domingo, 2 de maio de 2010

A financeirização como forma de biopoder. Entrevista especial com Stefano Lucarelli

“Considero a financeirização (o que, em primeira instância, aparece como o deslocamento da poupança das economias domésticas para os títulos de ações), como a forma de controle social necessária para que a população contribua à reprodução das formas institucionais do novo capitalismo. O biopoder não é simplesmente uma forma de controle social, mas é um conjunto de técnicas de governo que representa um investimento na vida da parte das relações de poder”.
A definição é do professor Stefano Lucarelli, em entrevista exclusiva concedida à IHU On-Line, por e-mail. E ele completa: “as técnicas, nas quais se concretiza o biopoder, mantêm certa ambiguidade: talvez se poderia dizer que os traços da sujeição e da subjetivação tendem a se sobrepor”.
Lucarelli explica o que são os “efeitos riqueza”, e considera que os mesmos “não representam uma característica inata de todo consumidor, mas dependem da liquidez crescente que os mercados financeiros trazem.
Os efeitos riqueza seriam então interpretados como uma transformação das relações sociais, uma característica da população que se torna objeto de biopoder. Num regime de acumulação puxado pelas finanças, o conjunto de técnicas de submissão-subjetivação se torna sempre mais incisivo, enquanto a poupança das economias domésticas é desviada para os títulos acionários. Aqui está o traço do biopoder”. Ao contextualizar o mundo do trabalho com a crise do capitalismo financeiro, Lucarelli entende que “a crise do fordismo é necessária, sobretudo ao capital, para restabelecer o seu controle sobre o trabalho e sobre a sociedade”. E continua: “Num regime de acumulação em que as finanças ditam a lei, as forças produtivas estão sujeitas a formas de controle que não se exaurem no comando direto. Para analisar estas modalidades de comando que se entrelaçam com as lógicas da produção e do consumo, a dicotomia foucaultiana sujeição/subjetivação é absolutamente decisiva”. Stefano Lucarelli é professor no Departamento de Economia "Hyman P. Minsky" da Università degli Studi di Bergamo, Itália. Doutor em Economia Política pela Università Politecnica delle Marche, sua tese intitula-se Cicli politici elettorali e finanziamento della sanità pubblica in Italia. Confira a entrevista. IHU On-Line - Qual é a atualidade da categoria biopoder proposta por Foucault para se compreender as mudanças em curso no capitalismo mundial? Stefano Lucarelli - Preciso fazer uma indispensável premissa. Não sou um especialista do pensamento de Foucault. Comecei a estudar com ele nos cursos oferecidos pelo grande pensador francês no Collège de France em 1977-78 e 1978-79, já que me despertou curiosidade e fui estimulado pelo trabalho conduzido pela rede Uninomade, que desde 2003 iniciou um percurso possível de recomposição das inteligências críticas para construir um dispositivo de autoformação e debate para pesquisadores, estudantes e ativistas de movimentos. A finalidade é acentuar a necessidade de uma ciência da transformação do presente estado de coisas. Neste projeto, as categorias propostas por Foucault parecem decisivas: não só porque se pode, de tal modo, continuar uma análise do poder capitalista que concebe o poder como campo de poderes, isto é, como um conjunto de correlações entre formas institucionais de saberes e de práticas, mas também porque o próprio Foucault coloca o problema da produção de subjetividade. Nesta nossa conversação sobre a financeirização como forma de biopoder, veremos que o principal problema a enfrentar consiste precisamente na produção de subjetividade. Nos cursos no Collège de France, Foucault se esforça por delinear as características do conceito de biopoder, uma categoria que ele havia introduzido no último capítulo de A vontade de saber, de 1976. Naquele contexto, Foucault define biopoder como uma “grande tecnologia de duas faces, anatômica e biológica, que age sobre o indivíduo e sobre a espécie”. Nos anos subsequentes, ele procura clarear o nexo existente entre esta categoria e o paradigma neoliberal. No curso de 1977-78, ele enfrenta a gênese de um saber político que coloca no centro de suas preocupações a noção de