"A presidenta Dilma passa uma imagem de executora e que o mais
importante no governo é a eficiência em si, quase algo tecnocrático. Na
democracia, eficiência é,
sem dúvida, muito importante e necessária (...) mas eficiência só não
qualifica o governo democrático, um governo por definição instável e de
incertezas, impregnado pelas contradições da sociedade, que a democracia
as transforma de forças destrutivas (a tal luta de classes da
sociologia e ciência política) em forças de construção e transformação
pactuada. A dinâmica cidadã – a luta de classes operando segundo valores
e princípios democráticos aceitos por todas e todos – constitui e
qualifica o governo e as suas políticas". O comentário é de
Cândido Grzybowski, diretor do Ibase, analisando o primeiro ano de governo de
Dilma Rousseff em texto publicado no sítio do
Ibase, 05-01-2012.
Eis a análise.Após um ano da posse de
Dilma Rousseff
na Presidência da República, penso que vale a pena um balanço, de uma
perspectiva da cidadania. Claro que é um ponto de vista a partir do
lugar que ocupo numa organização de cidadania ativa, como o Instituto
Brasileiro de Análises Econômicas e Sociais. Não tenho a pretensão de
ser uma voz representativa de quem quer que seja. Defendo só a
legitimidade de minha análise.
Vou começar por onde
Dilma tem se revelado mais do que se esperava. Como primeira mulher presidenta do Brasil,
Dilma é,
por ela mesma, uma grande mudança de expressão da sociedade brasileira,
suas diversidades, desigualdades e contradições, no poder político. Não
é aquele encontro entre povo e nação encarnado por
Lula, migrante nordestino, operário, identificado com a cultura popular. Mas é fundamental que se reconheça o quanto
Dilma representa
para o enfrentamento e a ruptura do estrutural patriarcalismo do poder
no Brasil. Pelo que sei, ela não tem uma história de militância cidadã
no feminismo, mas está se portando como se assim tivesse, o que torna a
sua atitude extremamente relevante na perspectiva democrática de
transformação do Brasil, de inclusão, justiça social, participação e
sustentabilidade. Não podemos avançar como nação sem enfrentar a
profunda desigualdade de gênero e o machismo. Isso não quer dizer que as
outras marcantes desigualdades brasileiras sejam menos importantes. Na
verdade, elas se interligam e combinam, tornando extremamente difícil a
mudança. Por isso mesmo, é muito relevante ter uma presidenta
comprometida com justiça social.
Relações internacionais
Uma outra estimulante e impactante surpresa do governo
Dilma é a direção imprimida até aqui no delicado campo das relações internacionais.
Lula teve
o grande mérito de instaurar uma agenda de Brasil emergente, numa
estrutura mundial muito polarizada pelos países desenvolvidos, sob o
manto da hegemonia dos EUA. Ele deu atenção especial às relações Sul-Sul
e às possibilidades de mudança no quadro de poder global. Só que
Lula nem
sempre se portou pautado por uma agenda de condicionalidades
democráticas e de direitos humanos. Ele atropelou e agiu
pragmaticamente.
Dilma é mais coerente e tem cuidado
com a legitimidade democrática da atuação brasileira, um grande país
emergente, sem bomba atômica, vale a pena ressaltar.
Ela não se atua dominada por um chamado “interesse nacional” acima de
quaisquer princípios éticos e valores democráticos. Aliás, o que é
afinal o “interesse nacional”, que representantes das classes dominantes
e conservadores gostam de jogar na nossa cara, num país tão
profundamente diverso, desigual e com tantos excluídos? A mudança do
governo
Dilma se nota claramente na nova postura da
diplomacia brasileira no Conselho de Segurança das Nações Unidas e nos
fóruns de direitos humanos. O discurso da presidenta
Dilma na abertura da Assembleia-Geral da
ONU é
uma verdadeira tomada de posição e de definição por um Brasil
democrático, bem ao gosto de ativistas de direitos humanos e de
cidadania. Destaco isso sabendo que tal posição vem no bojo de muitas
contradições do governo
Dilma. Mas a mudança que
assinalei é um forte indício de que Dilma está se fazendo a pergunta
sobre que Brasil o mundo precisa, antes de decidir estratégias e
políticas internacionais.
Faxina nos ministérios
O que mais? No gosto de muitos e da grande imprensa – e isto rende
grande apoio à Dilma, segundo as sondagens de opinião – ela está fazendo
uma faxina ética no governo, dando um basta à corrupção. É bem verdade
que muitos ministros foram substituídos por causa da corrupção. Mas esse
fato em si não me parece indicar uma grande mudança na Política (com P
maiúsculo mesmo). O poder no Brasil – nos três Poderes, diga-se de
passagem – é visceralmente tomado pela corrupção, com raízes profundas
no patrimonialismo e clientelismo. Isso vem de lá de longe, com suas
sete vidas. Haveria mudança se entrasse na agenda democrática brasileira
uma profunda reforma da Política, que superasse o distanciamento, o
fosso e as barreiras existentes na relação entre cidadania e poder. Isso
nada tem a ver com o debate da reforma política instaurado no
Congresso, mais uma obra do jeitinho que diz que muda para nada mudar.
