoroso, não tem compaixão. É muito perturbador pensar que esse Deus esteja cuidando de nós. Fiquei muito bravo depois de ler e passei a desejar que exista algo melhor.
ÉPOCA – O que mais o perturbou?
Plotz – Foi o fato de Deus pedir e exigir o assassinato de pessoas inocentes. Ele diz que nós devemos matar inocentes para conquistar terras ou para livrá-las de impurezas. É horrível. Claro que as pessoas cometem crimes terríveis contra as outras, mas a ideia de que Deus tenha pedido isso me deixa espantado. Por que queremos um Deus que deseja matar crianças inocentes? Essa é uma pergunta que, para mim, não tem resposta.
ÉPOCA – E o que foi mais engraçado?
Plotz – Foi o fato de Deus ter uma obsessão por homens carecas. Ele afirma que homens carecas são puros e diz várias vezes para rasparem a cabeça e o corpo. Há até um episódio em que alguns garotos caçoam do profeta Eliseu chamando-o de careca. Em seguida, um urso aparece e mata 42 crianças por causa disso.
ÉPOCA – Hoje em dia, muitas pessoas criticam o islã por causa de interpretações literais dos textos sagrados. O que aconteceria se a Bíblia fosse interpretada literalmente?
Plotz – Seria um pesadelo, uma catástrofe. Estaríamos apedrejando as pessoas até a morte, matando quem trabalhasse nos dias de descanso e quem cometesse qualquer infração sexual. O mundo seria totalmente segregado entre homens e mulheres, que estariam impuras quando menstruadas. Simplesmente não faz sentido nenhum. Qualquer um percebe que você não pode seguir tudo o que está lá.
ÉPOCA – O senhor recebeu críticas de leitores irritados?
Plotz – Algumas. Há ateus que afirmam: “Como você é estúpido por ler esse livro mentiroso”. E há os religiosos fervorosos que dizem que eu não devo questionar Deus. Mas o que foi extraordinário ao fazer o livro foi o fato de que há muita tolerância religiosa por aí. Aos olhos de muitos judeus e cristãos, eu estava cometendo erros teológicos e falando coisas estúpidas, mas eles respeitaram meu direito de chegar às minhas próprias conclusões.
ÉPOCA – Você acha que seu livro pode substituir a leitura da Bíblia?
Plotz – Acho! E a melhor parte é que você pode deixá-lo no banheiro sem se sentir culpado. Na verdade, ao ler o Good book você terá uma educação bíblica divertida e ainda vai economizar tempo, porque ele é muito menor que a Bíblia.

''O mundo que criamos é insustentável, sabemos que não podemos continuar como estamos''

Um dos sociólogos mais influentes da atualidade, Anthony Giddens, 71, afirma que a crise financeira global vai redefinir radicalmente a sociedade em que vivemos, mas "muito ainda depende de um fenômeno em cujas mãos ainda estamos - o mercado".
Para ilustrar sua opinião, reforça: "Toda vez que uma decisão é tomada, as pessoas querem saber como os mercados vão reagir". A reunião do G20 na próxima quinta, em Londres, produzirá um acordo -ainda que "de fachada"-, porque os mercados e as pessoas precisam ser "tranquilizados", diz ele. Giddens avalia que "estamos no estágio inicial de descobrir o que seria um novo modelo de capitalismo responsável e global" e prevê uma convergência no debate sobre a grande recessão e os desafios da mudança climática. A entrevista é de Pedro Dias Leite e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 29-03-2009. "Em ambos os casos, estamos falando de um papel forte para o Estado e de mais regulação, de um planejamento de mais longo prazo que não tivemos no passado, de controlar mecanismos de mercado mais efetivamente do que nos últimos 30 anos pelo menos, de mais inovações tecnológicas." Principal ideólogo da Terceira Via, a busca de um caminho alternativo entre o liberalismo radical e as tendências estatizantes tradicionais da social-democracia, Giddens agora volta sua atenção para o tema do aquecimento global, em livro lançado na semana passada: "The Politics of Climate Change" (A Política de Mudança Climática, Polity Press, 256 págs.). Ex-reitor da London School of Economics, lorde Giddens defende que os países ricos têm de arcar com 95% dos custos da luta contra o aquecimento global pelos próximos anos, pois "não é moralmente correto nem seria factível na prática impedir os países em desenvolvimento de se desenvolverem". Por outro lado, o sociólogo cobra o fim da "atitude passiva" dos países em desenvolvimento em relação ao tema e enxerga o Brasil exercendo um papel de liderança, como mediador entre EUA, China e União Europeia. Eis a entrevista.
Em seu livro, o sr. lança o "paradoxo de Giddens": uma vez que os perigos do aquecimento global não são visíveis no dia a dia, apesar de parecerem terríveis, as pessoas não irão agir; contudo, esperar até que se tornem visíveis e sérios para então tomar uma atitude será tarde demais. Como lidar com isso? Eu aplico o paradoxo de Giddens especialmente aos países desenvolvidos, porque são eles que têm que tomar a liderança. Por exemplo, para alguém que caminha pelas ruas de Londres, as enchentes de Bangladesh não são algo que afete o dia a dia das pessoas. Para lidar com isso, é preciso romper com as estratégias do passado. As coisas que têm saído pré-Copenhague [em dezembro haverá uma conferência na capital dinamarquesa para definir o mundo pós-protocolo de Kyoto], com os cientistas dizendo que "é muito pior do que pensávamos", passam longe da realidade das pessoas nas ruas. Muitas questões que parecem apocalípticas, que saem nos jornais e na mídia, são iguais a filmes que as pessoas não conseguem distinguir da realidade. É bem difícil esperar que as pessoas comecem a agir com base nisso. Por isso proponho uma reorganização fundamental do pensamento, para focar muito mais nos investimentos, para ver os lados positivos do aquecimento global. Podemos criar uma genuína economia verde, quebrar a dependência do Oriente Médio, garantir segurança energética e levar a uma vida melhor por meio dessas transformações. Dizer para os empresários que eles podem se tornar mais competitivos. Não sou contra regulação ou metas para reduzir a emissão de carbono. Na verdade, sou a favor dessas coisas, mas não acho que elas possam mobilizar as pessoas. Olhe para o tipo de abordagem que o presidente [dos EUA, Barack] Obama produziu, é muito diferente de todos, é muito mais afirmativa. Não sabemos se vai ter sucesso, claro, porque estamos falando aqui em mudar o "estilo de vida americano". No entanto ele fala disso como um projeto inspirador, que tem muito mais ressonância.
O sr. fala que o movimento verde sequestrou o debate sobre mudança climática e que é preciso sair dessa armadilha. Como assim? O movimento verde começou da metade para o final do século XIX, fortemente influenciado pela ideia romântica de uma crítica do industrialismo, a nostalgia de uma terra que não havia sido modificada pelas indústrias. Sua força motriz era a conservação, a proteção da natureza e do ambiente. Realmente deveríamos ter deixado a natureza em paz, só que agora é tarde demais, e maior intervenção na natureza será absolutamente necessária. A mudança climática é muito diferente das preocupações tradicionais dos verdes e, para lidar com ela, temos de nos livrar de alguns dos preconceitos que os verdes -não todos, mas alguns- têm, de não interferir muito na natureza, de um princípio da precaução. O caminho para lidar com a mudança climática deve ser de ousadia, inovação, o máximo uso da tecnologia. Não quero descartar completamente o movimento verde, pois tem um importante papel de trazer esses assuntos para a agenda, e isso tem valor. No entanto, se você olhar para o manifesto dos verdes globais, muito pouca coisa tem a ver com mudança climática. E um dos problemas é que alguns grupos se veem como operando fora da política, extremamente críticos das atividades das grandes corporações. Mas o vital agora para a mudança climática é trazer para o centro do debate algo que 60%, 70% da população possa compreender.
Num artigo recente, o sr. mencionou que a crise financeira global, seus desdobramentos e o desafio de como lidar com a mudança climática levaram ao fim do fim da história. Por quê? [Francis] Fukuyama inventou a versão moderna da frase do fim da história, e o que ele quis dizer foi que chegamos a uma fase da história em que não podemos ver nada diferente do mundo em que vivemos: de um lado, a democracia parlamentarista e, de outro, o sistema capitalista, com competição e mercados abertos. Acho que não se pode mais tomar essa posição como aceitável, pois uma sociedade de baixo carbono provavelmente mudará bastante o comportamento das pessoas, o modo como veem o mundo. Pode envolver uma crítica forte de viver num tipo de sociedade baseada no consumo, sem outros valores. O que quis dizer foi que temos de nos preparar para pensar novamente de modo muito radical lá na frente. É claro que, agora, temos de lidar com o mundo como o vemos. Mas sou a favor de um retorno parcial a certo utopismo. O mundo que criamos é insustentável, sabemos que não podemos continuar como estamos.
O sr. fala que as nações em desenvolvimento deveriam ser autorizadas a emitir mais carbono no curto prazo, mas isso não funciona. Os EUA e a União Europeia, com medo de perderem competitividade, já disseram que isso é inaceitável. Como resolver essa equação? Não podemos impedir os países em desenvolvimento de se desenvolverem. Não seria moralmente correto nem seria factível, na prática. Parte desse desenvolvimento tende a depender pesadamente de combustíveis fósseis e, logo, de emissões de carbono. É por isso que os países já industrializados têm de arcar com 95% do fardo pelos próximos 10, 15, 20 anos até, para reduzir as emissões. Por outro lado, é preciso que o mundo em desenvolvimento assuma um papel importante, não mais a posição passiva, de que isso "não tem nada a ver com a gente". Mas, no caminho, precisamos de avanços tecnológicos e de grandes áreas daquilo que chamo de "convergência econômica e convergência política", para que os países em desenvolvimento sigam um caminho diferente do que o que estão seguindo agora. Em primeiro lugar, estamos atrás de avanços tecnológicos que sejam capazes de levar os países em desenvolvimento a pular algumas etapas de desenvolvimento. Em segundo lugar, estamos procurando vários acordos bilaterais, não apenas a conferência de Copenhague, especialmente entre EUA e China, que produzem quase 50% das emissões. Idealmente, é necessário algum acordo entre os dois, como os EUA permitirem acesso a inovações tecnológicas, com a suspensão de patentes, em troca de algum tipo de concessão da China para os EUA. Mas isso é determinado politicamente. Se não há como repetir o modelo de desenvolvimento, temos de encontrar avanços. Até agora, não conseguimos. A China ainda está fazendo usinas de carvão. Os políticos se sentem muito confortáveis, prometendo cortar as emissões em 80% até 2050, mas não ficam nem um pouco felizes quando você diz que precisam começar agora. Existe muita retórica vazia nesse debate e temos de ver como superar isso para que os acordos sejam atingidos. Temos de olhar para o que pode ser feito, de modo a produzir uma combinação de competitividade e mudança tecnológica. Estou convencido de que países que seguirem o caminho tradicional de desenvolvimento industrial não serão competitivos no médio prazo.
Como o sr. vê o papel do Brasil nesse debate sobre o clima? O que o país deveria fazer? Vejo o Brasil como um negociador ou uma terceira parte nas negociações entre os EUA, a União Europeia e a China. Vejo o Brasil capaz de ter uma liderança entre os países de industrialização recente para levar os outros países a uma posição decente. O país pode ter um papel bastante importante, e seria desejável se de fato o exercesse. Mas isso também depende de uma liderança política forte.
Estamos vivendo a pior crise econômica desde a Grande Depressão. Quais serão seus efeitos? Depende de em que nível você está falando. Nos próximos dois anos e no momento, ninguém sabe realmente o que acontecerá, independentemente de suas credenciais acadêmicas. Se haverá declínio contínuo com desemprego crescente ou se, nesse período, haverá algum tipo de recuperação, pelo menos em algumas áreas. Ambos são possíveis. Muito depende de um fenômeno do qual ainda estamos nas mãos: o mercado. Toda vez que uma decisão é tomada, as pessoas querem saber como os mercados irão reagir. Ainda estamos nas mãos do mercado global, para o bem e para o mal. No médio prazo, pessoas como eu deveriam estar pensando em um modelo de capitalismo responsável. Pois existe uma convergência entre o debate sobre mudanças climáticas e a recessão, por razões óbvias. Nos dois casos, estamos falando de um papel forte do Estado e de mais regulação, de um planejamento de longo prazo que não houve antes, de controlar mecanismos de mercado de modo mais efetivo do que foi feito nos últimos 30 anos, de inovações tecnológicas. Mas ainda estamos no estágio inicial de descobrir o que seria um novo modelo de capitalismo responsável e global. A crise é mundial, não importa o que a Europa ou os EUA façam. Essa é uma questão em aberto, pois os países não têm sido bons em chegar a acordos, mesmo quando é de seu interesse. A Rodada Doha e a Organização Mundial do Comércio são exemplos perfeitos.
Muitos teóricos têm falado em "desglobalização", como no caso do aumento do protecionismo. A globalização é um termo que abarca muitas mudanças, e é preciso quebrá-lo em várias partes. Há alguns aspectos muito improváveis de serem revertidos, como a revolução das comunicações, uma das maiores forças da globalização. Goste-se ou não, isso ainda será o futuro: o mundo estará integrado imediatamente pela tecnologia e quase certamente isso continuará a ter avanços. Nesse sentido, a globalização está aqui para ficar. Mas, quando se fala em livre mercado, é diferente. Alguns aspectos podem ser revertidos, isso já aconteceu antes, e, em uma situação de recessão, as pessoas tendem a se voltar para seus países. Mas, se sabemos alguma coisa de teoria econômica, é que protecionismo, no final, prejudica sua própria economia. Nenhuma economia que se isolou do mercado global conseguiu realmente prosperar. Pessoalmente, não acho que o protecionismo voltará, como nos anos 1930.
Quais são suas expectativas para o encontro do G20? Acho que tem mais chances de chegar a um acordo do que a imprensa diz, pois esta é a primeira vez em que houve tal grau de reconhecimento da natureza global da crise. Poderá haver acordos para aumentar a transparência ou para expandir o papel do FMI. Mas será preciso verificar em que extensão serão implementadas no mundo real. O que certamente ocorrerá será um acordo de fachada. Haverá a apresentação de um acordo -ele de fato ocorrendo ou não-, pois todo mundo reconhece que precisamos tranquilizar o público e o mercado -ele de novo!
Em uma palestra, o sr. afirmou que o clima do mundo vai mudar irremediavelmente, mas não vê isso como uma ameaça iminente. O que disse é que o debate quanto à mudança climática é sobre riscos e sobre como analisar esse riscos. No momento existem várias formas de medição de risco feitas pelos cientistas, e o consenso parece ser que a mudança climática é mais iminente e mais perigosa do que pensávamos, mas não está claro completamente o que querem dizer com isso. É sensato dizer que as emissões na atmosfera já estão produzindo efeitos, mas, se se está falando de 2050, quem sabe dizer o que poderemos fazer para responder a isso? Existem muitas divergências na comunidade científica sobre quão iminentes essas coisas são, e posso dizer isso porque passei os últimos dois anos estudando o tema. É muito importante para países como o Brasil, com algumas condições climáticas violentas, pensar em se adaptar a esse novo contexto, fazer estudos de vulnerabilidade, encontrar meios de convergência para procedimentos que ajudarão em caso de mudanças significativas no clima. Por exemplo, proteção contra enchentes, ao mesmo tempo melhorando práticas de agricultura. Existe uma boa área de desconhecido nos próximos 20, 30 anos. Quem sabe o mundo possa ter um mecanismo de adaptação sozinho, talvez a própria natureza produza uma solução. Mas o que sabemos até agora é que, uma vez que as emissões forem lançadas na atmosfera, não sabemos como tirá-las, e os principais gases do efeito estufa podem permanecer lá por 400 anos. Há cientistas que já conseguem [retirar os gases da atmosfera] em pequena escala, mas não sabemos se será possível em grande escala. As pessoas estão muito confusas, apesar da grande educação formal.