população e os mecanismos capazes de assegurar sua regulação. A população não é simplesmente concebida como o conjunto dos “súditos de direito”, nem como um conjunto de braços destinados ao trabalho, mas como um conjunto de elementos que se conectam ao regime geral dos seres vivos e que pode funcionar como suporte de intervenções combinadas; neste contexto, biopoder é “o conjunto dos mecanismos graças aos quais os traços biológicos que caracterizam a espécie humana se tornam objeto de uma estratégia geral de poder”. Trata-se das modalidades de racionalização das técnicas de governo destinadas à “segurança”, que caracterizam o início da idade moderna: a saúde, a higiene, a natalidade, a longevidade e a raça em relação a uma população. Com o curso de 1978-79, é dado um passo em frente: Foucault estuda o modo pelo qual, a partir do século XVII, a racionalização dos problemas levantados pela prática governamental dos fenômenos que caracterizam uma população é associada ao liberalismo. A pergunta que surge é: com que regras pode ser administrado o fenômeno “população” no contexto do “liberalismo”, aqui entendido como sistema atento ao respeito dos sujeitos de direito e da liberdade de iniciativa dos indivíduos? O biopoder não é, pois, um conceito cristalizado de uma vez por todas. O que procurei fazer na minha contribuição sobre a financeirização foi perguntar com que regras pode ser administrado o fenômeno “população” no contexto do neoliberalismo, isto é, no novo regime de acumulação rebocado pelas finanças. Neste contexto, considero a financeirização (o que, em primeira instância, aparece como o deslocamento da poupança das economias domésticas para os títulos de ações), como a forma de controle social necessária para que a população contribua à reprodução das formas institucionais do novo capitalismo. O biopoder não é simplesmente uma forma de controle social, mas é um conjunto de técnicas de governo que representa um investimento na vida da parte das relações de poder. As técnicas, nas quais se concretiza o biopoder, mantêm certa ambiguidade: talvez se poderia dizer que os traços da sujeição e da subjetivação tendem a se sobrepor. IHU On-Line - O senhor afirma que a financeirização da economia manifesta-se como biopoder. Como isso ocorre? Stefano Lucarelli - Para responder a esta pergunta, é preciso recordar os principais acontecimentos que caracterizaram o capitalismo contemporâneo. Deflagrado em 1971 pela decisão unilateral dos EUA de decretar o fim dos acordos de Bretton Woods, gerando a flexibilidade no mercado cambial, e acelerado pelas políticas monetárias de Volker (1), de 1979, em concomitância com o acesso ao poder de Reagan nos EUA e de Tatcher no Reino Unido (a assim chamada contrarrevolução monetária), o regime de acumulação, que foi se afirmando no decurso dos anos 1980, tem seu motor nos mercados financeiros: a modernização salarial favorece a rentabilidade da empresa e aumenta o valor dos títulos financeiros, dos quais também dependem os fundos de pensão, os fundos de investimento, os seguros e parte das retribuições dos trabalhadores. Estes últimos, sobretudo no decurso dos anos 1990 (os anos da new economy), foram sempre mais incentivados pelos Governos, pelos próprios sindicatos e pela opinião pública, no sentido de confiar os próprios rendimentos às bolsas. Como nos deixou claro Robert Boyer (já em 2001), no modelo de crescimento que emerge, a economia real e a economia financeira estão profundamente entrelaçadas: os perfis das empresas, mas também o consumo das famílias são redes do andamento das bolsas. Sustentar os rendimentos financeiros torna-se o imperativo do manager e o horizonte de realização de muitos pequenos poupadores (endividados). A própria “cartolarização” – a transformação dos créditos bancários em atividades negociáveis - é analisada como a última etapa da profunda transformação dos sistemas financeiros, iniciada no final dos anos 1970 e relacionada com a virada da política monetária estadunidense de outubro de 1979. O consumismo, que se desenvolveu nas fases de crescimento que precederam a contrarrevolução monetarista, era incentivado pelos aumentos salariais e voltado principalmente aos bens de massa estandardizados; aquilo