Como disse, o que Dilma fez até aqui neste campo não passa de gestão
delicada da confederação política de interesses privados que se agarra
ao poder. Tem outro sentido a substituição de uns ministros por outros
do mesmo partido, como se fossem os donos de fato do poder público? A
cidadania não está nesse jogo e por isso a tentativa de recriar algo
parecido ao movimento de ética na política está dando com os burros
n’água. Dilma prestaria relevante serviço à democracia se fosse mais
ousada e determinada no enfrentamento desse estrutural desafio político,
não resolvido pela Constituição de 1988 (apesar de seus enormes avanços
em direitos de cidadania).
Participação cidadã
Um outro desafio estratégico para o governo
Dilma é a participação cidadã.
Dilma não carrega uma história de relações com amplos e contraditórios segmentos da cidadania real do Brasil, como
Lula.
por exemplo. Isso se reflete numa espécie de burocratização da
participação cidadã nas políticas públicas no governo. É claro que a
sintonia fina com a cidadania faz enorme diferença.
Com
Lula, o palácio de “portas abertas” à
diversidade brasileira e o estímulo à participação em mais de 50
conferências nacionais e não sei quantos conselhos mobilizou milhões de
brasileiras e brasileiros, mesmo que esses espaços tenham tido pouco
poder real. Geraram muitas frustrações, pois eram e são, acima de tudo,
espaços consultivos para construir consensos e agendas possíveis. Porém,
em termos democráticos o Brasil ganhou do governo
Lula a
maior escola do mundo de aprendizado da cidadania política, que começa
por reconhecer a diversidade e a necessidade de construção democrática
de consensos e pactos, definindo a dialética dos direitos e das
responsabilidades compartidas, para que avanços sejam possíveis. Os
milhões de pessoas que se engajaram e que voltaram a se engajar, do
local ao nacional, em disputas de ideias, sentidos, posições e projetos,
deram cara nova à democracia brasileira, reconhecida no mundo todo. O
poder político não mudou por isso e ainda vai demorar a mudar, mas a
democracia se fortaleceu como estratégia e processo capaz de operar
mudanças sustentáveis no longo prazo, como são as revoluções
democráticas.
Nesse campo fundamental da democracia, onde a contribuição do
PT fez diferença
Dilma parece
que não se move com facilidade e com visão estratégica. O combate à
corrupção sem participação cidadã não passa de maquiagem no governo. A
presidenta
Dilma passa uma imagem de executora e que o
mais importante no governo é a eficiência em si, quase algo
tecnocrático. Na democracia, eficiência é, sem dúvida, muito importante e
necessária, até mais do que em governos autoritários, onde o poder
bruto, de dominação, sem contestação, pode se dar ao luxo de ser
ineficiente. Mas eficiência só não qualifica o governo democrático, um
governo por definição instável e de incertezas, impregnado pelas
contradições da sociedade, que a democracia as transforma de forças
destrutivas (a tal luta de classes da sociologia e ciência política) em
forças de construção e transformação pactuada. A dinâmica cidadã – a
luta de classes operando segundo valores e princípios democráticos
aceitos por todas e todos – constitui e qualifica o governo e as suas
políticas.
Num país como o Brasil de hoje, com um Congresso e um Judiciário
dominados pelo corporativismo, a estratégia possível para as necessárias
e desejadas mudanças democráticas reside na tensão gerada pela
participação cidadã na Política. Claro que representantes e negociadores
revestidos de mandato pelo voto, um Judiciário legítimo, independente e
efetivo, e bons formuladores e gestores de políticas são indispensáveis
nas democracias. Mas a cidadania ativa é parte que institui e
constitui jogo, ou melhor, a luta democrática, por mais que
conservadores não gostem disso. O que aconteceu e está acontecendo no
mundo árabe é o melhor exemplo do que estou falando. O modo de definir o
que vai ser feito e como vai ser feito nas democracias é mais
importante do que o resultado em si. Os fins não podem justificar os
meios utilizados. Pelo contrário, são os meios que qualificam os fins.
É bom lembrar que cidadania é tanto o direito a ter direitos, como a
responsabilidade pelos direitos, o que implica na participação cidadã
como responsabilidade da própria condição de cidadania. A luta
democrática impõe a seus líderes e seus representantes a capacidade e a
sabedoria para se sujeitar à cidadania, para tirar partido das tensões,
das vaias e dos aplausos, das críticas, das mobilizações de apoio.
Essas, junto com o fundamental ato de votar, são formas como
efetivamente se dá a participação dos constituintes do poder político.