''A esquerda não pode ser um mero salva-vidas do capitalismo''. Entrevista especial com James Petras

''A esquerda não pode ser um mero salva-vidas do capitalismo''.
Entrevista especial com James Petras Mudanças de posicionamento são cruciais nesse momento, mas como propor algo diferente se a maioria das organizações de esquerda se tornaram sócias do capitalismo? E, ao mesmo tempo, movimentos sociais não apresentam o caráter revolucionário de décadas passadas? Ao se questionar sobre esses dilemas, o sociólogo estadunidense James Petras afirma que estamos diante de um grande paradoxo. Em conversa telefônica com a IHU On-Line, ele diz que “aprofunda-se o questionamento dos fracassos do capitalismo e dos destruidores do meio ambiente, ao mesmo tempo em que não há o surgimento de uma esquerda alternativa claramente articulada”. Ao comentar a relutância da esquerda frente aos problemas ambientais do Planeta, Petras é incisivo e diz que a falta de integração da esquerda não se dá apenas com a questão ambiental. E exemplifica: “Não existe um movimento político para os colonos sem terra, nem existe um movimento para os desempregados e para o número crescente de trabalhadores depauperados”. Para ele, essas questões representam “um fracasso em conseguir livrar-se das parcerias entre capital e trabalho, vinculações entre cientistas e seminários”. A esquerda precisa adotar uma posição estratégia, aconselha. “Ela não deveria encarar se a si própria como mero salva-vidas do capitalismo, onde o governo não é apenas um parceiro de empresas capitalistas falidas, numa espécie de keynesianismo bastardo.” Precisamos, continua, “pensar sobre a reorganização da indústria com base justamente nas forças produtivas, que são trabalhadoras, engenheiros, cientistas, que projetam produtos para consumo doméstico e, caso necessário, para comércio regional, se é que isto é possível”. Relembrando as teorias de Marx e Keynes, ele propõe uma nova discussão. O debate hoje não é mais sobre o Estado e o mercado, assegura, “mas sobre o papel que o Estado deveria desempenhar ao substituir ou restaurar o mercado, contra aqueles que encaram o Estado como um instrumento para o poder social dos trabalhadores e para reorganizar a economia”. E dispara: “Penso que voltamos à seguinte posição: não é uma questão de intervenção do Estado em si, mas de intervenção do Estado em favor de qual projeto econômico?”. James Petras é professor emérito de Sociologia na Universidade Binghamton, em Nova York, e desenvolve um trabalho especial com o movimento dos Sem Terras. Cursou a graduação na Universidade de Boston e o doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley. É autor de mais de 62 livros publicados em 29 línguas, entre os quais citamos A mudança social na América Latina (2000), Globalização: O imperialismo do século XXI (2001), Sistema em crise (2003) e Multinacionais Trial (2006). Entre 1973 e 1976, foi membro do Tribunal Bertrand Russel sobre a repressão na América Latina. Atualmente, escreve uma coluna semanal do jornal mexicano, La Jornada. Márcia Junges e Patricia Fachin
Tradução Sander Jeanne e Walter Schlupp Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a diferença entre a esquerda simbólica, à qual o senhor se refere, e a esquerda real? James Petras - Esquerda simbólica é essencialmente uma imagem da política, em grande parte sustentada no exterior, que identifica o Partido Democrata, intelectuais e outras pessoas que são conhecidas como progressistas nos EUA. Mas, na verdade, historicamente ambos os partidos (o Democrata e o Republicano) não se distinguiram um do outro, ao menos em um número enorme de questões, referentes à guerra, à economia, propriedade, à primazia do capitalismo sobre o bem-estar social etc. A esquerda intelectual nos EUA, em grande parte, é mais acadêmica e não exerce papel relevante no tocante à política de massas. Acredito que uma das distinções a ser feita é entre intelectuais e acadêmicos. Nos EUA, o divórcio entre intelectuais e movimentos de massa é mais forte, porque em grande parte o movimento negro desapareceu enquanto movimento, tendo sido meio que encurralado pelos políticos do Partido Democrata. Os sindicatos praticamente não podem ser distinguidos de organizações filiadas às empresas. A liderança nacional dos sindicatos tem rendimentos comparáveis a executivos empresariais, entre US$ 300 e 600 mil por ano; seus quadros ganham mais de US$100 mil por ano e só representam 7% do setor privado, sendo que 93% dos trabalhadores americanos não estão filiados a qualquer coisa comparável a um sindicato. Muitos sindicatos do setor público e do setor privado não têm o direito de entrar em greve, e muitos recentemente assinaram dois acordos entre os representantes dos sindicatos e o Estado. Obama progressista? Percebo nos EUA um vácuo social, onde há acadêmicos críticos operando, mas numa posição muito limitada para poder apresentar uma alternativa política real. Eles simbolizam o que poderia vir a ser uma corrente de opinião da esquerda, se tivesse conexão com alguma luta em andamento. Tudo isso, hoje, se traduz no fato de que temos o presidente Obama realmente com base no fato da cor da sua pele. Ele tem sido chamado de progressista meramente por causa da sua retórica, ou retórica aparente. Em se analisando detidamente a sua retórica, nada ali sugere que ele represente qualquer tipo de política redistributiva, qualquer rompimento com as organizações financeiras especulativas de peso. Tudo aponta para enormes destinações de verbas para bancos insolventes – estou falando de mais de US$ 750 bilhões, e daí para cima. Só uma instituição financeira, a seguradora AIG, que está totalmente insolvente, isto é, cujas dívidas ultrapassam seus ativos, recebeu US$ 170 bilhões! A mídia mundial descreve isso como um governo progressista. O fato de Obama ser negro foi celebrado nos EUA como grande avanço social. Quero sublinhar por que isto é algo puramente simbólico: as taxas de desemprego dos afroamericanos é o dobro daquela dos trabalhadores brancos, em todas as categorias. Particularmente entre jovens negros, a taxa de desemprego está entre 40 e 50%. Isto é o triplo da taxa de desemprego de trabalhadores brancos. Mesmo assim, não há preocupação alguma do governo de Obama em sequer mencionar esse problema, muito menos em intervir de alguma maneira positiva. Isso mostra que ele está ignorando completamente a questão. Por outro lado, ocorrem referências constantes sobre a fidelidade de Obama para com Israel, seus vínculos com o povo israelense. Em outras palavras: o que temos aí é um presidente mais judeu do que afroamericano.
IHU On-Line - Considerando a crise financeira internacional, como o senhor encara as ações dos diferentes grupos de esquerda na América Latina? Quais são as perspectivas da América Latina em vista dessa crise? James Petras - Esta é realmente uma pergunta de grande alcance. Claramente, o tremendo declínio no mercado de exportações afetará a América Latina, não como um todo. As limitações de créditos, financiamentos e a descapitalização das subsidiárias no continente trarão efeitos. Mas é necessário considerar que a recessão mundial, que está virando depressão, irá gerar impactos diferentes nos países latino-americanos. É importante observar as condições institucionais, econômicas e as lideranças políticas dos países, para notar como a crise irá afetar cada um deles. Obviamente, países menos diversificados, dependentes da exportação, sofrerão mais que países com mercado doméstico profundo, com economia diversificada e reservas acumuladas. Ao menos na primeira fase da crise, os países com grandes reservas podem começar com seus pacotes de estímulo, como está acontecendo no Brasil, Argentina e Chile. Porém, essas são vantagens passageiras, ou seja, medidas que podem desacelerar o início da crise econômica, mas que não mudam os aspectos fundamentais. Por aspectos fundamentais, entendo o fato de que o sistema de produção no Brasil, particularmente de automóveis, além dos bens primários e setor de transportes, será profundamente afetado.
A crise no Brasil Vejo que o desemprego no Brasil aumentará para níveis recordes no próximo ano e meio a dois anos. Penso que as alegações de Lula de que esta crise não terá efeito maior sobre o país são falsas. Ele transformou o Brasil num gigantesco empório de exportação, devastou o setor agrícola de pequenos produtores, ignorou os sem-terra, que teriam criado uma economia interna mais dinâmica, para favorecer a soja, a Vale do Rio Doce e todos os setores de exportação que se transformaram no pivô da economia. Agora, ele e o Brasil pagarão um preço enorme por estarem tão integrados num mercado internacional vulnerável e instável. O Brasil será profundamente afetado pela crise financeira. Sei que o país tem mais de US$ 250 bilhões em reservas dos superávits orçamentários dos anos de governo de Lula e Fernando Henrique Cardoso, mas elas acabarão sendo gastas. Seja como for, o financiamento da falta de liquidez não é uma solução a longo prazo, nem uma solução estrutural; é simplesmente ficar injetando dinheiro para protelar o colapso iminente da economia. O Brasil e a Argentina têm sido menos afetados porque tiveram crises anteriores, o que limitou sua integração financeira no sistema especulativo dos EUA. O Brasil tem enorme dívida interna, o que muitos ignoram, porque estão observando alguma redução na dívida externa em função da exportação. Boa parte da dívida interna brasileira foi criada em função de interesses financeiros fora do Brasil. A crise do acúmulo Uma coisa que deveríamos saber é que, como as matrizes nos países de origem estão em profunda crise, começaram a descapitalizar as suas subsidiárias nos outros países. A GM é um exemplo disso. A GM, a Ford, principalmente a Chrysler estão indo à falência. Elas não têm capacidade para superar suas perdas de 100 bilhões de dólares. Estão buscando mais ajuda do governo, e já receberam 14 bilhões. O colapso dessas multinacionais levantou a questão, em muitos países, se as economias nacionais e os governos estão dispostos a comprar essas fábricas e transformá-las em algum tipo de unidades de produção autônomas, ou se experimentarão os efeitos posteriores do colapso da indústria americana de transportes. A economia americana desencadeou esta crise financeira, mas a crise mundial é uma crise de acúmulo excessivo de lucros mediante a exploração excessiva, das finanças, do crédito etc. Isto teve efeitos tremendos sobre o setor financeiro, na busca de lucros para manter as taxas originais do processo de acumulação. A crise financeira estourou primeiro nos EUA porque o colapso financeiro da América Latina, antes disso, tinha imposto certos controles sobre o sistema financeiro, o que limitou sua capacidade de se ligar aos ativos tóxicos, subprime, hipotecas e outros meios especulativos. Mesmo assim, na medida em que a crise se desloca das finanças para a produção e para o comércio, é inevitável a futura contração das economias na América Latina, mais tarde que nos EUA. Mas, em última análise, a depressão começará no final de 2009, senão antes, de forma igualmente profunda ou mais profunda.
