“Não ler a Bíblia é como ser cego”
Para o escritor americano David Plotz, a Bíblia é uma leitura obrigatória para entender a sociedade atual
José Antonio Lima
Judeu por origem, David Plotz tornou-se agnóstico ao longo da vida, embora tenha mantido o interesse pela religião e pela tradição judaicas. Em 2006, estava tão entediado durante o bat mitzvah da prima – a cerimônia que marca o início das responsabilidades religiosas dos judeus, realizada aos 12 anos para as meninas e aos 13 para os meninos – que começou a ler a Bíblia. Indignado com uma história que leu no Gênesis, e que não conhecera quando criança, decidiu, segundo suas palavras, descobrir o que aconteceria se um “ignorante” lesse o livro no qual sua religião está baseada. Plotz narrou sua experiência em um blog, editado num livro lançado neste mês nos Estados Unidos, cujo título pode ser traduzido como “O bom livro: as coisas bizarras, hilárias, perturbadoras e maravilhosas que aprendi quando li cada palavra da Bíblia”.
ENTREVISTA - DAVID PLOTZ
QUEM É Casado, pai de três filhos, é jornalista. Já escreveu para revistas como New York Times Magazine, Rolling Stone, GQ e para o jornal The Washington Post. É editor da edição on-line da revista SlateO QUE PUBLICOUThe genius factory: the curious history of the Nobel Prize Sperm Bank (2005) e Good book: the bizarre, hilarious, disturbing, marvelous, and inspiring things I learned when I read every single word of the Bible (2009)
ÉPOCA – Que história do Gênesis o deixou indignado?
David Plotz – Como o bat mitzvah de minha prima estava incrivelmente chato e eu não tinha nada melhor para fazer, peguei a Bíblia e a abri em qualquer página. Caí no capítulo 34 do Gênesis, e comecei a ler a história de Diná, filha de Jacó, um grande patriarca de Israel. Um dia ela sai para uma caminhada e é estuprada, só que o homem que a atacou diz que está apaixonado por ela. Ele, então, vai ao encontro de Jacó e de seus filhos, pede desculpas e diz que quer se casar com ela. Ele oferece muitos favores e, em troca, os filhos de Jacó exigem que todos os homens da tribo do estuprador sejam circuncidados. Aí, acontece uma reviravolta sombria. Após a circuncisão, os filhos de Jacó aproveitam o fato de os homens da outra tribo estarem debilitados e os massacram. Pegam mulheres e crianças como escravos. Quando Jacó reclama do ato, os filhos questionam se Jacó queria que a filha fosse tratada como uma prostituta. E a história acaba. Sem explicação! Aí eu pensei: “Se isso está no Gênesis, que é conhecido, imagine as outras histórias da Bíblia”.
ÉPOCA – O senhor leu apenas o que os cristãos chamam de Velho Testamento. Pretende ler o Novo Testamento?
Plotz – Não vou fazer isso porque sou judeu, e o Novo Testamento não é minha tradição, minha religião. O Velho Testamento é meu livro, e senti que podia me divertir com ele, contar piadas, fazer perguntas.
ÉPOCA – O senhor não faria o mesmo trabalho com outros livros sagrados, como o Corão, por exemplo?
Plotz – Não estou dizendo que é impossível alguém ler o Corão ou outro livro e escrever sobre ele, mas eu não gostaria de ser essa pessoa. Seria um projeto totalmente diferente.
ÉPOCA – O senhor defendeu em um artigo recente a leitura da Bíblia em colégios e universidades. Por quê? Plotz – Não acho possível ser uma pessoa verdadeiramente educada sem ter lido a Bíblia. Ela é a fonte original para muitos aspectos de nossa civilização e nossa cultura. Há milhares de palavras e frases que estão na Bíblia e que usamos atualmente. Algumas leis básicas, como o direito de proteger a propriedade e a forma de tratar as outras pessoas, também estão lá. Hoje em dia, a Bíblia ainda é usada na política, como forma de justificar ataques a adversários e grupos específicos, como os homossexuais. Não ler a Bíblia é quase como ser cego. Você fica ignorante sobre como sua civilização se tornou o que é. É como para os americanos não ter lido Shakespeare ou a Constituição. Eu sei que, por ser um livro religioso, não será ensinado nas escolas, mas as pessoas teriam uma visão melhor do mundo se fossem incentivadas a ler os livros que estão na base da criação de suas civilizações.
"Perturbou-me o fato de Deus pedir e exigir o assassinato de inocentes. Por que queremos um Deus que deseja matar crianças inocentes?"
ÉPOCA – O que o senhor pensava sobre Deus antes de ler a Bíblia?
O que mudou? Plotz – Antes, eu era agnóstico. Esperava que existisse um Deus, gostava d’Ele, mas não pensava muito nisso. Mas o Deus do Velho Testamento é perverso, mata muita gente sem razão, não é misericordioso, amoroso, não tem compaixão. É muito perturbador pensar que esse Deus esteja cuidando de nós. Fiquei muito bravo depois de ler e passei a desejar que exista algo melhor.
ÉPOCA – O que mais o perturbou?
Plotz – Foi o fato de Deus pedir e exigir o assassinato de pessoas inocentes. Ele diz que nós devemos matar inocentes para conquistar terras ou para livrá-las de impurezas. É horrível. Claro que as pessoas cometem crimes terríveis contra as outras, mas a ideia de que Deus tenha pedido isso me deixa espantado. Por que queremos um Deus que deseja matar crianças inocentes? Essa é uma pergunta que, para mim, não tem resposta.
ÉPOCA – E o que foi mais engraçado?
Plotz – Foi o fato de Deus ter uma obsessão por homens carecas. Ele afirma que homens carecas são puros e diz várias vezes para rasparem a cabeça e o corpo. Há até um episódio em que alguns garotos caçoam do profeta Eliseu chamando-o de careca. Em seguida, um urso aparece e mata 42 crianças por causa disso.
ÉPOCA – Hoje em dia, muitas pessoas criticam o islã por causa de interpretações literais dos textos sagrados. O que aconteceria se a Bíblia fosse interpretada literalmente?
Plotz – Seria um pesadelo, uma catástrofe. Estaríamos apedrejando as pessoas até a morte, matando quem trabalhasse nos dias de descanso e quem cometesse qualquer infração sexual. O mundo seria totalmente segregado entre homens e mulheres, que estariam impuras quando menstruadas. Simplesmente não faz sentido nenhum. Qualquer um percebe que você não pode seguir tudo o que está lá.
ÉPOCA – O senhor recebeu críticas de leitores irritados?
Plotz – Algumas. Há ateus que afirmam: “Como você é estúpido por ler esse livro mentiroso”. E há os religiosos fervorosos que dizem que eu não devo questionar Deus. Mas o que foi extraordinário ao fazer o livro foi o fato de que há muita tolerância religiosa por aí. Aos olhos de muitos judeus e cristãos, eu estava cometendo erros teológicos e falando coisas estúpidas, mas eles respeitaram meu direito de chegar às minhas próprias conclusões.
ÉPOCA – Você acha que seu livro pode substituir a leitura da Bíblia?
Plotz – Acho! E a melhor parte é que você pode deixá-lo no banheiro sem se sentir culpado. Na verdade, ao ler o Good book você terá uma educação bíblica divertida e ainda vai economizar tempo, porque ele é muito menor que a Bíblia.
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