a que depois se assistiu é um consumismo que se manifestou acima de tudo na aquisição de estilos de vida, através do desenvolvimento da indústria cultural e do divertimento. Esta tendência é muito bem descrita nas Cartas Luteranas de Píer Paolo Pasolini (1975), onde ele reconhece a morte dos valores proletários na homologação dos comportamentos juvenis “sob o signo e a vontade da civilização do consumo”. A taxa de substituição dos “status symbol” é aumentada com o tempo, e o consumismo se tornou um fenômeno invasivo que toca os mais jovens, mas também os adultos. Esta última fase ainda se desenvolveu num contexto de crescimento econômico, porém, no interior de um regime de acumulação finance-led, no qual o consumo não aumenta mais graças ao aumento dos salários (a quota dos salários sobre o produto total diminui), mas graças aos efeitos riqueza apoiados pelo boom das bolsas, num mundo em que parte das retribuições em contracheque (as stock options), os salários diferidos (os fundos de pensão) e as poupanças das famílias se deslocam massiçamente para as atividades financeiras. Quando o boom das bolsas perdeu a força dos anos 1990, a estrutura psicológica dos consumidores já estava comprometida. Em outros termos, os efeitos riqueza não representam uma característica inata de todo consumidor, mas dependem da liquidez crescente que os mercados financeiros trazem. Os efeitos riqueza seriam então interpretados como uma transformação das relações sociais, uma característica da população que se torna objeto de biopoder. Num regime de acumulação puxado pelas finanças, o conjunto de técnicas de submissão-subjetivação se torna sempre mais incisivo, enquanto a poupança das economias domésticas é desviada para os títulos acionários. Aqui está o traço do biopoder. Devo acrescentar que a financeirização não se exaure somente na mudança dos comportamentos dos consumidores-poupadores. Também as lógicas inerentes aos investimentos das empresas se modificaram. O dinamismo da economia americana, durante os anos 1990, nos setores das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e das biotecnologias e seus efeitos invasivos sobre os setores tradicionais da economia, procede paralelamente à difusão de novas tipologias de mercados financeiros especializados na mercantilização dos direitos de propriedade intelectual - IPR (International Property Rights): o NASD (National Associaton of Security Dealers) Regulation, de 1984, que introduz a possibilidade de valorizar os intangíveis (compostos prevalentemente de IPR) como vozes do ativo no balanço das empresas; a constituição do Nasdaq National Market: a modificação da lei sobre os fundos de pensão, de modo a permitir enormes fluxos de liquidez diante de empresas em déficit, mas de alta rentabilidade, levando em conta o potencial dos intangibile assets. A complementaridade entre mercados financeiros e o IPR foi o coração pulsante da new economy e representa a origem do superinvestimento, favorecido pela política das baixas taxas de interesse do Fundo Europeu de Desenvolvimento (FED). A dinâmica dos investimentos privados como cota do PIB mostra que, entre 1992 e 2001, os investimentos privados aumentaram progressivamente, para depois despencar entre 2002 e 2003 (Flow of funds of the United States, 6 de dezembro de 2007). As raízes da crise desencadeada em 2007 devem ser buscadas nos anos da new economy. A crise brota do excesso de investimento nas novas tecnologias da informação e da comunicação e da exaustão das oportunidades de lucro oferecidas pelas novas tecnologias. Transferida e contida principalmente pela política monetária, a bolha enfim explodiu. IHU On-Line - Que características assumem o trabalho na atual fase de expansão do capitalismo financeiro? Stefano Lucarelli - Em primeira instância, pode-se dizer que o trabalho vai sempre se fragmentando mais ao longo da linha de produção, e isso põe em crise o próprio conceito de representação dos trabalhadores. A dinâmica dos mercados financeiros incide profundamente sobre as características que o trabalho assume: a partir da crise do paradigma industrial e fordista – que procede paralelamente ao abandono dos acordos de Bretton Woods – os mercados financeiros se tornam o lugar