IHU On-Line - A esquerda também está passando por uma crise? E, no seu entender, qual seria a razão para essa falta de direção ou mudança na esquerda mundial?
James Petras - Temos um fenômeno que emergiu na América Latina no início desta década: movimentos de massa que iniciaram nos anos 90 e culminaram em numerosas insurreições e derrotas dos neoliberais, desacreditando o neoliberalismo diante de movimentos de massa, seja na forma de insurreições como na Argentina, Bolívia, Equador, seja na forma de derrotas eleitorais, ou como na Venezuela, que, além de eleitoral, também foi contragolpe. Mas o resultado final não foi uma transformação básica, porque esses movimentos foram incapazes de criar suas próprias alternativas. Então, o que emerge é um híbrido, que adotou algumas características de massa dos movimentos sociais radicais, mas que se adaptou às estruturas econômicas existentes, inclusive provocando tremendo crescimento e ênfase sobre o crescimento do setor primário. Tivemos enormes investimentos em produtos agrominerais na Argentina, Brasil, Uruguai, Bolívia. Todos esses assim chamados governos de centro-esquerda tocaram esses booms de commodities, sem mudar a renda, mudar a propriedade, ou dinamizar as economias internas. Essencialmente, tomaram uma parte da riqueza acrescentada e criaram programas contra a pobreza, programas de compensação. Mas as estruturas básicas do passado não mudaram. Lula, em particular, tornou-se um dos maiores defensores do livre comércio na América do Norte, inclusive criticando Bush por não ser tão aberto, abrindo os mercados com comércio totalmente livre. Percebo que esses assim chamados governos de centro-esquerda agora estão enfrentando as consequências, na medida em que ganharam terreno com os booms de commodities e com o crescimento irrestrito do capitalismo. Agora, o outro lado da medalha, é que eles irão sentir o impacto em cheio do declínio dos mercados mundiais e dos preços, bem como do comércio; não demonstraram quaisquer inovações estruturais.
Nacionalização para quem ou para qual finalidade? O que estamos vendo e vamos ver é o crescimento da estatização. Mas não se trata de uma estatização progressista. Haverá um crescimento vasto do papel do Estado, direcionado para canalizar recursos públicos para salvar o empreendimento privado em colapso. Veremos, inclusive, uma espécie de nacionalização de empresas falidas. Essa nacionalização será muito importante, porque não terá um caráter progressista. Essencialmente, é o dinheiro público que irá assumir as dívidas privadas de corporações, a restauração da sua saúde econômica ou daquilo que eles consideram ser saúde econômica. Então, elas voltam para o capital privado assim que possam ter certeza de ter uma taxa de retorno. Veremos, portanto, um vasto crescimento da intervenção econômica pelo Estado, inclusive com a nacionalização e enorme gasto de impostos. Tudo isto está no manual tradicional dos esquerdistas considerados progressistas. Mas, se não especificarmos “nacionalização para quem ou para qual finalidade?”, perderemos de vista o fato de que nacionalizações são tentativas do Estado, no sentido de colocar um piso no colapso do capitalismo para que, em algum ponto no futuro, se restaurem as classes dominantes em sua posição hegemônica. Precisamos encarar isto: esta é a maior depressão mundial desde a década de 30. Recém está começando. De cada seis americanos, um está desempregado ou com redução de carga horária. Esse número irá aumentar para 25% até o final do ano. Portanto, estamos numa situação em que o capitalismo, em resultado de suas próprias operações de mercado, está experimentando o seu pior colapso e sua maior taxa de falências em 70 anos. É aí que o Estado precisa desempenhar um papel essencial. Mas o papel do Estado (que estamos assistindo) não é o de canalizar dinheiro para empresas de propriedade pública visando empregos e salários para os trabalhadores, mas direcioná-lo para capitalistas que fracassaram no mercado competitivo.
IHU On-Line - Quais são as propostas da esquerda em vista deste cenário de catástrofe econômica, social e ecológica? Quais parâmetros deveriam orientar as ações de uma nova esquerda?
James Petras - Uma das propostas é frear o desemprego. A esquerda não pode permitir que empresa alguma demita trabalhadores, transforme programas de estímulo de gastos de renda em investimentos sociais de grande porte, grandes investimentos produtivos, grandes projetos de emprego, grandes obras públicas pagando salários ao nível de sindicalizados. A meu ver, a finalidade principal não é colocar recursos nas mãos de capitalistas na esperança de que eles vão investir o dinheiro e gerar empregos. É o inverso: colocar dinheiro na renda e no emprego dos trabalhadores, independentemente dos fracassos do capitalismo. Devemos concentrar os programas no sentido de que governo seja proprietário, em grande escala e a longo prazo, do sistema produtivo e financeiro. Eles fracassaram, destruindo a produção e as finanças. Não podemos sustentar perdedores, fracassos. Precisamos começar da frente. Não podemos construir em cima de sistemas quebrados. A noção de botar um remendo aqui, estimular ali, está errada. Os trabalhadores não podem permitir desemprego maciço que irá derrubar os salários ainda mais, e levar à concentração de algumas poucas empresas que conseguem resistir à tempestade.
Esquerda brasileira Temos um lugar para grandes gastos do governo, mas não subsidiando as perdas do capitalismo; trata-se de levantar o padrão de vida e a demanda dentro do país. Num lugar como o Brasil, isto significa investimentos em grande escala no desenvolvimento da agricultura familiar no interior, para criar demanda doméstica por suprimentos. Significa, ao mesmo tempo, assumir as indústrias falidas no setor industrial e não simplesmente proporcionar-lhes bilhões de dólares de subsídios e subsidiar empréstimos. O governo declara que a finalidade é criar empregos e abrir o crédito; isto canaliza para empresas que não irão investir, se não enxergarem um mercado, porque a demanda está baixa. Para gerar demanda, é preciso focalizar a renda diretamente nas mãos dos consumidores. Se você quiser gerar produção, você não irá subsidiar empresas capitalistas improdutivas e inviáveis. Esta é uma posição estratégica que a esquerda necessita adotar. Ela não deveria encarar-se a si própria como mero salva-vidas do capitalismo, onde o governo não é apenas um parceiro de empresas capitalistas falidas, numa espécie de keynesianismo bastardo. O que precisamos fazer agora é pensar sobre a reorganização da indústria com base justamente nas forças produtivas, que são trabalhadores, engenheiros, cientistas, que projetam produtos para consumo doméstico e, caso necessário, para comércio regional, se é que isto é possível. Subordinação ao mercado externo Mas a orientação do Brasil nos últimos 40 anos, principalmente com FHC e Lula, tem sido totalmente subordinada ao mercado externo. O crédito tem sido usado para facilitar gigantescas emissões de títulos [bond floats] que beneficiam coupon clippers. É necessário demolir toda essa concepção e conceber uma nova estratégia, principalmente num país como o Brasil e seus vizinhos. O Brasil é um continente, não há absolutamente razão alguma para seu mercado interno ser tremendamente subdesenvolvido e inexplorado. Há um excedente gigantesco de mão-de-obra improdutiva, tanto na área rural quanto nas cidades. O país tem os recursos humanos, o mercado, os recursos naturais e complementaridades com países vizinhos, como a Bolívia. Não há absolutamente razão objetiva alguma para continuar com um modelo fracassado de capitalismo baseado na exportação, que demonstrou sua incapacidade de desempenhar as funções básicas de uma economia, que é emprestar, produzir empregos – ele fracassou, e a esquerda precisa dizer isso e fazer um novo começo com uma nova concepção estratégica de mercados.
