A crise financeira internacional que deixou o mundo em choque acaba de dar sinais de recuperação e “os capitais já estão retomando velhas e novas práticas de acumulação financeira à escala global”, diz José Carlos Braga à IHU On-Line em entrevista concedida por e-mail. Num país onde os juros reais são elevadíssimos em comparação com o resto do mundo, o que atrai capital especulativo, existe ainda um tripé formado pelo cambio flutuante, metas de inflação e superávit primário que “estrangula o salto brasileiro para o desenvolvimento”, frisa o professor da Unicamp. Braga classifica a política cambial do Brasil como homicida e recorda que, após o colapso cambial de 1998, “ingressamos na ‘era da política de câmbio flutuante’”. No ano seguinte, continua, “a política cambial foi marcada pela instabilidade e, na maior parte do tempo, implicou a apreciação do real frente ao dólar; movimento que agora assistimos de maneira contundente”. Com um cenário de desalinhamento cambial, menciona, “as consequências não são positivas para o crescimento e distribuição de renda”.
Na opinião do economista, o Brasil foi um dos países menos afetados pelo colapso econômico internacional, mas adverte, “podemos pôr tudo a perder se deixarmos correr solta essa especulação cambial que está derrubando o dólar e tornando o real ficticiamente uma moeda forte”.
José Carlos Braga é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre e doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Hoje, é docente no Instituto de Economia da Unicamp. Entre suas obras, citamos Temporalidade da riqueza. Teoria da dinâmica e financeirização do Capitalismo (Campinas: Unicamp, 2000).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como percebe historicamente a posição brasileira em relação a sua política cambial? Em algum momento, essa política favoreceu o crescimento econômico efetivo e a distribuição de renda?
José Carlos Braga - Consideremos a partir do Plano Real. Inicialmente o câmbio foi utilizado como âncora para combater a inflação e, assim, tivemos valorização nominal e real da taxa de câmbio. Prejudicamos as exportações, a competitividade da indústria brasileira; criamos déficit comercial e de transações correntes, desequilibrando o balanço de pagamentos. É história conhecida da barbeiragem cometida sob a tutela do Senhor Gustavo Franco que, ao sair do governo, tornou-se um financista. Essa política não estimulou o crescimento econômico como é do conhecimento geral da nação. A queda da inflação ajudou os de baixo na escala social, mas isso não foi suficiente para promover a distribuição de renda na dimensão que o Brasil necessita. Após o colapso cambial de 1998/99 ao qual chegamos pelas mãos do economista acima mencionado, ingressamos na “era da política de câmbio flutuante” na qual, durante a maior parte do tempo, destaca-se a figura do Senhor Meirelles, que sucedeu o Armínio Fraga, discípulo de George Soros, financista e megaespeculador internacional. No período posterior a 1999, a política cambial foi marcada pela instabilidade e, na maior parte do tempo, implicou a apreciação do real frente ao dólar; movimento que agora assistimos de maneira contundente. A persistir tal “coisa”, as consequências não são positivas quer para o crescimento quer para a distribuição.
IHU On-Line – Por que há desalinhamento cambial no país? Quais são as consequências da sobreapreciação cambial atual para a economia brasileira?
José Carlos Braga - Há um Brasil que paga juros reais elevadíssimos ainda em comparação com o resto do mundo, e isso atrai capitais especulativos evidentemente que derrubam o dólar e valorizam o real frente a essa moeda. E há um contexto internacional de capitalismo sob dominância financeira que persiste neste momento pós-trauma da crise financeira amainada pelos Estados Nacionais que, entretanto, ainda não regularam nada. Os capitais já estão retomando velhas e novas práticas de acumulação financeira à escala global. Veja a Bovespa, veja a recuperação em Wall Street, veja o crescimento das operações com derivativos financeiros mundo afora. E há um Banco Central brasileiro que é passivo em nome de que não pode ter uma meta cambial, de que o regime é flutuante, blá, blá, blá!!! Acaba como cúmplice da dominância dos ganhos financeiros sobre os ganhos produtivos em nossa economia. Esse tripé: cambio flutuante, metas de inflação e superávit primário estrangula o salto brasileiro para o desenvolvimento. É um triângulo de ferro mortal. A política cambial é homicida do nosso desenvolvimento. É isso!O Brasil foi capaz de crescer entre 2004/ terceiro trimestre de 2008 a taxas superiores a 4% ao ano graças aos financiamentos dos bancos públicos, aos programas sociais de transferência de renda, ao bolsa família, à recuperação real do salário mínimo, aos investimentos públicos. E adicione-se: as empresas privadas de porte médio-grande e as grandes resistiram, reorganizaram-se microeconomicamente, desendividaram-se, ganharam no financeiro e no operacional e partiram para crescer aqui e lá fora. E seguiríamos crescendo não fossem a crise internacional e a reação retardada do Banco Central brasileiro em termos de política de juros altos à turbulência e aos tombos da economia mundial.