onde o processo de valorização, próprio de uma nova divisão internacional do trabalho, encontra uma (des)medida; uma medida sujeita às convenções financeiras. As convenções financeiras que se sucederam de 1993 até hoje e que puseram sob xeque-mate as políticas monetárias dos Bancos Centrais, afirmam-se no interior de um mesmo paradigma tecnológico, no qual o trabalho se atomiza. A recomposição de classe da multiplicidade dos vetores produtivos se complica. Como sustenta, por exemplo, Carlo Vercellone, a figura do trabalho cognitivo assume particular relevância. No entanto, não creio que a definição de trabalho seja simples. É dificilmente contestável o que escrevia Adam Smith em 1776: “não os recursos naturais, mas o trabalho desenvolvido num ano é a base da qual cada nação extrai todas as coisas necessárias e cômodas da vida que consome num ano”. Todavia, é difícil compreender realmente em que consistiria hoje a divisão do trabalho. Esta de fato mudou, tanto em escala nacional como em escala mundial, e a crise do fordismo é o sinal desta mudança. A crise do fordismo é necessária, sobretudo ao capital, para restabelecer o seu controle sobre o trabalho e sobre a sociedade. Num belo romance de 1989, que Paolo Volponi dedica a Adriano Olivetti, As moscas do capital, as plantas de fícus falam com um terminal de computador. Fícus e computador são expressões daquele poder industrial que decide sobre a divisão do trabalho. A diferença é que os primeiros pertencem ao mundo fordista em plena crise, enquanto o segundo representa o que há de vir. Dizem os fícus: “Somos a criativa cultura industrial. Não temos mais ligações com a natureza e os climas ancestrais; nada nos inibe e nos condiciona. Temos o espírito e o metabolismo da empresa. Os dirigentes olham para nós para pensar e decidir”. Mas, o terminal é cínico e impiedoso na consciência das novas regras que vão se afirmando: “Sois o sinal de uma estação da indústria: plantas nanicas de relações humanas. Mas, hoje não é mais a época das “human relations”. Vocês não servem às automações, às “joint ventures”, aos contratos; não influís sobre os custos, nem sobre os lucros. Ainda sois projetados sobre a tratativa, sobre as mediações segundo as infiltrações político-sociais e também sentimentais. Não sois sequer patrimoniais, conversíveis, fracionáveis e não podeis adaptar-vos à velocidade do capitalismo hodierno, nem favorecer sua abstração. Ainda sois verdadeiros e até vivos”. O desafio dos fícus que, num ímpeto de raiva gritam ao computador que ele é construído para a negação da indústria e de sua cultura e não tem nenhuma função gerencial, é sancionada pelas seguintes afirmações: “O que ainda conta um dirigente? Atualmente é só o seu substantivo que corre entre os meus fluxos, codificado com um relevo e um cargo não muito relevante. Ainda devo explicar-vos que não há mais partes? Que agora só existem os programas e o sistema que eu posso estabelecer e desenvolver? Só conta o que eu introduzo, codifico, coleto, calculo, transmito. Todo o resto está fora, também os implantes da energia às sociedades de todo tipo, as pessoas físicas e jurídicas, que são somente um material; figuras e volumes do passado que eu, a meu bel prazer, posso introduzir no presente e desenvolver no futuro”. As empresas, uma vez reorganizado o trabalho pelo desfrute das descobertas da informática, pretendem encurtar o tempo necessário à obtenção dos lucros, sendo que toda mediação é abolida. Vale a pena relembrar precisamente a história de Paolo Volponi, humanista, ex-dirigente da Olivetti, assumido pela Fiat e licenciado após menos de três meses, a poucas horas da aparição, na Unidade, de sua declaração de voto comunista para as eleições de 1975. Na Itália, após a reestruturação tecnológica dos anos 1980 e após o abandono de boa parte da cultura industrial italiana, os trabalhadores se apresentam fragmentados, apavorados e incapazes de promover um conflito nas formas clássicas. No entanto, ainda há os mortos no lugar de trabalho, há as nocividades (físicas e mentais) que caracterizam a produção e que atingem os trabalhadores e o contexto social no qual a produção ocorre. E se multiplicam profissões que comportam um prolongamento não certificado da