Um dos sociólogos mais influentes da atualidade, Anthony Giddens, 71, afirma que a crise financeira global vai redefinir radicalmente a sociedade em que vivemos, mas "muito ainda depende de um fenômeno em cujas mãos ainda estamos - o mercado".
Para ilustrar sua opinião, reforça: "Toda vez que uma decisão é tomada, as pessoas querem saber como os mercados vão reagir". A reunião do G20 na próxima quinta, em Londres, produzirá um acordo -ainda que "de fachada"-, porque os mercados e as pessoas precisam ser "tranquilizados", diz ele. Giddens avalia que "estamos no estágio inicial de descobrir o que seria um novo modelo de capitalismo responsável e global" e prevê uma convergência no debate sobre a grande recessão e os desafios da mudança climática.
A entrevista é de Pedro Dias Leite e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 29-03-2009.
"Em ambos os casos, estamos falando de um papel forte para o Estado e de mais regulação, de um planejamento de mais longo prazo que não tivemos no passado, de controlar mecanismos de mercado mais efetivamente do que nos últimos 30 anos pelo menos, de mais inovações tecnológicas." Principal ideólogo da Terceira Via, a busca de um caminho alternativo entre o liberalismo radical e as tendências estatizantes tradicionais da social-democracia, Giddens agora volta sua atenção para o tema do aquecimento global, em livro lançado na semana passada: "The Politics of Climate Change" (A Política de Mudança Climática, Polity Press, 256 págs.).
Ex-reitor da London School of Economics, lorde Giddens defende que os países ricos têm de arcar com 95% dos custos da luta contra o aquecimento global pelos próximos anos, pois "não é moralmente correto nem seria factível na prática impedir os países em desenvolvimento de se desenvolverem". Por outro lado, o sociólogo cobra o fim da "atitude passiva" dos países em desenvolvimento em relação ao tema e enxerga o Brasil exercendo um papel de liderança, como mediador entre EUA, China e União Europeia.
Eis a entrevista.
Em seu livro, o sr. lança o "paradoxo de Giddens": uma vez que os perigos do aquecimento global não são visíveis no dia a dia, apesar de parecerem terríveis, as pessoas não irão agir; contudo, esperar até que se tornem visíveis e sérios para então tomar uma atitude será tarde demais. Como lidar com isso?
Eu aplico o paradoxo de Giddens especialmente aos países desenvolvidos, porque são eles que têm que tomar a liderança. Por exemplo, para alguém que caminha pelas ruas de Londres, as enchentes de Bangladesh não são algo que afete o dia a dia das pessoas. Para lidar com isso, é preciso romper com as estratégias do passado. As coisas que têm saído pré-Copenhague [em dezembro haverá uma conferência na capital dinamarquesa para definir o mundo pós-protocolo de Kyoto], com os cientistas dizendo que "é muito pior do que pensávamos", passam longe da realidade das pessoas nas ruas. Muitas questões que parecem apocalípticas, que saem nos jornais e na mídia, são iguais a filmes que as pessoas não conseguem distinguir da realidade. É bem difícil esperar que as pessoas comecem a agir com base nisso.
Por isso proponho uma reorganização fundamental do pensamento, para focar muito mais nos investimentos, para ver os lados positivos do aquecimento global. Podemos criar uma genuína economia verde, quebrar a dependência do Oriente Médio, garantir segurança energética e levar a uma vida melhor por meio dessas transformações. Dizer para os empresários que eles podem se tornar mais competitivos.
Não sou contra regulação ou metas para reduzir a emissão de carbono. Na verdade, sou a favor dessas coisas, mas não acho que elas possam mobilizar as pessoas. Olhe para o tipo de abordagem que o presidente [dos EUA, Barack] Obama produziu, é muito diferente de todos, é muito mais afirmativa. Não sabemos se vai ter sucesso, claro, porque estamos falando aqui em mudar o "estilo de vida americano". No entanto ele fala disso como um projeto inspirador, que tem muito mais ressonância.
O sr. fala que o movimento verde sequestrou o debate sobre mudança climática e que é preciso sair dessa armadilha. Como assim?