IHU On-Line - Depois da crise financeira internacional, a abertura cambial se torna mais arriscada?
José Carlos Braga - O Brasil está integrado à globalização financeira e, mesmo antes da crise, já vinha no jogo da elevada financeirização do capitalismo vigente nas últimas décadas, conforme analisei em minha tese de doutoramento posteriormente publicada no livro Temporalidade da Riqueza. Não foi um país-ator importante na crise sistêmica global atual por uma ironia e um paradoxo desde o início apontado pela mestra Conceição Tavares. É que os detentores de riqueza que operavam no Brasil - os nacionais e os internacionais - não precisavam ir à folia financeira internacional, já se bastavam com a folia nacional promovida pelo Banco Central e suas taxas de juros decididas nas reuniões presididas pelo Senhor Meirelles. Depois da crise, o Brasil se mostrou como um dos países menos afetados por causa desse paradoxo. Mas, é claro, que podemos pôr tudo a perder se deixarmos correr solta essa especulação cambial que está derrubando o dólar e tornando o real ficticiamente uma moeda forte.
IHU On-Line - Qual deveria ser a política do Brasil em relação às taxas de câmbio? Como essa política pode favorecer a economia brasileira?
José Carlos Braga - O Banco Central do Brasil e de países em desenvolvimento não podem abrir mão de ter uma taxa de câmbio realista e competitiva. Para tanto têm que agir no mercado à vista e no mercado futuro de câmbio para impedir movimentos prejudiciais à economia como um todo. Essas medidas favorecem a balança comercial, as outras políticas que empurram o progresso industrial e tecnológico, e desestimulam especulações que envolvem as interações entre taxa de juros e taxa de câmbio. E preciso parar com essa tolice de que as forças livres do mercado é que devem indicar o caminho, os pontos de equilíbrio. Depois da “explosão” que arrasou a capacidade de autorregulação dos mercados e que iniciou com a crise imobiliária americana – subprime -, só os cretinos ou falsários podem ficar nessa ideologia desmascarada a cada crise, à qual a teoria econômica mainstream aplica, volta e meia, ares de ciência com a ajuda de modelos matemáticos de última geração que nada explicam da realidade; só servem para lhes dar diplomas, publicar artigos em revistas indexadas, inflar currículos vazios de conteúdos e render consultorias com base nas quais a mídia dirá que “o mercado prevê que...” e os financistas de todo tipo seguirão sua acumulação.
IHU On-Line - O Brasil vive uma ameaça daquilo que se denomina peste holandesa? Adesindustrialização ainda pode ocorrer no país?
José Carlos Braga - Isso ocorrerá se a sociedade deixar-se levar pelo poder da finança. Não são apenas os bancos que fazem essa finança! Vejam a especulação da Sadia e outras 500 empresas nos derivativos cambiais. Creio que as condições para uma arrancada em direção ao desenvolvimento estão dadas como uma oportunidade histórica bem especial neste início do século XXI. Temos que aproveitá-la. Mas temos que superar a mediocridade e varrer a mesmice política do Executivo e do Legislativo. Aumentar a participação popular. Mobilizar a sociedade. Desmascarar a pseudociência de boa parte dos economistas. O projeto conservador envolve crescimento com aperto fiscal, privatização e distribuição mais à frente, “quando o bolo tiver crescido”. É aquela velha história mesmo por parte dos “neodesenvolvimentistas” de direita. Não nos enganemos. O crescimento é necessário, mas não suficiente. Nós até podemos crescer e agravar o problema social, ambiental e outros.
IHU On-Line - Como o senhor percebe a “decadência” das exportações? Esse fenômeno é bom para o país ou as exportações deveriam ser estimuladas através de subsídios? Quais são os efeitos disso para a distribuição de renda no país?
José Carlos Braga - Apesar dos pesares, como se diz, não sou dos que acreditam que o Brasil padece já da tal da doença holandesa, ou que tenhamos sofrido um verdadeiro processo de desindustrialização como México, Argentina e outros países sofreram. Os produtos manufaturados ainda têm peso importante nas exportações. Os setores de bens de consumo, de bens intermediários e de bens de capital seguem bem como a dinâmica entre eles e aquele com o agronegócio. O papel que o BNDES vem desempenhando nos últimos anos poderá recuperar em tempo hábil elos perdidos da cadeia industrial, sobretudo através da iniciativa de criar projetos na qual agora ele se lança. O crédito de capital a custo adequado e as desonerações fiscais em curso são estímulos suficientes. Agora, não pode continuar com aquele triângulo de ferro mortal. E tem que chamar a banca privada para negociar seu engajamento no projeto nacional de desenvolvimento. Dar um basta nessa moleza dela, ficar faturando com a dívida pública, assim como o fazem as tesourarias das grandes empresas e os donos de grandes fortunas no país. A distribuição de renda com tudo isso avança pouco; fica na dependência do Bolsa Família, das transferências de renda do governo, o que não pode ser permanente. A meta tem que ser a superação do subdesenvolvimento que inclui a contundente distribuição da riqueza e da renda.