jornada laboral. Emergem até novas modalidades de conflito, mas estas investem sempre mais nas relações externas à fábrica, aqui entendida como o lugar tradicional da produção. Num regime de acumulação em que as finanças ditam a lei, as forças produtivas estão sujeitas a formas de controle que não se exaurem no comando direto. Para analisar estas modalidades de comando que se entrelaçam com as lógicas da produção e do consumo, a dicotomia foucaultiana sujeição/subjetivação é absolutamente decisiva. IHU On-Line - O senhor afirma que “a construção de uma biopolítica é determinante para o próprio funcionamento da financeirização como forma de biopoder”. Como isso se manifesta na sociedade do trabalho? Stefano Lucarelli - O capitalismo contemporâneo funciona através de dispositivos de sujeição-subjetivação. A produção de subjetividades resistentes pode ser paradoxalmente funcional a este regime de acumulação. Para se reproduzir, o capitalismo deve renovar-se e o faz sugando a linfa vital à população, que ele deixa viver. Basta pensar no debate atual sobre a green economy: o pensamento ecológico e a pesquisa política e de engenharia, que são dele derivadas, representam exatamente a base sobre a qual os mercados financeiros podem voltar a crescer. Subjetivação e submissão procedem pari passo, e por isso a construção de uma biopolítica pode ser determinante para o conjunto de técnicas que definem o biopoder. IHU On-Line - A “biopolítica” apresenta-se como resistência ao “biopoder”. Como isso é perceptível nas novas resistências de exploração ao capital? Stefano Lucarelli - Seguindo uma sugestão presente nos escritos de Toni Negri (2) e de Judith Revel(3), se pode definir a biopolítica como um poder constituinte. A construção de instâncias constituintes, em condições de não serem logo reabsorvidas nas relações capitalistas, é questão complexa. Numa discussão sobre as formas de resistência ao biopoder, é importante questionar-se por que o fordismo tenha entrado em crise. Com ele, entra em crise também uma forma particular da sociedade do trabalho (para usar a terminologia que me propus). Isso pode ajudar a compreender o ponto de um romance nascido na Itália, Vogliamo tutto [Queremos tudo] de Nanni Balestrino (1971) (4) Neste romance, emerge o fato de que os direitos dos trabalhadores não se conquistam somente graças a uma carta constitucional: as lutas operárias de 1969, na Itália, são necessárias a fim de que se chegue a um Estatuto dos trabalhadores (1970). Porém, há mais: a composição de uma classe que possa ser reconhecida nessas lutas é animada pelo ódio nos confrontos do trabalho de fábrica: “E nós éramos verdadeiramente todos a mesma coisa... a coisa que não tinha diferença era a nossa vontade, a nossa lógica, a nossa descoberta que o trabalho é o único inimigo e a única doença. Era o ódio que todos tínhamos por este trabalho e pelos patrões que nos obrigavam a fazê-lo. Era por isso que todos estávamos enfurecidos, e era por isso que, quando não fazíamos greve, entrávamos em benefício. Tudo isso para evitar aquela prisão onde nos tiravam a nossa liberdade e a nossa força todos os dias. Estes pensamentos, que eu tinha há muito tempo por minha conta, eu finalmente via que eram o que todos pensavam e diziam. E as lutas, que até então eu fazia por iniciativa própria contra o trabalho, acabei vendo que eram as lutas que todos nós podíamos fazer juntos e assim vencê-las.” Um novo modo de regulação Este nível de conflito produz direitos efetivos porque compele as instituições democráticas a definirem um modo de regulação à altura das reivindicações dos operários e da sociedade. Hoje, a composição de classe narrada por Balestrino não existe: quando se olha somente ao mundo do trabalho, emergem, em todo o caso, significativos episódios de luta (penso nas novas formas de luta que fizeram notícia em setembro passado na Itália) que falam tanto da debilidade quanto da força dos trabalhadores: os trabalhadores são débeis porque sofrem a fragmentação da produção e são desambientados ante a mobilidade dos capitais, sob os quais o regime de acumulação contemporâneo se estrutura. Os trabalhadores tentam reconhecer-se entre si, tentam conceber-se como um grupo de interesses coeso. Os