O movimento verde começou da metade para o final do século XIX, fortemente influenciado pela ideia romântica de uma crítica do industrialismo, a nostalgia de uma terra que não havia sido modificada pelas indústrias. Sua força motriz era a conservação, a proteção da natureza e do ambiente. Realmente deveríamos ter deixado a natureza em paz, só que agora é tarde demais, e maior intervenção na natureza será absolutamente necessária. A mudança climática é muito diferente das preocupações tradicionais dos verdes e, para lidar com ela, temos de nos livrar de alguns dos preconceitos que os verdes -não todos, mas alguns- têm, de não interferir muito na natureza, de um princípio da precaução. O caminho para lidar com a mudança climática deve ser de ousadia, inovação, o máximo uso da tecnologia. Não quero descartar completamente o movimento verde, pois tem um importante papel de trazer esses assuntos para a agenda, e isso tem valor. No entanto, se você olhar para o manifesto dos verdes globais, muito pouca coisa tem a ver com mudança climática. E um dos problemas é que alguns grupos se veem como operando fora da política, extremamente críticos das atividades das grandes corporações. Mas o vital agora para a mudança climática é trazer para o centro do debate algo que 60%, 70% da população possa compreender.
Num artigo recente, o sr. mencionou que a crise financeira global, seus desdobramentos e o desafio de como lidar com a mudança climática levaram ao fim do fim da história. Por quê?
[Francis] Fukuyama inventou a versão moderna da frase do fim da história, e o que ele quis dizer foi que chegamos a uma fase da história em que não podemos ver nada diferente do mundo em que vivemos: de um lado, a democracia parlamentarista e, de outro, o sistema capitalista, com competição e mercados abertos. Acho que não se pode mais tomar essa posição como aceitável, pois uma sociedade de baixo carbono provavelmente mudará bastante o comportamento das pessoas, o modo como veem o mundo. Pode envolver uma crítica forte de viver num tipo de sociedade baseada no consumo, sem outros valores. O que quis dizer foi que temos de nos preparar para pensar novamente de modo muito radical lá na frente. É claro que, agora, temos de lidar com o mundo como o vemos. Mas sou a favor de um retorno parcial a certo utopismo. O mundo que criamos é insustentável, sabemos que não podemos continuar como estamos.
O sr. fala que as nações em desenvolvimento deveriam ser autorizadas a emitir mais carbono no curto prazo, mas isso não funciona. Os EUA e a União Europeia, com medo de perderem competitividade, já disseram que isso é inaceitável. Como resolver essa equação?
Não podemos impedir os países em desenvolvimento de se desenvolverem. Não seria moralmente correto nem seria factível, na prática. Parte desse desenvolvimento tende a depender pesadamente de combustíveis fósseis e, logo, de emissões de carbono. É por isso que os países já industrializados têm de arcar com 95% do fardo pelos próximos 10, 15, 20 anos até, para reduzir as emissões. Por outro lado, é preciso que o mundo em desenvolvimento assuma um papel importante, não mais a posição passiva, de que isso "não tem nada a ver com a gente". Mas, no caminho, precisamos de avanços tecnológicos e de grandes áreas daquilo que chamo de "convergência econômica e convergência política", para que os países em desenvolvimento sigam um caminho diferente do que o que estão seguindo agora. Em primeiro lugar, estamos atrás de avanços tecnológicos que sejam capazes de levar os países em desenvolvimento a pular algumas etapas de desenvolvimento. Em segundo lugar, estamos procurando vários acordos bilaterais, não apenas a conferência de Copenhague, especialmente entre EUA e China, que produzem quase 50% das emissões. Idealmente, é necessário algum acordo entre os dois, como os EUA permitirem acesso a inovações tecnológicas, com a suspensão de patentes, em troca de algum tipo de concessão da China para os EUA. Mas isso é determinado politicamente. Se não há como repetir o modelo de desenvolvimento, temos de encontrar avanços. Até agora, não conseguimos. A China ainda está fazendo usinas de carvão. Os políticos se sentem muito confortáveis, prometendo cortar as emissões em 80% até 2050, mas não ficam nem um pouco felizes quando você diz que precisam começar agora. Existe muita retórica vazia nesse debate e temos de ver como superar isso para que os acordos sejam atingidos. Temos de olhar para o que pode ser feito, de modo a produzir uma combinação de competitividade e mudança tecnológica. Estou convencido de que países que seguirem o caminho tradicional de desenvolvimento industrial não serão competitivos no médio prazo.
Como o sr. vê o papel do Brasil nesse debate sobre o clima? O que o país deveria fazer?
Vejo o Brasil como um negociador ou uma terceira parte nas negociações entre os EUA, a União Europeia e a China. Vejo o Brasil capaz de ter uma liderança entre os países de industrialização recente para levar os outros países a uma posição decente. O país pode ter um papel bastante importante, e seria desejável se de fato o exercesse. Mas isso também depende de uma liderança política forte.
Estamos vivendo a pior crise econômica desde a Grande Depressão. Quais serão seus efeitos?