IHU On-Line - Como o senhor percebe o Brasil frente à desaceleração econômica global?
José Carlos Braga - O Brasil já disse que está bem na foto internacional. Agora, o nosso Banco Central, com essa diretoria que aí está, faz gol contra. Essa é a verdade. Então, tem que mudar a lógica do triângulo: fisco, câmbio e juros. Torná-lo a favor da combinação de estabilidade com desenvolvimento. Usar os bancos públicos como já se vem fazendo e ampliar essa utilização inclusive para quebrar a oligarquia financeira que tripudia sobre o povo e a nação como vimos em declarações recentes de banqueiros a favor de spreads elevados; isso numa reação à atitude dos bancos públicos de reluzi-los. E a política social tem que ser ampla e para tal necessita de recursos fiscais para saúde, educação, esgotos sanitários, merenda escolar, todas essas coisas. É uma barbaridade morrer brasileiros de morte evitável, seja criança, seja adulto. Logo, o governo começou a mover-se bem, mas há muito a ser feito pelos governos que virão para adentrarmos digamos assim: uma senda Furtadiana de superação do subdesenvolvimento.
IHU On-Line - O que medidas distributivas como bolsa família e elevação do salário mínimo significam para o país? Como essas iniciativas favorecem melhores condições de vida?
José Carlos Braga – Essas iniciativas estão na base do crescimento maior que temos tido nos últimos tempos. Mas a meta tem que ser, no futuro, não mais precisar de bolsa família, porque a economia desenvolveu-se e gerou as oportunidades. Claro que por economia entendemos uma articulação entre Estado e mercado. O mercado sozinho não existe e quando existe termina por provocar crises de grandes proporções como a dos anos 1930 e a que estamos a assistir desde 2007, para não falar de outras como, por exemplo, a Depressão Argentina dos anos 2000.
IHU On-Line - Que aspectos devem permear a construção de um novo padrão de desenvolvimento produtivista e distributivista? O Brasil se encaminha, de algum modo, para esse projeto?
José Carlos Braga – Há “coisas” difíceis por enfrentar, como a reforma tributária, reforma agrária, reordenamento das regiões metropolitanas, enfrentamento inteligente e balanceado entre desenvolvimento e meio ambiente. A consciência e o debate avançaram no Brasil. Mas estamos longe de uma prática mais funda e irreversível até onde consigo enxergar. Minha esperança se funda em que cresce o número de inteligências que se direcionam politicamente para essas questões. E não esqueçamos que somos um país continental. Logo temos que ter uma política nacional de desenvolvimento regional para resolver essa outra dimensão de nossas heterogeneidades estruturais. Haja força e luta política com conhecimento de causa.
IHU On-Line - É possível conciliar crescimento econômico e sustentabilidade num país que deseja acelerar o crescimento e que investe em programas como o PAC? Percebe alguma sinalização nesse sentido?
José Carlos Braga – Sim, a dificuldade é que como somos atrasados no subdesenvolvimento, temos muito a fazer simultaneamente. Então a harmonização e sincronicidade tornam-se difíceis, conflituosas; além das contradições reais mesmas - ou vai ou racha; ou, de outro lado, preservemos a qualquer custo!É curioso que duas mulheres simbolizem - no limite - essa bifurcação - Dilma e Marina. Mas é claro que ambas querem combinar e buscar o desenvolvimento sustentável. Aliás, doravante em qualquer lugar do mundo, penso que a médio prazo qualquer proposta que não se proponha a isso está fadada à derrocada. A menos que apostemos na barbárie a valer. O padrão de crescimento de costas para as questões ambientais não tem mais credibilidade e apoio, está condenado politicamente porque simplesmente destruirá o planeta.
IHU On-Line - O fato de 2010 ser ano eleitoral afeta de alguma maneira a política econômica do país? Em que sentido?
José Carlos Braga – Espero que sim. Mas isso será de pouca valia, de curto prazo, mas, que venha. Que o triângulo de ferro seja derretido. Que os grilhões ao desenvolvimento sejam quebrados. Mas o importante é que o processo eleitoral implique mobilização da sociedade para que os compromissos do novo governo sejam com a construção acelerada da civilização brasileira cujo fundamento, insisto, como aprendi com meus mestres, é a superação do subdesenvolvimento.
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