IHU On-Line – De que maneira o colapso do capitalismo alterou as relações de trabalho e aumentou as disparidades entre as classes sociais? Até que ponto a exclusão social tende a aumentar? James Petras – O Brasil é marcado por uma longa guerra de classes durante os últimos vinte anos, a qual tomou diferentes formas. Nos últimos anos, se acentuou o uso de mecanismos corporativos da colaboração entre capital, Estado e sindicato, que basicamente neutralizou os sindicatos como mecanismos para engendrar alternativas políticas e econômicas de grande escala, reduzindo-os mais ou menos à função de fazer a barganha coletiva de salários e outras questões. Na minha opinião, isto restringiu seriamente a capacidade de o trabalho desafiar o capital em todas as suas manifestações. Ao mesmo tempo, ocorre um desgaste dos sindicatos pela transferência de fábricas para regiões que não têm sindicatos, explorando o gigantesco excedente populacional em áreas não-industriais, não-tradicionais. E isto levou ao declínio do número absoluto de trabalhadores organizados ou ligados a qualquer tipo de luta social. Reflexos no mundo do trabalho Esta crise econômica, ao menos no primeiro momento, irá criar enorme excedente de mão-de-obra, e, caso não se encontre um mecanismo para integrar trabalhadores desempregados num movimento social, estes vão servir como meio de pressão para reduzir ainda mais os salários. Trabalhadores nunca são marginalizados. Eles são reduzidos em sua capacidade de barganha, têm perdas absolutas de renda, mas, do ponto de vista de reprodução do lucro, o tamanho do excedente de mão-de-obra está relacionado com o declínio de renda e de serviços sociais para os trabalhadores. Isso tem um papel decisivo. A marginalização da renda não significa a dissociação sistêmica dos trabalhadores em relação às operações do sistema capitalista. Acredito que o termo “exclusão social”, de certa forma, dá a entender que eles deixam de ser funcionais ou operacionais no sistema capitalista. Quanto maior for o excedente de mão-de-obra, maior será a competição por empregos entre trabalhadores; quanto maior a competição, mais baixos ficam os salários, mais opções terá o capital para negociar contratos. Percebo que a acumulação de trabalhadores desempregados, sub-empregados e com emprego parcial, ao menos até se organizarem como classe ou subclasse reconhecível, é encorajada pelos empregadores, que buscam o emprego rotativo, contratos de seis meses que inibem qualquer tipo de solidariedade. Este tipo de exclusão social eu chamaria de rompimento de solidariedade. É um elemento crucial particularmente nesta época de depressão econômica, até que aconteça algo como na Argentina entre 1999 e 2002, quando grupos maciços de trabalhadores desempregados paralisaram os sistemas de transporte e as estradas de rodagem, comprometendo seriamente a realização de lucros pelo bloqueio do transporte de mercadorias entre mercados. A não ser que aconteça algo assim, os trabalhadores desempregados serão instrumento perfeito para se tentar impor a recuperação do capitalismo nas costas dos trabalhadores. É preciso aumentar a mão-de-obra excedente, a massa de desempregados, os sub-empregados, aqueles que enfrentam concorrência no portão das fábricas e escritórios. Cada vez mais, veremos o desenvolvimento do trabalho temporário, isto é, trabalhadores sem contratos fixos; isto será colocado como flexibilidade da mão-de-obra para facilitar o emprego. Mas em aspecto algum este será um resultado progressista, porque reverte décadas de organização social.
IHU On-Line - Que mudança o senhor visualiza no capitalismo? James Petras – O que está acontecendo são gigantescos gastos do governo para dívidas, os quais vão ser sustentados mediante aumento de impostos e cortes de programas sociais nos orçamentos para subsidiar a recuperação capitalista. Vejo um enorme retrocesso nas receitas e nos gastos do governo, ou colocando em outros termos, entre os ganhos corporativos e os salários corporativos. Veremos imenso crescimento do abismo à medida que avança a crise. Não tenho absolutamente dúvida alguma em relação ao fato de que um governo que assume dívidas enormes, nas quais o pagamento dos juros soma um quinto ou um sexto do orçamento federal, não terá espaço algum para encarar despesas sociais, para aumentar ou mesmo manter programas sociais. Penso que a recuperação capitalista significa que os trabalhadores pagam pelo prejuízo e desaparecimento do capitalismo, a não ser que você tenha um governo diferente, com compromissos sociais diferentes e compromissos de classe diferentes, que procure financiar a recuperação dos padrões de vida dos trabalhadores, que garanta o emprego dos trabalhadores e que intervenha nas fábricas que vão contra essa política – intervir no sentido de assumir, assumir o gerenciamento, a direção, o investimento e a política salarial. Não há dúvida alguma de que irão falar sobre “sacrifício igual” dos capitalistas e dos trabalhadores. Mas os capitalistas irão continuar donos das fábricas, sem quaisquer perdas, e os trabalhadores perderão seu salário. Então, qual é o sacrifício igual, quando um mantém os instrumentos básicos de produção e distribuição, e o outro sofre as consequências de redução de salário e dos benefícios sociais?
IHU On-Line - Em que sentido as transformações com a crise financeira, econômica e ecológica implicam inovação política? James Petras - Existe uma tremenda lacuna nessas questões. Existem dois fatores que precisamos reconhecer: as condições objetivas para mudança estão em seu momento mais favorável. Ou seja, nunca antes na história tanta gente reconheceu a questão do aquecimento global, da mudança climática. De modo semelhante ocorre o mesmo com o capitalismo: nunca antes vimos um colapso tão profundo dos sistemas financeiro e produtivo ao mesmo tempo no palco mundial, indo da Rússia à Patagônia, da Patagônia ao declínio do comércio na Ásia, ao desmoronamento das principais indústrias nos EUA. Falando objetivamente, o questionamento em relação ao capitalismo e ao meio ambiente está mais forte do que nunca. Os capitalistas nunca estiveram tão na defensiva e os defensores da poluição e do aquecimento global nunca estiveram tão fracos. Mesmo assim, não estamos enxergando mudança alguma, porque objetivamente também estamos num dos pontos mais fracos: os social-democratas se tornaram sócios do capitalismo na Europa; nos EUA, não há movimento algum, pois o movimento contra a guerra virtualmente desapareceu, assim como os movimentos pelos direitos civis e dos imigrantes desapareceram. Também não existe sindicato organizado nem partido algum que represente alternativas valiosas. Na Europa, talvez na França e na Itália ainda existam movimentos de sindicatos, mas eles não estão numa posição de exercer poder governamental. Há protestos maciços por toda a China, os quais podem se aprofundar. Por sua vez, na América Latina, há um histórico de lutas, um reavivamento em potencial, mas a Central Única dos Trabalhadores (CUT) é muito restringida e os outros sindicatos têm sido muito submissos, em vários casos incorporados no sistema, ao menos no regime de Lula. Com exceção da Venezuela e em grau mais reduzido Equador e Bolívia, não há sequer governos nacionalistas; só há nacionalismo setorial na Bolívia e no Equador, onde muitas multinacionais ainda ocupam posições estratégicas. Assim sendo, afirmo que, na América Latina, não estamos na mesma posição que ocupávamos no final dos anos 90, com os movimentos sociais em ascensão e governos neoliberais em declínio. Não vejo a centro-esquerda virando para a esquerda. Também não percebo a direita desaparecer. Ela, na verdade, está retornando na Argentina, e na Bolívia estão fazendo esforço para influenciar um terço do país. Um grande paradoxo Digamos o seguinte: temos um grande paradoxo – aprofunda-se o questionamento dos fracassos do capitalismo e dos destruidores do meio ambiente, ao mesmo tempo em que não há o surgimento de uma esquerda alternativa claramente articulada. Isto pode mudar. Não se pode especificar o ponto em que algo novo poderia aparecer, algum movimento social revitalizado e dinâmico: quando o desemprego for de 15% no Brasil, ou 18% ou 20% na Argentina, ou quando a pobreza aumentar ainda mais no México. Não estou excluindo isto, nem sou um pessimista estratégico, mas tento ser realista a este respeito: temos essa realidade dupla de grandes oportunidades e grandes fraquezas subjetivas.
IHU On-Line - Alguns críticos dizem que a esquerda está ultrapassada, superada, porque não percebeu a importância de construir um novo modelo energético e ecológico. O que o senhor pensa sobre essa crítica? James Petras - A esquerda não só deixou de conceber alternativas energéticas e ecológicas, mas que existem muitas alternativas energéticas disponíveis. Talvez a esquerda esteja desconectada de um movimento bem amadurecido. Mas essa falta de integração acontece também com outros segmentos da sociedade. Por exemplo, não existe um movimento político para os colonos sem terra, nem um movimento para os desempregados e para o número crescente de trabalhadores depauperados. Portanto, não se trata exclusivamente de não se conseguir construir algum modelo em torno da questão energética. Trata-se do fracasso em conseguir livrar-se das parcerias entre capital e trabalho, vinculações entre cientistas e seminários - cientistas e teóricos do clima vão para fóruns sociais no Pará, aplaudem-se mutuamente, vão para casa e celebram o fato de que ganharam a atenção das pessoas. É uma falta de coerência total: nenhuma dessas conferências ecológicas resultou em alguma coalizão ao redor das questões econômicas, ecológicas e afins. Percebo que o grande fracasso está com os movimentos ecológicos. Na Alemanha, eles se tornaram anexos dos partidos mais importantes. Na França, deixaram de fazer conexões com os principais movimentos de greve, e na Itália eles têm sido uma força muito limitada e marginal, com exceção de ocasionais demonstrações. Nos Estados Unidos, há 110 grupos ecológicos diferentes, cada qual tentando pressionar o governo existente, em vez de montar uma força política independente; consideram-se mais como lobbies a fazer pressões, e grupos locais com identidades muito específicas: centrados em árvores, em energia, vento etc. Alguns começam como movimento social e depois acabam como capitalistas de risco.
IHU On-Line - O pensamento marxista ainda é pertinente na América Latina? James Petras - Esta pergunta foi respondida pelos próprios capitalistas. Vemos, na imprensa, que o interesse pelo marxismo levou a compras maciças dos livros de Karl Marx. Os jornais financeiros de maior circulação estão usando a mesma linguagem, falando de “colapso do capitalismo”, “fracassos do capitalismo”, da incapacidade operacional do sistema financeiro, em outras palavras: mesmo as publicações financeiras hoje reconhecem seu diagnóstico fracassado, seus erros de receita até agora, de modo que abriram espaço para um debate. O debate hoje não é mais sobre o Estado e o mercado, mas sobre o papel que o Estado deveria desempenhar ao substituir ou restaurar o mercado, contra aqueles que encaram o Estado como um instrumento para o poder social dos trabalhadores e para reorganizar a economia. Acredito que o liberalismo está morto. Todo escritor capitalista afirma isso. Agora a questão é: quais são as alternativas para o liberalismo? E aqui dois teóricos de projeção estão em confronto, Keynes e Marx. Voltamos à seguinte posição: não é uma questão de intervenção do Estado em si, mas de intervenção do Estado em favor de qual projeto econômico?