trabalhadores são indivíduos explorados, e o são quando trabalham ou quando não trabalham. Por exemplo, o caso INNSE nos mostra a força que há na subjetividade no momento em que organizam a luta, no momento em que põem em ação a própria inteligência, indo combater aqueles aspectos da produção capitalista que prejudicam os interesses do capital. Um importante sociólogo do trabalho italiano, Luciano Gallino, escreveu que extrair indicações de caráter geral do caso INNSE parece uma temeridade. Todavia, o entrincheiramento de poucos operários sob altas estruturas, com o apoio de outros trabalhadores, e a solidariedade de quem se sente partícipe do sentido de desespero e de coragem daqueles operários, atinge um dos pontos nevrálgicos do novo capitalismo: a mídia, os processos informativos que assumiram um papel sempre mais incisivo na valorização de uma atividade produtiva qualquer. Com seu gesto, ditado por um lúcido desespero, os operários revelaram que uma fábrica em condições de saúde teria sido fechada para extrair algo útil do encerramento. São os interesses imobiliários, a cessão dos setores empresariais, as reestruturações, as operações de Mergers & Acquisitions que caracterizam este capitalismo. Ante estas novas lógicas (financeiras) de maximização dos úteis de empresa, facilitadas pelas irresponsabilidades dos governos e dos sindicatos que aceitaram o enfraquecimento dos direitos dos trabalhadores, é preciso repensar as formas do conflito. Foi sempre Gallino que teve a honestidade de relatar as palavras de um operário do INNSE que, nos microfones da Rádio Popular, dialogava com outro operário da CIM de Marcellina: “O velho tipo de luta, a paralisação, não funciona mais. É preciso utilizar outras formas de luta”. Palavras que, em alguns âmbitos de movimentos (penso nos precários que organizam a Euro May Day Parade) são difundidas há tempo. O conflito pode retornar, se se desenvolve uma coesão entre aqueles que sofrem a crise e se reassume a consciência que a luta paga. Permitam-me, uma vez mais, recorrer à literatura. Vasco Pratolini contou em Metello a longa greve que, no início do século 20, paralisou os canteiros de obras de Florença: “O grevista é um trabalhador que tomou consciência de sua condição de explorado e deliberadamente enfrenta a luta e sacrifícios cada vez maiores, onde reivindicar os seus direitos. Todas estas palavras são verdadeiras no momento da ação, mas depois? Quando uma paralisação se arrasta, como crescem as dificuldades, crescem as tentações. Durante uma greve, trata-se de resistir, isto é, de esperar”. As mesmas palavras valem também quando a luta assume uma forma diversa da paralisação. Hoje, no meu ponto de vista, as reivindicações do mundo do trabalho e as reivindicações no terreno das políticas sociais deveriam proceder conjuntamente. Notas: 1.- Paul Adolph Volcker (1927): economista americano. Desde fevereiro de 2009, é presidente do Conselho Consultivo de Recuperação Econômica do presidente Barack Obama. 2.- Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano. Durante a adolescência foi militante da Juventude Italiana de Ação Católica, como Umberto Eco e outros intelectuais italianos. Em 2000 publica o livro-manifesto Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003), com Michael Hardt. Atualmente, após a suspensão de todas as acusações contra ele, definitivamente liberado, ele vive entre Paris e Veneza, escreve para revistas e jornais do mundo inteiro e publicou recentemente Multidão. Guerra e democracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005), também com Michael Hardt. Sobre essa obra, publicamos um artigo de Marco Bascetta na 125ª edição da IHU On-Line, de 29-11-2004. 3.- Marie Judith Revel (1966): filósofa francesa, é professora da Universidade de Roma - La Sapienza e colaboradora no Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universiade de Consenza e do Centro Michel Foucault (Paris). Suas pesquisas abordam o pensamento francês contemporâneo, particularmente a obra de Michel Foucault. Foi diretora da edição italiana dos Ditos e Escritos de Foucault (Feltrinelli, 1996-1998). 4.- Nanni Balestrini (1935): poeta e escritor italiano.

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