Democracia é voto, mas também é ruído e confusão, é praça pública, é rua
tomada por manifestação, é engajamento em defesa de causas. Sintonia
fina com a cidadania é condição sine qua non para a efetividade de
qualquer governo ou instituição democrática. Enfim, um governo
democrático não pode estar de costas à participação.
Erradicação da miséria
Para mim, um simples ativista de longa data pela justiça social, nada mais relevante no governo
Dilma do
que o objetivo de em quatro anos erradicar a miséria, uma chaga a que
estão condenados mais de 16 milhões de cidadãos e cidadãs no Brasil.
Trata-se de uma tarefa ética incontornável e inadiável, porque
possível, dada a pujança de nossa economia. Salta aos olhos, porém, e
explica uma não empolgação com o “Brasil Sem Miséria” a falta de
participação cidadã no desenho dos objetivos e na execução do programa.
Também me incomodou a ausência da presidenta
Dilma na recente Conferência Nacional de Segurança Alimentar, apesar da participação do ministro
Gilberto Carvalho
ter mitigado o problema. O fato é que a ausência da presidenta em tão
importante conferência para indicar o rumo que o Brasil precisa trilhar é
muito simbólica. Estou também profundamente intrigado e incomodado com a
decisão governamental de excluir a
ASA, Articulação do
Semi-Árido, da implantação do programa de cisternas no Nordeste, talvez
uma das políticas mais inovadoras até aqui em termos de efetiva
participação no seu desenho e implementação. Lamentável! Tudo em nome da
eficiência, pelo que suponho.
Agenda desenvolvilmentista
Por fim, destaco o modo como
Dilma e seu governo dão
continuidade a uma agenda desenvolvimentista, baseada nos grandes
projetos e grandes corporações empresariais, sem ao menos discutir tal
agenda com amplos segmentos da cidadania ativa. Outro lado igualmente
ruim nessa agenda é a sua elaboração e defesa com renovado ímpeto.
Parece-me ser um grande erro, que vai nos custar muito logo mais,
definir para o Brasil um projeto de desenvolvimento puxado pela
acumulação capitalista, projeto que, no mundo todo, mostra sinais
evidentes de crise e esgotamento. A muita riqueza que ele gera se
concentra em poucas mãos e é feita às custas da destruição ambiental,
com ameaças à sustentabilidade da vida no planeta. Trata-se de produção
de luxo e lixo em benefício de poucos (os movimentos de indignados, que
se espalham pelo mundo, martelam no 1%,como o tamanho dos verdadeiros
beneficiados).
Em tal modelo de desenvolvimento, só a reboque do seu crescimento
contínuo, se vislumbra a possibilidade de fazer maior justiça social. Um
tal desenvolvimento se alimenta da destruição ambiental combinada com
desigualdade e injustiça estrutural, entre os habitantes atuais da Terra
e de nós com as gerações futuras. A globalização das últimas três a
quatro últimas décadas acelerou e exacerbou todas as contradições deste
modelo. A ameaça não é mais aqui ou lá, tem dimensões planetárias. Isso
não leva a mais democracia e nem preserva a condições para a vida digna e
o bem viver. Para a dignidade humana, com garantia de todos os direitos
para todos os seres humanos, para a sustentabilidade da vida, de nossa e
de toda a biosfera, para a preservação do próprio planeta, precisamos
sair da lógica desenvolvimentista atual, ao menos começar a ir em outra
direção, desarmando a bomba relógio da civilização industrial
consumista, social e ambientalmente predatória.
Será que o Governo
Dilma não vê a possibilidade histórica que está à sua porta, com a conferência
Rio+20,
para assumir um papel ousado e relevante, tanto ética como
politicamente, em direção a tais mudanças? Nada a esperar dos EUA, do
Japão, nem mesmo da Europa em crise. Da China, do capitalismo selvagem
ou dos outros emergentes o mais provável é aparecerem negociadores para
fazer ativa oposição a qualquer compromisso de mudança mais de fundo. A
Rio+20,
de junho próximo, poderá ser uma rara oportunidade, sob legítima
liderança do governo Dilma, de arrastar outros governos e de pactuar com
a sociedade civil do Brasil e do mundo uma direção para outro
paradigma, uma outra economia, um outro modo de gerir as sociedades e a
nossa relação com a natureza. Mas, para exercer um papel assim, é
necessário ao menos se dispor ao diálogo democrático, pondo na mesma de
negociação a própria questão do desenvolvimento. A agenda
desenvolvimentista atual do governo
Dilma não combina
com isso. Fica um desejo e um clamor: gostaria de ser surpreendido neste
ano com a vontade e a determinação da presidenta
Dilma de
fazer com que nós nos orgulharmos do Brasil emergente, apontando os
caminhos democráticos possíveis para uma civilização sustentável.