sábado, 28 de março de 2009

Peso econômico do Brasil, China e Índia pode atenuar a crise global, diz FHC

Nathan GardelsDo Global Viewpoint O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso falou para o editor do "Global Viewpoint", Nathan Gardels, em 21 de março.
Nathan Gardels - Nesta primeira crise global que emanou dos Estados Unidos e agora do sistema bancário europeu, é necessário que as potências em ascensão Brasil, China e Índia a corrijam?
Quão importantes são estas potências em ascensão -em termos de demanda, em termos de reservas e investimento- para que o mundo saia de uma recessão cada vez mais profunda? Nós estamos testemunhando uma transferência de poder do G7 para o G20 como o comitê executivo da globalização? Isso deveria ser refletido na governança do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial?
Fernando Henrique Cardoso - Eu não acho que o Brasil, Índia ou mesmo a China serão capazes, sozinhos, de corrigir as disfunções produzidas pela crise global.
Mas é verdade que o poder econômico destes três países pode atenuar suas conseqüências negativas, a menos que a amplitude e duração da crise nos Estados Unidos e Europa seja tamanha a ponto de afetar profundamente a economia dos países emergentes. Isto pode ocorrer se as importações pelos países ricos forem reduzidas significativamente e permanecerem assim por muito tempo, afetando assim o superávit comercial das economias exportadoras, e também se o arrocho do crédito persistir.
A China certamente apresenta um nível muito alto de reservas, mas este não é o caso do Brasil. Todavia, os três países emergentes citados oferecem oportunidades atraentes de investimento que podem compensar a falta de espaço para investimento na maioria das economias desenvolvidas.Eu acredito que estamos testemunhando um aumento do número de agentes econômicos relevantes. O G7 como está não mais expressa as mudanças no equilíbrio de poder mundial. Por sua vez, o G20 é muito mais representativo da realidade política e econômica atual. Mas estes grupos para um determinado fim devem ser institucionalizados para que suas decisões tenham implantação prática, e essa não é uma tarefa fácil.
Gardels - Há um debate antes da Cúpula do G20 em abril entre a ênfase dos Estados Unidos na "demanda universal" -um compromisso mundial dos países que podem gastar 2% do PIB em estímulo econômico para que o façam- contra um foco na regulamentação dos mercados financeiros globais. Qual é o mais importante e o que o senhor recomendaria especificamente?
FHC - Minha sensação é de que a regulamentação global deve ser aumentada. A incapacidade do Banco de Acordos Internacionais em assegurar o cumprimento de suas recomendações levou à atual desordem financeira. Para contê-la, o Federal Reserve (o banco central) dos Estados Unidos atuou como se fosse o "banco central dos bancos centrais", resgatando bancos e até mesmo empresas não-bancárias, indo assim muito além de seu mandato legal. É imperativo fortalecer o FMI e o Banco Mundial, aumentando sua capacidade financeira e, ao mesmo tempo, democratizando seus direitos de voto para que os países emergentes possam ter uma maior participação nas decisões.
Gardels - Como alguém que passou muitos anos como um acadêmico estudando a economia mundial, das teorias anti-imperialistas da "dependência" ao livre comércio do "consenso de Washington", o que o senhor acha da "queda de Wall Street" e do colapso do fundamentalismo de mercado dos Estados Unidos? Joseph Stiglitz, o economista ganhador do Prêmio Nobel, diz que este é um momento tão importante para o capitalismo quanto a queda do Muro de Berlim foi para o comunismo. Que modelo o senhor vê emergir nos Estados Unidos (onde, afinal, estamos debatendo a nacionalização dos bancos) e no mundo? Como a globalização parecerá diferente daqui para a frente? Quais são as lições da liberalização do comércio e do capital extraídas desta crise?
FHC - O consenso de Washington não foi mais que uma receita (incluindo algumas medidas sensíveis e necessárias e outras mais questionáveis) para lidar com a insolvência doméstica e internacional dos países em desenvolvimento. Ele não tratava dos problemas que a globalização apresentou a todos os países, incluindo os altamente desenvolvidos e os politicamente hegemônicos. Não falava da necessidade de boa governança em Washington, em Wall Street ou na City, que é a causa de nossa situação difícil atual.
O colapso atual foi de fato criado pela combinação de governos ultraliberais sucessivos nos Estados Unidos e Reino Unido (com as notáveis exceções dos períodos Clinton, Blair e Brown) e a capacidade da revolução da internet de fragmentar globalmente e disseminar hipotecas e empréstimos "securitizados".Tudo isso se beneficiou da leniência dos governos e autoridades monetárias, que fracassaram em controlar a relação entre capital e papéis alavancados. Se definirmos esta falta de regulamentação como "fundamentalismo de mercado", quer dizer, a crença de que o mercado é capaz de resolver seus próprios problemas, então de fato podemos falar de seu colapso.Provavelmente a "nacionalização" temporária ou uma crescente participação acionária dos tesouros nacionais no capital dos bancos será a forma de sair do caos atual. E não ficaria surpreso se ouvirmos pedidos por um maior controle sobre os fluxos internacionais de capital. Mas não acho que isto significará uma revolução antiglobalização. Seria mais uma tentativa de domar a forma caótica que ela assumiu.
Gardels - No início do século 20, o colapso do livre comércio e da globalização levou ao protecionismo e guerra quando ocorreu a recessão econômica. O senhor teme que o mesmo possa acontecer hoje? Ou a "dependência mútua" dos países (isto é, as reservas chinesas e o mercado de consumo americano) e a interconectividade da mudança climática entre os países farão com que esta crise aprofunde a globalização -todos temos que sair dela juntos- em vez que quebrá-la?
FHC - A configuração política que surgirá da crise global atual dependerá da capacidade de liderança de países-chave, entre eles a China, Índia, Brasil e outras economias emergentes, sem esquecer a Rússia, por seu papel estratégico nas políticas de energia e como potência militar situada entre a Europa, Ásia Central e China.O governo Obama parece ter entendido a necessidade de um "novo acordo internacional", que também inclua o mundo islâmico. Se a noção de "dependência mútua" for seriamente levada em consideração, especialmente no que se refere às questões de energia e meio ambiente, e se os Estados Unidos perceberem que o unilateralismo é fraco demais para assegurar um pacto global estável de co-responsabilidade, então poderemos ter esperança de que a saída da crise não será um retorno ao protecionismo, tendo um risco renovado de guerra como seu corolário. De fato, um "novo acordo internacional" é o caminho a seguir para evitar uma repetição da tragédia que levou à Segunda Guerra Mundial.