Depende de em que nível você está falando. Nos próximos dois anos e no momento, ninguém sabe realmente o que acontecerá, independentemente de suas credenciais acadêmicas. Se haverá declínio contínuo com desemprego crescente ou se, nesse período, haverá algum tipo de recuperação, pelo menos em algumas áreas. Ambos são possíveis. Muito depende de um fenômeno do qual ainda estamos nas mãos: o mercado. Toda vez que uma decisão é tomada, as pessoas querem saber como os mercados irão reagir. Ainda estamos nas mãos do mercado global, para o bem e para o mal. No médio prazo, pessoas como eu deveriam estar pensando em um modelo de capitalismo responsável. Pois existe uma convergência entre o debate sobre mudanças climáticas e a recessão, por razões óbvias. Nos dois casos, estamos falando de um papel forte do Estado e de mais regulação, de um planejamento de longo prazo que não houve antes, de controlar mecanismos de mercado de modo mais efetivo do que foi feito nos últimos 30 anos, de inovações tecnológicas. Mas ainda estamos no estágio inicial de descobrir o que seria um novo modelo de capitalismo responsável e global. A crise é mundial, não importa o que a Europa ou os EUA façam. Essa é uma questão em aberto, pois os países não têm sido bons em chegar a acordos, mesmo quando é de seu interesse. A Rodada Doha e a Organização Mundial do Comércio são exemplos perfeitos.
Muitos teóricos têm falado em "desglobalização", como no caso do aumento do protecionismo.
A globalização é um termo que abarca muitas mudanças, e é preciso quebrá-lo em várias partes. Há alguns aspectos muito improváveis de serem revertidos, como a revolução das comunicações, uma das maiores forças da globalização. Goste-se ou não, isso ainda será o futuro: o mundo estará integrado imediatamente pela tecnologia e quase certamente isso continuará a ter avanços. Nesse sentido, a globalização está aqui para ficar. Mas, quando se fala em livre mercado, é diferente. Alguns aspectos podem ser revertidos, isso já aconteceu antes, e, em uma situação de recessão, as pessoas tendem a se voltar para seus países. Mas, se sabemos alguma coisa de teoria econômica, é que protecionismo, no final, prejudica sua própria economia. Nenhuma economia que se isolou do mercado global conseguiu realmente prosperar. Pessoalmente, não acho que o protecionismo voltará, como nos anos 1930.
Quais são suas expectativas para o encontro do G20?
Acho que tem mais chances de chegar a um acordo do que a imprensa diz, pois esta é a primeira vez em que houve tal grau de reconhecimento da natureza global da crise. Poderá haver acordos para aumentar a transparência ou para expandir o papel do FMI. Mas será preciso verificar em que extensão serão implementadas no mundo real. O que certamente ocorrerá será um acordo de fachada. Haverá a apresentação de um acordo -ele de fato ocorrendo ou não-, pois todo mundo reconhece que precisamos tranquilizar o público e o mercado -ele de novo!
Em uma palestra, o sr. afirmou que o clima do mundo vai mudar irremediavelmente, mas não vê isso como uma ameaça iminente.
O que disse é que o debate quanto à mudança climática é sobre riscos e sobre como analisar esse riscos. No momento existem várias formas de medição de risco feitas pelos cientistas, e o consenso parece ser que a mudança climática é mais iminente e mais perigosa do que pensávamos, mas não está claro completamente o que querem dizer com isso. É sensato dizer que as emissões na atmosfera já estão produzindo efeitos, mas, se se está falando de 2050, quem sabe dizer o que poderemos fazer para responder a isso? Existem muitas divergências na comunidade científica sobre quão iminentes essas coisas são, e posso dizer isso porque passei os últimos dois anos estudando o tema. É muito importante para países como o Brasil, com algumas condições climáticas violentas, pensar em se adaptar a esse novo contexto, fazer estudos de vulnerabilidade, encontrar meios de convergência para procedimentos que ajudarão em caso de mudanças significativas no clima. Por exemplo, proteção contra enchentes, ao mesmo tempo melhorando práticas de agricultura. Existe uma boa área de desconhecido nos próximos 20, 30 anos. Quem sabe o mundo possa ter um mecanismo de adaptação sozinho, talvez a própria natureza produza uma solução. Mas o que sabemos até agora é que, uma vez que as emissões forem lançadas na atmosfera, não sabemos como tirá-las, e os principais gases do efeito estufa podem permanecer lá por 400 anos. Há cientistas que já conseguem [retirar os gases da atmosfera] em pequena escala, mas não sabemos se será possível em grande escala. As pessoas estão muito confusas, apesar da grande educação formal.
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