quarta-feira, 25 de março de 2009

BARACK OBAMA : "UM MOMENTO PARA UMA AÇÃO GLOBAL"

Nós estamos vivendo um momento de desafios econômicos globais que não podem ser resolvidos por meias medidas ou esforços isolados de um único país.
Agora, os líderes do G20 têm a responsabilidade de realizar ações ousadas, abrangentes e coordenadas não apenas para impulsionar a recuperação, mas também lançar uma nova era de compromisso econômico para impedir que uma crise como esta venha a acontecer de novo.
Ninguém pode negar a urgência da ação.
Uma crise de crédito e de confiança se alastrou além das fronteiras, com consequências para cada canto do mundo. Pela primeira vez em uma geração, a economia global está sofrendo retração e o comércio está encolhendo. Trilhões de dólares foram perdidos, bancos pararam de emprestar e dezenas de milhões perderão seus empregos em todo o mundo. A prosperidade de cada país está ameaçada, juntamente com a estabilidade dos governos e a sobrevivência das pessoas nas partes mais vulneráveis do mundo. De uma vez por todas, nós aprendemos que o sucesso da economia americana está inseparavelmente ligado à economia mundial. Não há uma separação entre a ação que restaura o crescimento no interior de nossas fronteiras e uma ação que o apoia fora delas. Se as pessoas em outros países não puderem gastar, os mercados secarão -nós já estamos vendo a maior queda nas exportações americanas em quase quatro décadas, o que resulta diretamente em perda de empregos americanos.
E se continuarmos permitindo que instituições de todo o mundo atuem de forma temerária e irresponsável, nós continuaremos presos em um ciclo de bolhas e estouro delas. Este é o motivo para o futuro encontro de cúpula de Londres ser diretamente relevante para nossa recuperação doméstica.Minha mensagem é clara: os Estados Unidos estão prontos para liderar e podemos pedir aos nossos parceiros que se juntem a nós com um senso de urgência e propósito comum. Muito trabalho importante já foi feito, mas ainda resta muito mais.
Nossa liderança se baseia em uma premissa simples: nós agiremos de forma ousada para retirar a economia americana da crise e reformar nossa estrutura regulatória, e estas ações serão reforçadas por ações complementares no exterior. Por meio de nosso exemplo, os Estados Unidos podem promover uma recuperação global e reconstruir a confiança ao redor do mundo; e se a Cúpula de Londres ajudar a estimular uma ação coletiva, nós poderemos promover uma recuperação segura e futuras crises poderão ser evitadas.Nossos esforços devem começar com uma ação rápida para estimular o crescimento.
Os Estados Unidos já aprovaram a Lei de Reinvestimento e Recuperação Americana -o esforço mais dramático em uma geração para estimular a criação de empregos e estabelecer a base para o crescimento.
Outros membros do G20 também buscaram um estímulo fiscal e estes esforços devem ser robustos e sustentados até que a demanda seja restaurada.
Ao prosseguirmos, devemos adotar um compromisso coletivo de encorajar o livre comércio e o investimento, resistindo ao mesmo tempo ao protecionismo que aprofundaria esta crise.
Segundo, nós devemos restaurar o crédito do qual dependem as empresas e os consumidores. Em casa, nós estamos trabalhando agressivamente para estabilizar nosso sistema financeiro. Isto inclui uma avaliação honesta dos balancetes de nossos grandes bancos, o que levará diretamente aos empréstimos que podem ajudar os americanos a comprarem bens, permanecerem em seus lares e expandirem seus negócios.
Isto será amplificado pelas ações dos nossos parceiros do G20. Juntos, poderemos adotar uma estrutura comum que insista na transparência, na responsabilidade e na preocupação com a restauração do fluxo de crédito que é vital para o crescimento da economia global. O G20, juntamente com instituições multinacionais, pode fornecer o financiamento ao comércio, ajudando a aumentar as exportações e criar empregos.
Em terceiro lugar, temos a obrigação econômica, moral e de segurança de estender a mão aos países e aos povos que enfrentam o maior risco. Se lhes dermos as costas, o sofrimento causado por esta crise se agravará e nossa própria recuperação será retardada, porque os mercados para os nossos produtos encolherão ainda mais e outros empregos americanos serão perdidos. O G20 deve oferecer rapidamente os recursos para estabilizar os mercados emergentes, impulsionar substancialmente a capacidade de ajuda de emergência do Fundo Monetário Internacional e ajudar os bancos de desenvolvimento regional a acelerar os empréstimos.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos financiarão novos e importantes investimentos na área de segurança dos alimentos, que permitam aos mais pobres enfrentar os dias difíceis que virão.
Embora essas medidas possam nos ajudar a sair da crise, não podemos buscar um retorno ao status quo. Devemos pôr um fim à especulação temerária e aos gastos superiores aos nossos recursos, aos créditos podres, aos bancos excessivamente alavancados e à falta de supervisão que nos condena a bolhas que inevitavelmente estourarão. Somente uma ação internacional coordenada poderá impedir que sejam assumidos os riscos irresponsáveis que causaram esta crise.
Por isso eu prometi aproveitar essa oportunidade para promover reformas abrangentes em nossa estrutura de regulamentação e supervisão.
Todas as nossas instituições financeiras -em Wall Street e no mundo- precisam de uma forte supervisão e normas ditadas pelo senso comum. Todos os mercados devem ter normas de estabilidade e um mecanismo de transparência. Uma forte estrutura de exigências de capital protegerá contra as crises futuras.
É preciso combater os paraísos fiscais no exterior e a lavagem de dinheiro. Normas rigorosas de transparência e responsabilidade terão de conter os abusos e os dias de remunerações absurdas devem acabar. Em vez de uma colcha de retalhos de esforços que permitam uma corrida ao ponto mais baixo, devemos proporcionar incentivos claros de bom comportamento que estimulem uma corrida ao topo.
Sei que os Estados Unidos carregam sua parcela de responsabilidade pelo caos que todos enfrentamos. Mas também sei que não temos de escolher entre um capitalismo caótico e impiedoso e uma economia dirigida por um governo opressor. Esta é uma falsa escolha que não serve ao nosso povo e nem a povo nenhum.
Esta reunião do G20 proporciona um fórum para um novo tipo de cooperação econômica mundial. Este é o momento para trabalharmos juntos para restaurar o crescimento sustentado que só se tornará possível com mercados abertos e estáveis que explorem a inovação, apoiem o empreendedorismo e promovam as oportunidades.
Os países do mundo possuem interesses uns nos outros.
Os Estados Unidos estão prontos para aderir aos esforços globais em prol da criação de novos empregos e do crescimento sustentável.
Juntos, poderemos aprender as lições desta crise e forjar uma prosperidade duradoura e garantida para o século 21.
Barack Obama é o presidente dos Estados Unidos. Este artigo foi escrito para o "Global Viewpoint".

sábado, 21 de março de 2009

ENTRE A CIÊNCIA E A RELIGIÃO: DEBATE SOBRE PESQUISA CÉLULAS TRONCO !

“As religiões devem ser respeitadas, assim como as religiões devem respeitar os governos. A crença de alguns não pode virar lei a ser aplicada por todos”, assegura a professora Lygia Pereira, ao opinar sobre o decreto do presidente dos EUA, Barack Obama. Ele, na semana passada anunciou que seu país irá separar a ciência e a política/religiões nos projetos governamentais estadunidenses ao anunciar o fim das restrições ao uso de dinheiro público na pesquisa com células-tronco embrionárias.
Lygia conversou, por telefone, com a IHU On-Line, sobre como estão, atualmente, as pesquisas sobre células-tronco embrionárias no Brasil e expôs sua opinião sobre o uso, o desenvolvimento e as críticas acerca das investigações realizadas no país sobre este tema. “Algumas dessas pesquisas estão mais avançadas do que as outras, mas é importante que todos saibam que hoje ainda não existe algum tratamento consolidado com as células-tronco, sejam adultas ou embrionárias, para tratarem essas doenças”, indicou. Lygia Pereira, física e mestre em Biofísica e doutora em Biomedicina obteve o título de Livre-Docência em 2004, pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, onde é, atualmente, professora associada. Vem desevolvendo, há três anos, a pesquisa Geração e caracterização de novas linhagens de células-tronco embrionárias humanas. Escreveu Sequenciaram o genoma humano... E agora? (São Paulo: Editora Moderna, 2001), Clonagem, fatos e mitos (São Paulo: Editora Moderna, 2002) e Clonagem – Da ovelha Dolly às células-tronco (São Paulo: Editora Moderna, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Atualmente, pesquisadores destacam a preferência pelas células-tronco embrionárias. No entanto, outros alegam que o procedimento pode se dar através de células adultas. Quais as diferenças entre ambas no que se refere ao uso para criação de células-tronco?
Lygia Pereira – As células-tronco adultas são as que nós conhecemos há mais tempo. Por exemplo, as células da medula óssea que estão no sangue do cordão umbilical e as células-tronco embrionárias são derivadas dos embriões que sobram da fertilização in vitro. Nós temos certeza de que as células-tronco embrionárias conseguem se transformar em qualquer tecido do corpo humano, mas não temos essa mesma certeza quanto às células-tronco. Por outro lado, sabemos que as células-tronco adultas são seguras, enquanto as células embrionárias correm o risco de virar um tumor e não formar um tecido que o paciente precisa. Então, você tem vantagens e desvantagens de cada tipo de células. Não há nenhum consenso hoje de qual célula é melhor do que a outra. Dizem que é preciso investir em todos os tipos de células-tronco para vermos qual será a mais adequada no tratamento de várias doenças.
IHU On-Line – A senhora tem argumentado em outras entrevistas que as células-tronco embrionárias têm um potencial maior. Que dados mostram isso, e por quê? Lygia Pereira – Em modelos animais, as células-tronco embrionárias têm um efeito terapêutico em doenças como a paralisia por lesão de medula, diabetes, doenças cardíacas, parkinson. No camundongos, as células-tronco embrionárias, em relação a essas doenças, têm efeitos muito melhores dos que a gente vê usando as células-tronco adultas. Daí é que vem todo o entusiamo com as pesquisas com células-tronco embrionárias. Porém, em seres humanos, ainda não sabemos como as células embrionárias irão se comportar. Nosso entusiasmo é baseado em modelos animais.
IHU On-Line – Quais os principais mitos que devem ser desmistificados sobre células-tronco? Lygia Pereira – É um mito importante as pessoas acharem que já estamos tratando doenças com células-tronco. Isso ainda não está acontecendo. As células-tronco da medula óssea é o único tratamento que um médico pode receitar para doenças do sangue. Todas as outras aplicações que estão sendo feitas em seres humanos estão sendo realizadas dentro de instituições de pesquisas. Algumas dessas pesquisas estão mais avançadas do que as outras, mas é importante que todos saibam que hoje ainda não existe algum tratamento consolidado com as células-tronco, sejam adultas ou embrionárias, para tratarem essas doenças.
IHU On-Line – Qual a principal implicação na realização e no avanço das pesquisas de células-tronco, atualmente, no Brasil? Lygia Pereira – No Brasil, foi aprovada, em 2005, uma legislação que permite que trabalhemos com as células-tronco embrionárias também. Então, essa é uma área que ainda está num estágio inicial aqui no Brasil e estamos tentando recuperar esse tempo perdido. O meu grupo, na USP, e o grupo do professor Steven Rehen, na UFRJ, estão montando um laboratório que irá oferecer treinamento para outros pesquisadores que queiram trabalhar com essas células. Com as células adultas, nós já temos uma série de estudos clínicos em andamento para várias doenças. Se os resultados, no final, serão suficientes para os médicos poderem usar essas terapias em seus pacientes, ainda precisamos de um pouco de tempo para saber.
IHU On-Line – Há mais de dez anos, a senhora já realiza pesquisas na USP, sobre células-tronco. Os resultados ainda não podem ser aplicados em seres humanos por questões de segurança e pela necessidade de ampliar as pesquisas. Assim, a senhora imagina que os tratamentos a partir de células-tronco poderão ser, de fato, utilizadas em pacientes, produzindo uma revolução na medicina terapêutica? Lygia Pereira – Nós estamos investindo nessas promessa da medicina regenerativa. É uma promessa que ainda precisa ser cumprida, pois ainda não estamos de fato tratando pessoas com isso. Acredito que devemos investir nessa área, que é muito promissora.
IHU On-Line – Qual sua opinião sobre a forma como Obama liberou as células-tronco, afirmando que as religiões não podem pautar a ciência? Lygia Pereira – Achei maravilhoso isso. As religiões devem ser respeitadas, assim como as religiões devem respeitar os governos. A crença de alguns não pode virar lei a ser aplicada por todos, então eu acho perfeito que a ciência seja baseada em fatos e não somente em dogmas religiosos.
HU On-Line – Qual é o maior dilema da senhora ao trabalhar com células-tronco? Lygia Pereira – Eu não tenho dilemas a partir da forma como as coisas são feitas. A legislação brasileira é muito boa. Não permite que nós criemos embriões, só permite que usemos embriões que sobram quando um casal vai fazer a fertilização in vitro. Eu estou muito satisfeita com o tipo de pesquisa que faço.
IHU On-Line – Mais de dez anos depois, o que significou a Dolly, o primeiro mamífero clonado por transferência nuclear? Lygia Pereira – A Dolly foi um marco na história da ciência, porque mostrou para nós que uma célula que já decidiu o que ia virar, como, por exemplo, uma célula de pele, tem capacidade de voltar atrás e dar origem a outros tipos de células e tecidos do corpo. Isso abriu, então, uma perspectiva muito boa dentro da medicina regenerativa.

terça-feira, 17 de março de 2009

SOMOS MELHORES, DEPOIS DE DARWIN!

Certamente não somos mais os mesmos após o legado de Charles Darwin. Somos melhores, acredita a filósofa Anna Carolina Regner, uma das conferencistas do IX Simpósio Internacional IHU: Ecos de Darwin, que acontece de 9 a 12 de setembro na Unisinos.
Para a pesquisadora, especialista em Darwin, a grande contribuição desse cientista, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, “à questão da origem das espécies foi o mecanismo de sua teoria da seleção natural, pela qual se dá a produção de novas e ‘mais aperfeiçoadas’ formas orgânicas”.
A respeito da querela criacionismo versus teoria da evolução, Regner explica que “o criacionismo contra o qual Darwin claramente se coloca tem um sentido bem técnico: trata-se da visão de que cada espécie seja fruto de um ato especial de criação”. De acordo com ela, não há incompatibilidade entre a teoria darwiniana e a existência de um Criador ou Deus.
Ambas podem ser compatíveis. Graduada em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Anna Carolina Regner é mestre em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutorou-se em Educação pela UFRGS e é pós-doutora pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Atualmente, é professora no PPG em Filosofia da Unisinos e faz parte da coordenação e da comissão técnico-científica do evento Ecos de Darwin. Escreveu Charles Darwin, notas de viagem: a tessitura social no pensamento de um naturalista (Porto Alegre: EST/Grafosul, 1988). Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual foi o contexto científico e filosófico no qual desponta Charles Darwin e sua Teoria da Evolução? Anna Carolina Regner – A origem das espécies, cuja primeira edição aparece em 1859, teve um impacto não somente no estudo da História Natural e nas disciplinas do que hoje chamamos de Ciências Biológicas, mas no nosso próprio modo de ver e conceber a atividade científica. Na Inglaterra, a “História Natural” que Darwin encontrou confundia-se com uma “teologia natural”, quando os naturalistas (muitas vezes pacatos párocos) tomavam a aparente perfeição de adaptações e co-adaptações como evidências de desígnio divino, enfatizando a harmonia de toda a natureza. No plano dos debates geológicos e "A ciência não demanda ateísmo, mesmo que a aceitação ou rejeição de suas teorias não dependa da crença em um Criador"paleontológicos, a grande polêmica era a do “catastrofismo versus uniformitarismo”. As investigações sobre o tema ensejavam investigações sobre a origem das formas biológicas, a respeito da qual a grande polêmica foi a do “criacionismo versus evolucionismo”. Ambos os termos sofreram diferentes determinações. No que concerne ao evolucionismo, as diferenças foram, sobretudo, referentes ao mecanismo da mudança. Quanto ao criacionismo, o termo comportou diferentes níveis de comprometimento com a idéia de intervenção divina para a explicação dos fenômenos naturais. O criacionismo contra o qual Darwin claramente se coloca tem um sentido bem técnico: trata-se da visão de que cada espécie seja fruto de um ato especial de criação.
IHU On-Line – Em que aspectos ele inova e revoluciona a ciência do seu tempo? Anna Carolina Regner – A grande contribuição de Darwin à questão da origem das espécies foi o mecanismo de sua teoria da seleção natural (da preservação e acúmulo na direção requerida das variações úteis a seu portador e a eliminação das injuriosas), pela qual se dá a produção de novas e “mais aperfeiçoadas” formas orgânicas. Esse novo modo de ver a questão-chave da Origem refletirá decisivamente na pesquisa das várias áreas da História Natural, demandando a criação e a reorganização de vários departamentos de pesquisa. Contudo, a revolução epistemológica de Darwin foi mais além, trazendo, entre outras mudanças, uma nova visão de padrões de procedimentos científicos. As conotações que Darwin empresta ao que seja a tarefa explicativa representam um dos mais fortes indicadores de sua presente contemporaneidade. Em todos os momentos da sua tarefa explicativa, Darwin está atento ao fato de que "explicar" sempre depende de uma determinada visão teórica ou suposição e, em particular, da comparação de visões diferentes, sobretudo em casos como o seu, quando, segundo suas palavras, não há um único dos fatos arrolados que não possa ser visto de uma maneira diferente da sua. Comparar a acuidade e maior alcance de sua visão com a visão adversária será uma das estratégias básicas de Darwin ao construir e defender a sua própria teoria. Um resultado importante dessa estratégia é que “explicar” resulta em apresentar a melhor alternativa explicativa possível – que acontece ser a teoria darwiniana – e que, mais adiante, torna-se a única explicação (racional) possível. Ao comparar a sua teoria com a de seus oponentes, por meio da resposta a objeções, Darwin normalmente faz uso de vários procedimentos reconhecidos como "científicos", mas também lança mão de procedimentos bastante inovadores, como a rede de informações que criou em sua correspondência, o tratamento de dificuldades e objeções à teoria, o jogo do atual (o que está dado) e do possível (do que pode ser dado, sem impossibilidade lógica ou fática) ao explicar e avaliar os méritos de nossas explicações, sua solicitação de que seja considerado o poder explicativo da teoria “como um todo”, o uso que ele faz de imaginação e metáforas, e o apelo à autoridade da comunidade científica. Tais procedimentos contribuíram para o reconhecimento da complexidade das relações entre a unidade teórica e a testabilidade empírica, e do papel determinante das estratégias argumentativas.
IHU On-Line – O que é a Teoria da Evolução contida em A origem das espécies? Anna Carolina Regner – É a teoria segundo a qual novas espécies originam-se na Natureza por meio da seleção natural, ou seja, pela preservação daquelas variações úteis a seu portador e destruição das injuriosas. Conforme Darwin diz na introdução à sua obra mestra, dizer que espécies surgem umas de outras sem mostrar o mecanismo deixa o evolucionismo em pé de igualdade com o criacionismo. Por isso, contrariamente a interpretações bastante conhecidas, não penso que, em Darwin, possamos separar a teoria da evolução da sua teoria da seleção natural.
IHU On-Line – Ambas teorias são incompatíveis ou é possível serem conciliadas? Por quê? Anna Carolina Regner – A pergunta aqui pede por um esclarecimento maior. O “criacionismo”, enquanto a doutrina que diz ser cada espécie fruto de um ato especial de Criação, certamente é incompatível com a teoria da seleção natural. Segundo a última, as espécies, na natureza, originaram-se umas de outras por um mecanismo “natural”, enquanto a primeira requer a intervenção divina para a criação de cada um das espécies, colocando sua origem em um plano “sobrenatural”. Porém, se a questão for a de saber da incompatibilidade ou não entre a teoria darwiniana e a existência de um Criador ou Deus, penso que podem ambas ser compatíveis. A aceitação ou rejeição da teoria darwiniana não dependia da aceitação ou rejeição da existência de um Criador. Darwin não se ocupou de questões religiosas em seus escritos públicos, mas apenas na Autobiografia que escreveu para sua família e em sua Correspondência [2]. Na primeira, Darwin critica a religião judaico-cristã, sobretudo por razões éticas (como explicar tanto sofrimento e punição resulte de um Deus benevolente? Seriam as demais religiões indignas?) e epistemológicas (qual a evidência para suas explicações?). Embora se reconheça teísta quando publicou a Origem, admite ter-se tornado gradualmente um agnóstico. Sua correspondência mostra diferentes aspectos da questão. As discussões sobre religião, em seu início de casamento, com sua esposa Emma, adepta da Igreja Unitária, revelam que, embora pautadas pelo respeito mútuo, suas divergências não eram omitidas para evitar desentendimentos. Sua troca de cartas na angustiante e dolorosa experiência que ambos viveram na doença e morte de sua filha Annie, revela-nos um Darwin em uma situação-limite em que se surpreende com expressões de apelo a Deus. "Conforme Darwin diz na introdução à sua obra mestra, dizer que espécies surgem umas de outras sem mostrar o mecanismo deixa o evolucionismo em pé de igualdade com o criacionismo"A correspondência com leitores que o procuravam diante de seus próprios conflitos entre a aceitação das idéias de Darwin e sua fé nas palavras da Bíblia revela um Darwin respeitoso quanto ao que considerava depender do íntimo de cada indivíduo e sincero em sua caminhada agnóstica. Em mais de uma carta, ele exprime que se vê em um lamaçal sem saída, quando não pode conceber que este Universo, em sua ordem, seja fruto de um mero acaso, mas não pode também aceitar que tanta desgraça e miséria seja fruto de um plano divino. Esse conflito estendeu-se, talvez com menor vigor, até o fim de sua vida, pois, ainda em 1881 (faleceu em 1882), ao responder a um de seus correspondentes, disse que, mesmo em seus períodos de maior oscilação e dúvidas, jamais chamaria a si mesmo um ateu. A ciência não demanda ateísmo, mesmo que a aceitação ou rejeição de suas teorias não dependa da crença em um Criador.
IHU On-Line – Quais foram as principais descobertas de Darwin na sua obra fundamental? Anna Carolina Regner – Foram muitas as suas “descobertas” ou “visões” que se revelaram teórica e empiricamente sustentáveis. Recorrendo-se ao índice da Origem, surpreende ver que o conteúdo temático, através do qual sua questão motora, “como espécies originam-se na Natureza”, é perseguida, cobre todas as diversas áreas da História Natural – da esfera orgânica, desde o exame de fatos particulares diversos, regularidades empíricas referentes à variabilidade de caracteres específicos e genéricos, instintos, hibridismo, mimetismo, questões morfológicas, embriológicas, da ocorrência de órgãos rudimentares, efeitos da domesticação, até questões das afinidades dos seres orgânicos entre si e sua classificação; da esfera inorgânica, referente aos registros geológicos; e da interação entre essas esferas, no tratamento de questões dos registros paleontológicos, da sucessão geológica dos seres orgânicos e de sua distribuição geográfica. A esse elenco, junta o concurso de novas áreas, do saber tanto científico quanto prático, como a das "leis da variação" e da "variação sob domesticação".
IHU On-Line – Que aspectos permanecem atuais e que aspectos foram superados? Anna Carolina Regner – Não sei se “superados” é a expressão mais correta, mas, embora Darwin tenha considerado a “seleção natural” como a mais importante causa ou poder para explicar a produção de novas espécies, não a considerou como sendo única. Hoje, são também enfatizados outros mecanismos evolutivos. Darwin foi um ferrenho “gradualista” na explicação dos processos de modificações das espécies. Esse aspecto foi contestado, mas para avaliar seu impacto, lidamos com critérios muito elásticos: o que significa gradualismo em tempos geológicos? A teoria da hereditariedade de Darwin é talvez, um de seus pontos mais fracos. Ele não conheceu o conceito de gene, nem o de herança mendeliana. O neo-darwinismo, que em alguns aspectos distorce o darwinismo, direciona a “seleção "Comparar a acuidade e maior alcance de sua visão com a visão adversária será uma das estratégias básicas de Darwin ao construir e defender a sua própria teoria"natural” para o nível do gene, quando a seleção natural, no texto de Darwin, opera em vários e diferentes níveis: do indivíduo, da espécie, da família, da comunidade, do grupo. No caso dos animais sociais, a seleção natural preserva o que é útil ao indivíduo enquanto animal social, não havendo aí conflito. Uma leitura de Darwin em sua própria versão, que é a da Origem das espécies, continua sendo fértil e esclarecedora. Por exemplo, algumas das novas linhas de abordagem, como as da ecologia e da evolução e desenvolvimento (evo-devo) podem lá encontrar suas sementes inovadoras. Vale também lembrar que outros aspectos do pensamento darwiniano estão ainda em época de colheita, como seus estudos sobre a mente e seu enfoque sobre psicologia evolutiva e cognitiva.
IHU On-Line – Qual é a importância de se comemorar o bicentenário de seu nascimento? Anna Carolina Regner – É a importância de se comemorar um dos grandes marcos de toda a ciência e em geral, de toda a cultura humana. A origem das espécies teve um impacto em várias dimensões da vida humana, não somente no modo de ver e conceber a atividade científica e o homem, mas no pensar as relações entre ciência e religião. Não podemos simplesmente ignorar tais efeitos. Ainda que possamos questionar se somos melhores ou piores depois de Darwin, certamente não somos mais os mesmos. Pessoalmente, penso que somos melhores. Pelo menos, somos mais humildes e deveríamos ser mais tolerantes entre nós e mais respeitosos com a Natureza. Em seus estudos sobre o homem e sobre a teoria das emoções, Darwin diz que a vontade, consciência e intenção resultam do desenvolvimento das faculdades superiores. A moral, a parte mais nobre do homem, segundo Darwin, onde o homem é o supremo juiz de sua conduta, tem sua origem nos instintos sociais, no amor e na simpatia, geradores de um sentimento de “certo” e “errado”, à base do qual a moral se edifica. Uma pequena dose de juízo ou razão está presente, segundo Darwin, mesmo em nossos instintos. A mente humana evoluiu a partir da mente dos animais mais inferiores.
IHU On-Line – Nesse sentido, quais são os grandes debates que o Simpósio Ecos de Darwin irá promover? Que pesquisadores já confirmaram suas presenças e o que cada um deles estuda? Anna Carolina Regner – Como pode ser visto na programação deste encontro que terá lugar de 9 a 12 de setembro próximo na Unisinos, o IX Simpósio Internacional IHU: Ecos de Darwin busca sua voz nas questões e reflexões que suscitou e que impõem um repensar de nossas crenças, atitudes e expectativas nas diferentes esferas de nossa vida. Assim, o Simpósio contemplará aspectos históricos, filosóficos, científicos e religiosos do legado e das promessas darwinianas. Contará, para tanto, com nomes da maior importância nacional e internacional.